terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

" NADA E TUDO "



Hoje acordei em perda.
Acordei com um buraco no peito, como se me afundasse, sem apelo, numa profunda e inevitável cratera.
Acordei desmoronada ... desmanchada por dentro, tão vulnerável como um barco à deriva que tivesse rebentado a sua única amarração ao cais ...

É domingo de Carnaval no calendário, é Dia de S.Valentim, de novo data socialmente determinada de há alguns anos a esta parte, e consequentemente é o Dia dos Namorados, em que o Amor deverá ser vivenciado e glorificado institucionalmente, pelo menos ... 
Amanheceu um dia glorioso, de uma luminosidade de Primavera antes de tempo, ela que já se anuncia por aí, com as flores a despontarem numa Natureza sempre generosa e pródiga.
Amanheceu, mas foi difícil que eu me convencesse a sair da cama e espreitasse o sol que iluminava um céu limpo totalmente azul ...
Afinal, eu sentia-me mais vazia do que nunca, mais amputada do que nunca, mais só do que nunca !
Vazia de ânimo, devoluta de vontade !

Vivo numa pandemia assassina, da qual nem sequer imagino se saio ilesa, ou se simplesmente engordarei as estatísticas.
Vivo com as perdas todas que um ano já de desgaste profundo, foi infligindo à minha força física e anímica.
Vivo com as ausências dos que foram, e dos que estão à distância de um abraço apenas imaginado.
Vivo com as memórias e as lembranças, dos momentos, das palavras, dos cheiros e das cores.  Vivo com o som do vento que me soprava então o cabelo, ou com o tamborilar das chuvas nas madrugadas de aconchego.
Vivo e convivo com aquela que fui e não sou mais, como se me estranhasse na minha própria substância. 

Fui para a janela deste meu sétimo andar, tribuna privilegiada, onde em mim o sol pousava manso e doce. Onde por cima de mim, só tinha o céu e as gaivotas que faziam gala da dança que exibiam ...
Excluindo o acesso às superfícies comerciais lá em baixo, pouca gente na rua.
Um homem estendia a mão à caridade alheia ... p'ra dar de comer à família ... dava p'ra escutar.
Olhei em frente ... lá onde a D.Helena não voltará a assomar....
Olhei o terraço ... lá onde o Sr.Fernando não descerá outra vez ...
Olhei as dezenas e dezenas de motos, bicicletas e até um carro hoje vi, de entrega de "take-away"... um trabalho que se arrasta até bem noite dentro, com chuva, frio, ou intempérie, cumprido por faixas desfavorecidas da nossa população ...
Olhei o meu prédio onde no terceiro andar tenho a vizinha de uma vida, a morrer de cancro, numa degradação que não consigo aceitar ...
Lembrei o Pedro, lembrei o Rui, lembrei o Sr.Eduardo ...
Pergunto-me : E a D.Maria dos Anjos ?  Que será feito ?  E o viúvo da Dra.Joana ? E o Sr.Silva, o Sr. Ivo, a D.Milu e o seu grupo do Pigalle ?  E o Pigalle em si ... meio moribundo também ?
Tantos que adornavam a minha realidade, e que não mais responderão à chamada ...
A moldura humana que dava significado à minha existência, está irreconhecível.  O meu dia a dia, com as rotinas confortáveis e seguras que me levavam para a rua encontrar amigos, sentar  na  mesa, conversar ... tomar  café ...  inexistem.  Não  sei  se  algum  dia  se  reabilitarão ...

Os dias são demasiado longos e demasiado curtos.
Longos, porque pegam uns nos outros numa espécie de caminho insosso, sem nuances, derivações ou alternativas.  Uma paisagem igual, que não motiva nem convida.  O hoje pega com o ontem e com o amanhã, e quase já não descortinamos bem, onde estamos ...
Demasiado curtos, porque neste quase não valer a pena o recomeço, com o sol a dormir às seis da tarde, a escuridão desce e sufoca, tenho a sensação de ter saído da cama ainda há pouco e já estar a regressar ... 
Nos dias em que a caminhada integra o cardápio, sou obrigada a descer e a sentir o mundo lá fora.  Confesso que muitos deles, já sem nenhum élan para a fazer.
Nos dias em que fico em casa, pela vontade e a motivação serem nulas, não invisto em quase nada e quase nada me apetece fazer.  Circulo por aqui, passo demasiado tempo a contemplar o vazio lá fora.
Tento escrever, e cada vez com maior frequência é um esforço fazê-lo.  É uma sensação idêntica à que experimento com os dias ... pareço ter tudo e não ter nada para dizer !...

E pronto ... com razoável atraso em relação ao dia em que a iniciei, esta crónica sai hoje ... chocha, insípida, cinzenta, tão cinzenta quanto, ao contrário do domingo, esteve o dia de hoje ... bem mais igual a mim própria, afinal ...

Anamar

Sem comentários: