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domingo, 20 de agosto de 2017

" AQUELE DIABRETE "





A alegria, a boa disposição e a "corda" toda, são a sua imagem de marca.
Eu acho que vendo bem, vendo bem, o Kiko já nasceu a rir com aquele ar descarado, já nasceu com a agenda de afazeres preenchida para as décadas subsequentes, e um camião TIR de amigos e fãs para o resto da vida !...

É assim este puto reguila, de rosto sereno e iluminado, com uma bonomia com que amanhece e se deita, sem um pingo de gastura, aconteça o que acontecer ...
No "fair play", na desinibição  e na extroversão, "não há pai" p'ra ele.
É o meu terceiro, daquela fornada, com que se encerra cada Agosto, em cada ano.

Nasceu "ontem", e já leva um decénio de vida p'ra contar.
Vai iniciar a odisseia do segundo ciclo do Básico.  Mas nada disso constitui apreensão ou problema para o Kiko.
Já familiarizado com a coisa, mercê das vivências dos irmãos mais velhos, encara a "rentrée" escolar, como mero acidente de percurso, propiciador de reencontros com os colegas e amigos, propiciador de jogatanas de futebol com direito a joelhos esmurrados e tudo,  e depois, todas as outras actividades desportivas, extra-escola, no seu Sporting de coração.

Assim, cada início de ano, pós-férias algarvias, se resume a uma festa ainda maior se possível, na vida do Kiko.

É um menino doce, já o referi algumas vezes.
É o que primeiro chega à porta e se pendura no meu pescoço, quando os visito.
É o que se apresta a mostrar os cadernos, me narra os acontecimentos escolares, em carácter de urgência e me "aluga" o máximo tempo possível, para que nada fique esquecido.
É o que ainda me senta o cólo ... E como isso me sabe bem, na escassez de afectos explícitos por parte de todos os crescidos e dos que para lá caminham !...
Porque claro, as pessoas "crescidas" têm algum "pudor" em demonstrar manifestações mais "piegas", digamos assim.  Acho que deve ser isso ... ☺

O Kiko aniversaria hoje.  Já lhe chamei o "meu menino light "...
Desejo que o continue a ser pela vida fora, pois a boa disposição, o "fair play" e a ausência de stresses, são formas saudáveis de encarar a vida, são ferramentas inteligentes e a chave para que ela se viva num registo de arco-íris, em pleno, com responsabilidade e alegria, no seio de tantos quantos ( e são muitos, já o disse ), consegue reunir à sua volta, num círculo de amizades, que aquecem o coração e amparam ao longo da existência !

Por isso, Kiko, desejo-te um dia supimpa, ainda mais cheio de emoções fortes, peripécias giras e boa disposição, como são todos aqueles em que estás por perto !

Aqui de longe, beijinhos com todo o meu amor ... e não esqueças de guardar uma fatia de bolo p'ra mim, que sou gulosa como sabes !

Anamar

domingo, 30 de julho de 2017

" UMA VIAGEM DE CORAÇÃO ... "





O montado dormia ...
Afinal é quase Agosto e lá fora sentia-se claramente o bafo dos 40 graus que o termómetro acusava.
Nem uma aragem corria naquele braseiro.  Da terra ardente, levantava aquele halo de Alentejo interior que arfava ao respirar.  O castanho e ocre da charneca  ressequida, estendia-se até onde a vista alcançava.

Nem um som, nem um sussurro, sequer um gemido desprendido dos braços contorcidos dos sobreiros, figuras esfíngicas, sonolentas, resistentes, no recorte de um céu toldado pelo calor.

Sempre que os olho, rendo-me ao respeito, à admiração e à tenacidade.
São árvores guardiãs, algumas ancestrais, fiéis testemunhas de tempos e memórias.
De casca enrugada pela cortiça que as reveste, lembram-me os velhos encarquilhados, de olhos perdidos, com piriscas apagadas no canto dos lábios, que sempre esperam sem pressas, na sossega da fresca, pelos largos modorrentos das nossas aldeias ...
Também eles já são figuras silentes, também eles erguem olhares perdidos e implorantes ao céu, também eles se conformam tenazmente com os destinos ... sem exigências, expectativas, sequer esperanças ...

