segunda-feira, 30 de março de 2015

" UMA DELÍCIA ... "





Eu tinha que escrever sobre o Arnaldinho !

O Arnaldinho é um menino "levado", de calções ao fundo do bumbum, de boné ao lado, fralda da camisa meio dentro meio fora, e algumas sardas sarapintando-lhe as bochechas sempre afogueadas.
Os olhos grandes, luminosos, mais azuis que céu de Primavera, parecem os do querubim pintado no painel, lá da igreja.
A mãe opta por prender uns suspensórios naqueles calções em queda iminente ... Coisa que enfurece o Arnaldinho.

Leva a vida no corre-corre.  A sua agenda infantil rebenta pelas costuras.
Ele é a bola, ele é o abafa, o carrinho de rolamentos, a troca de cromos, o rio que corre em desatino no limite da terra ...
Ele é ir aos ninhos ... são as laranjas e as tangerinas que o espreitam dos campos da Ti Raimunda, ou as maçarocas do milho já maduro, prontinhas para a fogueira ... Tudo tentações do capeta !...
Os matraquilhos sempre o desafiam, na tasca do Manel.  Mas para isso, é preciso moedas, e só de vez em quando o Arnaldinho encontra algumas, esquecidas no fundo do bolso já furado ...

A fisga pendurada dos calções, o ranho pendurado do nariz, e o suor pendurado do rosto, cola-lhe à testa as farripas da franja mal cortada.
No meio de tudo, arranja de quando em vez, um tempinho para as letras.  Só de quando em vez.
Deveres esquecidos, cadernos rabiscados, com dedadas e nódoas de gordura ... e eis que os castigos na escola o "encontram" vezes de mais.
Os recreios em que só tem ordem de olhar a meninada, uma ou outra reguada, a ponteirada que ferve a cada burrice, deixam o Arnaldinho injustiçado e sofrido, perguntando-se o porquê de tanta "maldade" ...
O tormento que o assola, a infelicidade que experimenta, confundem-no !
Afinal, o seu pecado é apenas sentir-se solto, livre, adorar os campos, o rio, caçar os grilos, os gafanhotos e as borboletas para espalmar no meio do livro de leitura ... O seu pecado é ouvir o tlim-tlim dos berlindes no bolso, a atazanarem-no para a brincadeira, ou o pião com a guita ao jeito da mão ... ou o gorgolejar da água bem perto, entre as pedras, correndo pressurosa e fresca, no despontar do Verão ...
O seu pecado é a malfadada traquinagem  que não lhe larga o coração !...
Resistir-lhes ... é obra, e um puto não é de ferro !...

O Arnaldinho esquece tudo.  Só tem olhos para o céu azul, para a aragem que o despenteia ainda mais, para o calor do sol que o envolve ...
Botas ao ombro, pés na terra quente, mais vermelhusco ainda, no entusiasmo da prevaricação ... ele aí vai !...

Afinal é só um menino, feliz com tanto mundo à sua volta, feliz com os horizontes sem horizonte, que a vida lhe concede !

"Naldoooo !...." grita a mãe em fúria, quando precisa de um "mandado" ...
"Esse menino vai ficar sem orelhas, quando eu o apanhar !..."

E Arnaldinho, fazendo-se de morto, escondido no fundo do galinheiro, só pede que a criação não entre em desvario, e o denuncie.
Com as batidas do coração disparadas, os olhos de menino safado esbugalham-se mais ainda, ameaçando abandonar as órbitas ...  Até as sardas parecem desenhar-se em 3D, querendo saltar das bochechas !!!...

Conheci o Arnaldinho há muitos anos.
Numa terra com rio, com sol, com campo, flores e pássaros soltos.
Numa terra em que a esperança era verde como os campos, e a liberdade voava  nas asas das toutinegras ...
Numa terra com sonhos grandes,  feitos de sonhos pequenos.
Numa terra e num  tempo em que os meninos ainda jogavam ao pião, subiam às árvores, usavam fisgas e caçavam bichinhos.
Numa terra em que a felicidade tinha o tamanho do quintal de casa, e o Mundo era limitado só pelo rio e pelas terras da Ti Raimunda !...

Anamar

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