domingo, 7 de fevereiro de 2021

" PENSAMENTOS SOLTOS "

 


Hoje amanheci azeda.  Ou melhor ... mais azeda, se possível.  Tão cinzenta quanto este cinzento escurecido aqui por cima, onde só algumas gaivotas esparsas, parecem não se entender com os caminhos do céu.

Para andarem por aqui, é porque,  lá longe, nos lugares que não vejo e adivinho, o senhor das algas e dos limos, das areias e dos rochedos, deve estar irritado !

É sábado, de mais um fim de semana chuvoso, com vento frio e desabrido agitando a última folhagem caduca, do plátano das minhas traseiras.  É quase noite e as gaivotas já foram.  Significa que mais um dia igual, está a chegar ao fim.
Neste momento da vida, já não sei das horas, dos dias, quase dos meses ...
O ritmo diário repete-se numa sinestesia incontrolável.  Os sons, as cores, os cheiros e todas as outras sensações primárias fazem uma mescla difusa e indistinta, dentro do nosso ser.  Está a criar-se em cada um de nós, um adormecimento doente, uma anestesia egoística, uma indiferença injusta ...
Deixei de perseguir notícias.  Vejo por uma única vez um telejornal diário.  Não é que aprenda grande coisa ... apenas não quero sentir-me totalmente desinformada.
Sei vagamente que os doentes que ocupam camas de intensivos já vão nos novecentos, creio.  Sei que existem estirpes mutantes do vírus assassino, para todos os gostos ... As que preferem gente jovem e as que dizimam os velhinhos.  Sei da prevalência também, dos que no meio da tabela, começam agora a  preencher totalmente, as camas dos hospitais.
Oiço as ambulâncias que caminham para o Hospital, aqui relativamente próximo ... sei que mais próximo ainda, em terrenos da Academia Militar está instalado um contentor frigorífico com vítimas que aguardam vez nos crematórios, em regime "non stop" ... e também sei que não há uma só vez, daquelas que me levantam durante a noite, que de imediato eu não pense em quantos terão dado, nessa mesma noite ( em que o conforto da minha cama me aninha ), o seu último suspiro ... e quantos mais não verão sequer a luz da madrugada a fazer-se ...

Isso tudo, eu sei.  Mas sou-vos totalmente franca : a crueza dos números, a dureza da dimensão da desgraça, a sensação do sufoco inultrapassável, sentidas há tempos atrás ... já não me mexem.
Eu sei do cansaço que me tira o norte, sei da aleatoriedade da existência, por cada dia.  
Comigo, com os meus, com os amigos ... com os conhecidos.  Mas, ou já não tenho robustez psíquica, ou já não acredito em finais felizes, ou já ganhei uma imunidade de compaixão, contra quase tudo !

Tantos dramas que se vão conhecendo nestes tempos de agrura, de tantos nos despedimos sem nos despedirmos, que estranha sensação de fuga permanente experimentamos !...
Fuga do que não se vê, sabe-se e pressente-se.  Fuga da sombra, fuga dos outros, barricados em permanência que estamos, como em leprosarias inventadas !...
E é uma prova de força por cada vinte e quatro horas que ultrapassamos.  É um teste de sobrevivência por cada dia seguinte que alcançámos com sucesso e segurança.  É um desafio anónimo ganho, de superação individual, por cada semana que o calendário vai derrubando, continuando vivos !...
Acredito que nós, os desta faixa etária, a minha, em que nos resta apenas olhar, em que nos resta apenas pensar, por cujas cabeças passa de tudo porque de tudo já passámos nesta vida ... e porque o lugar que nos cabe é o da rectaguarda, o da espera e não o da acção ... sujeitos passivos que somos, no último quartel das nossas existências ... acredito, dizia, que suportamos ainda mais penosamente, esta dolorosa e incerta travessia. 

Afinal, não somos mais o homem do leme desta embarcação em mar encapelado, não somos mais os timoneiros nem sequer dos nossos destinos, não somos mais os decisores de coisa nenhuma, porque nada depende de nós, e nada nós podemos objectivamente determinar, acautelar ou solucionar.
Não nos protege a adrenalina dos que nem tempo têm para pensar.  Não nos favorece sequer, o excesso de tempo inútil e vazio em que se resumem os nossos dias, em que até as brincadeiras com que nos mimávamos no início da tragédia, já surtem efeito ...
Apenas ( e já faremos o necessário e o suficiente ), podemos e devemos, sem nenhuma garantia antecipada contudo,  tomar conta da nossa protecção individual, porque protegendo-nos, estaremos também a proteger a sociedade da qual fazemos parte, estaremos também a proteger os que diariamente, nas linhas de fogo, se dão por inteiro além do humanamente possível, estaremos a dar uma nova chance a um novo amanhã ... porque quero acreditar ... há-de haver AMANHÃ depois da Covid !

Anamar

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