E ficam ali, pelas tardes dolentes, enquanto as badaladas do campanário vão ecoando, e as horas que recolhem o sol, avançam ...

No montado a tarde cai.  Alguma frescura se compadece ... As aves saem da sesta, para voos rasantes em busca do aprivisionamento para a noite.
As cigarras e os grilos desgarram.  Os cheiros e as cores daquele chão, sobem e abraçam-nos.
É o Alentejo a dar colo e regaço a todos quantos o deixam pulsar nas veias, rumo ao coração ...

Fui lá.
Ontem, fui lá, numa escapada de busca de arrego, de busca de paz e de partilha de afectos.
O monte estava lá, pertinho de Grândola, no âmago de uma terra que é morena e quer molhar os pés no mar, lá no outro lado da encosta.
Casa de amiga, que quando do coração, se torna casa nossa.
Cumplicidades, risos, histórias, conversas intermináveis e tão pingadas umas nas outras  quanto as cerejas o são ... memórias buscadas, dores relembradas e mitigadas pelo afecto que escorria,  numa conversa sem fim, à volta de uma mesa, na fresca do telheiro, na macieza de um sofá preguiçoso ... ou, caminho abaixo, na beira do tanque que refrescava os pés e nos soltava gargalhadas ...

Coisas que só entende quem as experimenta, que só são possíveis e permitidas por quem traz nas costas a sabedoria já doída dos anos, que só se tornam comuns e pressentidas  por amigas da mesma geração, com  linguagens  semelhantes, experiências  de vida  partilhadas  pelos  tempos e pelas épocas ...
Coisas simples, pueris e tão gratificantes, que nos levam outra vez lá atrás, ao fundinho das nossas estradas ...

Coisas de mulheres ... eu diria ... encontradas e partilhadas numa viagem de coração !...

Anamar

domingo, 23 de julho de 2017

" A GAIVOTA QUE GOSTAVA DE VERDI ... "



Abateu-se a tarde sobre a cidade.
Aquela luminosidade doce desceu, a brisa mansa corria.  As ruas estavam pejadas de gente bonita, de todas as raças e cores, que jogavam fora um bem estar de quem nada quer ou espera, num sábado à tarde ... Uma pressa sem pressa, numa cacofonia de palavras largadas, esvoaçantes e soltas em meio dos passantes ...

E eu por lá, ao largo, no largo ...
Verdi haveria de descer ao Chiado, em pleno Largo de S. Carlos, com o teatro à frente e a casa do "Mestre", atrás.
Pessoa circulava por ali. Bem que o sentia no empedrado silente do meu espírito.  Afinal, nascera, vivera, perambulara entre aquelas casas antigas, espreitara vezes sem conta a nesga de rio lá longe, em baixo ... parara pela Brasileira nas tertúlias ociosas, rabiscara versos, letras, palavras, com um cheirinho a céu de Lisboa ...

E depois, havia as gaivotas que em volteios incansáveis, asas estendidas, pescoços esticados, lembravam que o Tejo era vizinho e que a cidade é sua, de direito ...
Pairavam bem ali por cima, numa espécie de recepção e homenagem discreta ... cerimoniando o acontecimento .

Uma multidão colorida disputava os lugares sentados que já não existiam, acotovelava as esquinas, abordava o empedrado dos degraus, a soleira das portas, o poleiro das varandas sobranceiras ou, em última análise, simplesmente um pedaço de chão nas pedras da calçada ...
Lisboa fora chamada pelos acordes de um dos eventos culturais mais interessantes, generosos e fantásticos com que anualmente o Festival "Ao Largo"  mima a cidade, por estes meses de um Verão certo e seguro.
Ontem, seria Verdi o "mágico" de serviço, o virtuoso do mundo fantástico da música, o encaminhador do sonho que nos tomaria, ao escutá-lo.
A Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do S. Carlos, a soprano Cristiana Oliveira e o barítono Roland Wood, sob a batuta de Andrea Sanguineti, seriam os mentores da nossa evasão, seriam os fazedores do nosso fascínio e da nossa paz, numa viagem além do tempo e do espaço, num maravilhamento que não se descreve ... só se sente ... numa magia sem tamanho, enquanto a noite nos foi tomando conta ...

E Verdi desfilou.
A Traviata, o Rigoletto, a Aida, Macbeth ou Otello ... o Baile de Máscaras, Il trovatore entre outras peças inconfundíveis, culminaram com o tão extraordinário quanto esmagador Coro dos Escravos Hebraicos de Nabucco - Va, pensiero ...
Essas notas, esses acordes, a força dos tons imperativos, doídos, suplicantes dessa ária, sempre arrancam em "pianíssimo" um trauteio irresistível, enquanto que um arrepio nos percorre o corpo e os olhos se tornam involuntariamente húmidos ...

Toda a noite a olhei ...
Sobre a grinalda em pedra que encima as armas reais da Coroa portuguesa, na fachada do edifício de características neoclássicas e inspiração italiana setecentista, profusamente iluminado em festa, ela, aquela gaivota certamente de ouvido apurado, olhos perscrutantes e esmerado sentido estético, se abancou, meneando-se deleitada, ora num pé, ora noutro, bico p'a esquerda, bico p'ra direita, penteou as penas, ou sonhadora e estática simplesmente se quedou ...
Era presença real, imponente, imperturbável ... indiferente ao correr do tempo ...
Desejava talvez, tal como eu, que ele não passasse, para que  não fosse subtraída ao sortilégio que experimentávamos ...
Cá de baixo, eu acho que lhe via os olhinhos ... e julgo não mentir, se disser que ela sorria ...

E nem as notas mais troantes, os compassos mais estridentes, ou o esvoaçar céus fora das vozes fragorosas do coro, a estremeceram, assustaram ou afastaram ...
E ficou  solitária, extasiada, sonhadora ...

Giuseppe Verdi estava no Largo ... e aquela gaivota gostava de Verdi !...



Anamar

quarta-feira, 19 de julho de 2017

" POR JUSTIÇA ... "




" Há uma vila portuguesa entre os melhores destinos medievais da Europa"

Li esta frase nos media e agucei a curiosidade.

Eu, que tenho um fetiche imenso por me perder pelos destinos inóspitos deste país ... eu, que valorizo além da conta render-me à quietude de ruelas tortuosas do nosso interior ... calcorrear o empedrado silencioso das  aldeias mágicas povoadas pela ausência de vivalmas ... eu que sonho ao som dos sinos nas avé-marias dos campanários, e me emociono com os chocalhos de regresso aos estábulos pelo cair da tardinha ...
eu, que sou apaixonada pela autenticidade de gentes e locais sem maquilhagens ou disfarces, e que detesto por isso, as grandes metrópoles, de ritmos alucinantes e ciclópicos ... fui ler, por inteiro, o texto  que a frase supra-citada titulava.

Que vila, neste caso de uma vila se tratava, cumpriria os requisitos desejáveis para ser considerada um dos melhores destinos medievais da Europa ?
Seria o caso de  por lá, eu já me haver perdido alguma vez ?

Curiosa mas não surpreendentemente, pelo menos para mim ( e tenho a certeza, para muitos ), a vila eleita para este desígnio, era exactamente a vila de Marvão !

Pois bem, em Marvão me perdi não uma nem duas vezes ... mas mais, e sempre me pareceram de menos !...

Empoleirada no alto de S. Mamede, ostentando o seu castelo medieval, lá, onde "as águias voam de costas", tomando a perspectiva indiscutível do nosso Aquilino ... Marvão é de facto uma jóia rara no Alentejo interior deste país.
Tão interior  que, paredes meias com os nossos vizinhos espanhóis, é uma janela aberta e franca ao lado de lá, para além daquela linha imaginária que desenha a fronteira dos povos.

Marvão é terra de silêncios, terra de brisa sussurrante entre  meio dos rochedos alcantilados.  É balcão que se assoma planura adiante.  É parada  de mistérios inconfessados e alcova de amores e amantes perdidos nas ruelas sem rumo ou norte ...

Marvão nunca se me explicou.  Tão só se deixou sentir-se...
Mostrou-se, despiu-se, deu-se, gravou-se na minha pele, sem pergunta nem resposta, sem dúvida ou reticência, sem tempo ou idade ...
Marvão foi lenda, foi história, foi marco ... foi destino !...
Marvão foi indelével paixão para todo o sempre !...

Anamar

quarta-feira, 10 de maio de 2017

OS MEUS " SILÊNCIOS "





Publiquei há dias um livro.  Um livro insuspeito ... de poesia... Todos esperavam um, de prosa.
Uma espécie de pirraça do destino, neste caso o meu destino literário.
Desde que me conheço mais ou menos, que sempre rabisquei nos papéis que me acompanham em permanência,  frases, ideias, textos, crónicas ...
Às vezes coisas terminadas, outras, coisas incompletas  para burilar, para repensar, para "mastigar" e "digerir", se for o caso.
O futuro ? É sempre incerto ! Algumas agradam-me e ficam ... outras têm um fim triste à espera !

De há uns tempos a esta parte,  reincidi, mas em poesia ... nunca lhe dando, contudo,  valor particular. Sempre achei que a minha expressão poética tem muito de "demodée", face às correntes actuais de escrita sem nenhum tipo de preocupação de rima.  Escreve-se quase sempre em texto poético e chama-se-lhe poesia.
Não discuto  nada disto.  Não tenho conhecimentos  literários de estilos e suas características, em profundidade suficiente que possa pronunciar-me.
Fui "formada" com poesia clássica ... vou chamar-lhe assim.  Florbela e os seus sonetos, uma inspiradora musa, sempre presente!
Assim me formatei, e assim comecei a dar pequenos passos neste mundo.
No entanto, sempre volto à mesma. Para mim, um poema tem que ter um ritmo melódico, uma "música" por detrás, um fundo de vai-vem de ondas no areal ...
Sem esse desiderato, dou a coisa por imperfeita e inacabada ... em suma, insatisfatória !

Ainda assim, e continuo surpresa com os acontecimentos, as críticas têm sido generosas e muito positivas! Quase me convenço que ... talvez ... quem sabe... eu esteja a ser redutora e implacável comigo mesma.

Bom, por insistência de amigos que me impediram de delapidar o incipiente entusiasmo inicial, lá publiquei o dito.
De seu nome "Silêncios", porque alberga dentro de si, estados de alma, sentires, emoções que não se descrevem de viva voz ... Que apenas se pressentem e adivinham nos longos silêncios que povoam a minha vida.
Por assim dizer, cada poema "de per si", fala da profundidade do meu "eu"  interior, e conduz o leitor, creio, exactamente à quietude da minha interioridade silenciosa, lá longe, naqueles recônditos lugares algo inacessíveis, que são o meu coração e a minha alma.

Fez-se uma festa ... e isso, foi de facto o grande prémio que me dei.
Dei asas aos sonhos, "viajei" na alegria de ter tido comigo quase todos os amigos, de longe e de perto que me estreitaram no laço de uma amizade que não tem tamanho, idade ou tempo ...
Senti-me menina mimada, acarinhada, embalada nos braços e nos colos de todos os que responderam à "chamada" ...  Foi uma felicidade só !!!
A festa fez-se de flores, fez-se de música, de risos, de sonhos ... e também de lágrimas. Muitas lágrimas correram ...
E esse 2 de Maio virou  uma das datas do meu calendário pessoal ( eu, que sou avessa às calendarizações oficiais impostas socialmente ), a nunca, nunca mais ser esquecida !

As pessoas parabenizam-me pelo sucesso ...
Sucesso ?  Não !  Apenas realização pessoal.  Uma espécie de realização de compromisso de mim para mim, uma espécie de concretização de alguma coisa importante, que se vinha adiando na minha vida ... tão só !

Como diria o Chico ... "Foi bonita a minha festa pá" !!!...

Anamar

segunda-feira, 6 de março de 2017

" EM JEITO DE BALANÇO ..."




Folheei em retroespectiva as páginas do primeiro volume deste blogue.
Datam de 2007, ano em que de repente, brincando, tacteando, experimentando, dei os primeiros passos neste mundo da blogosfera.
De quando em vez gosto de reler os meus escritos à época, até porque através deles consigo visionar o que eu era, como era a minha realidade, quais os meus anseios, inquietudes, angústias e assomos de felicidade.
Porque eu sou assim, e sempre deixo escorrer através das minhas letras, os meus estados de alma, sem preocupações, maquilhagens, disfarces, máscaras ...
Eu sou de facto assim, e "dispo-me" sem reticências, sem receios de valorações, sem preocupações do socialmente correcto ou incorrecto.

Se de alguma coisa eu sou dona, neste mundo, é das minhas escolhas, decisões, sentires... e livre arbítrio, também ... sem sustos ou pudores.
A idade entretanto vai-me conferindo independência, despreocupação, "estatuto" ... O tal estatuto que eu acredito ser de facto "um posto",  nesta vida.

Já vou em quinze volumes das postagens que aqui deixo.  Passei todas as publicações, comentários e afins, a suporte de papel ( sou da velha guarda, não esqueçam ... e esta coisa da net, da "cloud", "Dropbox", "OneDrive", pouca confiança me dá, dados os "cataclismos" por vezes ocorridos neste mundo virtual ), e com eles elaborei ano após ano, uns livritos que "enfeitam" a minha estante ...

Será herança patrimonial para quem cá ficar e os queira.  Valem o que valem, poderão interessar ou não, aos meus continuadores ... Um dia terão um fim previsível, creio !

Uma das coisas que me chamou a atenção, nesta romagem à que eu era então, foi a hora a que debitava quase sempre, os meus textos. Verifiquei que varava a noite com toda a displicência, que escrevia preferencialmente na calada da madrugada.
Três da manhã, nessa época, era início de serão para mim.  Refiro com frequência que "sono nem vê-lo", e parece ser verdade que a concentração, a paz e o recolhimento eram requisitos acontecidos, potenciais produtores dos meus relatos.
Parece-me também, ser eu então possuidora de um discurso algo esperançoso, interessado, entusiasmado e entusiasmante, frequentemente.  Sinto em mim, olhando hoje o espelho que me reflecte, que aquele estava imbuído de uma postura de crença face ao futuro, de alguma determinação, expectativa doce, de alguma combatividade.
Eu era alguém com garra, convicção, aposta ... vontade !
Eu acho que acreditava mesmo, que a coisa iria adiante, que eu ainda teria muita história p'ra viver e contar ...

Passaram quase dez anos ... Como a tirania do tempo nos confina mais e mais à realidade, e nos corta as asas do sonho !...

Hoje, já constitui um sacrifício ... ou pelo menos uma desaposta, o esticar da noite madrugada fora.
Hoje, o meu discurso remete-me quase sempre, para uma introspecção reflexiva e algo doída, da minha existência.
As minhas palavras parecem ser mais azedas, mais cansadas, menos confiantes e esperançosas. Mais acomodadas, talvez !
Nos meus textos detecta-se, creio, o enrugado de marcas indeléveis e sem remissão, deixadas pelas intempéries da vida, sem perdão ou piedade.
Sinto uma mornidão que me exaspera e desanima.  Sinto falta da loucura, da adrenalina, do riso, da alegria e da "pedalada" que me norteavam então.
Sinto falta daquele valer a pena que insuflava  o meu espírito e velejava no meu coração.
E pergunto-me : pode uma década ser tão carrasca e impiedosa na nossa saúde física e mental ?
Podem os reveses e as desilusões, os sonhos derrubados e incumpridos, deixar tantas marcas, estragos e destroços numa vida ?!...
Podem os anos, confinar-nos a Invernos sem Primaveras que os sucedam ?!...
Podemos deixar que uma desistência instalada nos tome conta, nos avassale e nos adormeça nos anseios legítimos de quem ainda está vivo ???!!!...

Quero horizontes !  Preciso de pôres, seguidos de nasceres de mais sóis e luas  !  Preciso de pintar, outra vez, o céu com estrelas !
Preciso de refrescar a minha capacidade de deslumbre. A minha capacidade de emoção.
Preciso de recolorir o verde da minha esperança !
Preciso ganhar outra vez asas e sabedoria de voo.  Preciso redescobrir as coordenadas de viagem !

Preciso amar outra vez !  Rebentar de paixão !  Rir loucamente e insanamente soltando a criança, a jovem ... a mulher madura que já fui !
Preciso desgrenhar os cabelos no vento, abraçar o azul embalador do mar, conjugar outra vez convictamente, os verbos "querer", "acreditar", "apostar" e ... "VENCER" ...

Meu Deus ... como preciso !!!...

Anamar

quinta-feira, 2 de março de 2017

" OS NINHOS "






"Os ninhos "

Os passarinhos tão engraçados,
Fazem os ninhos com mil cuidados
São para os filhinhos que estão para ter
Que os passarinhos os vão fazer !

Nos bicos trazem coisas pequenas,
e os ninhos fazem de musgo e penas
Depois, lá têm os seus meninos,
Tão pequeninos ao pé da mãe.

Nunca se faça mal a um ninho,
À linda graça de um passarinho !
Que nos lembremos sempre também
Do pai que temos, da nossa mãe !

                               Afonso Lopes Vieira


As andorinhas iniciaram a sua faina no beiral  lá de casa ... contei ontem.
Revimo-las com sorrisos nos rostos e enternecida admiração.  Afinal, auspiciam tempos felizes e promissores aos lares hospedeiros que escolhem.

A minha mãe, com 96 anos à beira de serem cumpridos, tem uma idade mental quase permanente, talvez de uns 5 ou 6.  A demência progressiva que lhe tolda a mente e o raciocínio, transformou aquela mulher decidida, capaz, viva e independente, num simulacro de gente.
Transformou-a numa criança de tenra idade.
Neste momento, a minha mãe adora os patos da lagoa, fala e trata indistintamente os animais com a pieguice e a ingenuidade protectora de uma criança, infantiliza todas as suas posturas e todas as suas conversas.

Já me martirizei demais por tudo isso. Já me angustiei e rebelei demais contra o destino.
Mas como p'ra tudo o que é irremediável, e que ainda por cima se arrasta temporalmente, devemos encontrar estratégias de convivência  por forma  a defendermo-nos psicologicamente, também eu deixei de chorar, de me amarfanhar, de me revoltar, até mesmo de querer entender.

É simplesmente assim, nada se pode fazer além de lhe falar com a máxima doçura, aceitação e paciência.
Os diálogos parecem tirados de um jardim infantil.
Por isso lhe conto vezes sem conta quem é quem, na nossa família tão pequenina.  Por isso lhe repito os nomes de cada um, desde os pais, ao marido, às netas, bisnetos ... ao meu próprio, e lhe reavivo quem ainda vive, quem já partiu e todos os pormenores referentes à sua vida actual e pregressa.
Por isso lhe fiz, a seu pedido, um esquema  com todas as personagens que a atormentam, quando não consegue lembrar ...
E ri, quando diz que "já fez o trabalho de casa" ao ler e reler essa folha ...
E ri, quando me pergunta : "Filha, então tu és o quê, meu ?"... E fica eufórica  quando a esclareço.
"Ah.... agora já sei que és minha filha !  Já não me engano mais !"....

Também se fascinou com a chegada das andorinhas.
Dizia-me hoje que elas haviam voltado porque sabiam que ali iam encontrar as suas casinhas.
Adora ir, na cadeira de rodas, ao terraço ver as sardinheiras em flor ( que a extasiam ), e o avanço dos ninhos em laboriosa construção.

E então do nada, surpreendentemente, com ar de menina levada de bibe e ardósia, começou a declamar-me, sem erro, as primeiras estrofes deste enternecedor poema de Afonso Lopes Vieira, que aprendera na escola, que fazia parte do seu Livro de Leitura e que por momentos a transportou a um passado longínquo e difuso, espantosamente claro, que a deixou tão feliz !

E eu nem sei bem descrever o misto de sentimentos que me tomou ... Estupefacção, ternura, alegria e tristeza ...
Como a mente humana é insondável e como os mecanismos mentais que norteiam o Homem ao longo da sua existência, fogem ao domínio da nossa compreensão e capacidade de entendimento !
É como se houvesse sempre dentro de nós, um eco que persiste e nos coexiste através dos tempos, rumo à Eternidade !

Por momentos,  a minha mãe  voltou a ser menina outra vez !

Anamar

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

" ORAÇÃO VESPERTINA"




O último pássaro atravessou este céu empalidecido.
Ia sozinho, decidido, rumando ao horizonte, em recorte esfíngico , contra as pinceladas laranja desenhadas num azul diáfano, diluído ... líquido, eu diria ... deste fim de dia.
É um céu de paz e serenidade, este que se desenha frente à minha janela.
É um recolhimento absoluto, esta hora de dormir, em que a Natureza emudece e se apazigua.
Não há perturbação, não há ruído ... é uma hora de privilegiado comprazimento. É uma hora de intimismo perfeito.  De equilíbrio e harmonia.
Em que a beleza que não se descreve é um louvor que se eleva ao infinito.
É uma oração celestial de gratidão pela arquitectura perfeita que nos envolve.
É um enlevo que nos emociona, por tão insignificantes, merecermos tanto !...

Sempre silencio, no recolhimento de claustro de abadia ... nem sei explicar o quanto !
Pareço não querer tocar o que vejo, o que sinto, o que perscruto.  Porque tocando, perturbaria este milagre que se me desenrola perante o olhar ...
Breve, Vénus, a primeira "estrela" do firmamento, se acende, na guarda do rebanho que aí vem, à medida que a escuridão desce.
E uma poalha generosa ponteia e pinta, como nenhum pintor o sabe fazer, esta abóboda de veludo aqui por cima.

Fim de mais um dia que nos foi dado viver ...

Anamar

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

" EU TORNEI-ME GAIVOTA ... "


O bando dá em passar por aqui, nestes fins de dia.
Quando as luzes do céu já se fecharam, quando o cinzento que se estende até onde a vista alcança prenuncia borrasca pela noite que se avizinha, elas passam pressurosas numa urgência lida, de busca de poiso para a pernoita.
Seguem na mesma direcção ... todas ... muitas, ordenadamente, como quem voa sem dúvidas no itinerário ou sequer no destino a alcançar.
Vão determinadas.  Conhecem o objectivo ... e têm urgência.
Afinal a noite aproxima-se, o mar está longe ... e a tempestade anuncia-se ...

São elas, as gaivotas, sobre quem tanto sempre escrevo.

Olho-as, "sigo-as", projecto-me através delas na liberdade de todo um firmamento por minha conta.
De todo um  mundo sem barreiras ou limites que o definam.
As gaivotas despertam-me desejos do que só adivinho e que está para lá do que alcança a mente humana.
Falam-me das asas que não tenho, transportam-me as saudades que me pesam no coração, levam-me recados sem endereço ou morada ...
São estafetas dos sonhos que me moram na alma.  Falam-me dos horizontes sem horizonte da vontade indomável que me habita ...
E dizem-me do mar, morada eterna de meu repouso e sono.
Dele, contam-me os seus segredos salgados e embalam-me na melopeia das ondas que adivinho num desmantelo ... lá longe !
E mostram-me o vento que lhes despenteia as penas, e sempre me desafiam a partir ... embora eu só as veja por detrás da vidraça que  me torna refém de mim mesma ...
Tenho a certeza que passam aqui p'ra me justificarem a imaginação e o devaneio. Para me acicatarem a vontade... p'ra me confrontarem sem remédio, com as minhas raízes e escoras ao chão que habito ...

E contemplo-as longamente ... melancolicamente ... persigo-as com o olhar, até onde a vista mo permite e me espicaça ...
É uma nostalgia errante a que me aperta aqui por dentro, por vê-las partir ...
É uma orfandade doída, a que me deixam no peito quando me percebo, injustamente, mais só ainda ...

E acabo indo ...
E parto no bando, lado a lado, aprendendo a contornar os golpes de ar, aprendendo a preguiçar na orla das nuvens, aprendendo a brincar nos volteios da ventania, desbravando as estradas do céu, saboreando os salpicos das marés, equilibrando-me  no pico das escarpas altaneiras ... e sendo dona dos areais  infinitos, agora que as praias ficaram vazias ...

De repente eu aprendi um caminho, eu rescrevi a minha história ... eu ganhei asas ... eu tornei-me gaivota !!!

Anamar

terça-feira, 30 de agosto de 2016

" BEM HAJAM ! "



Atingi as 50000 entradas, aqui no meu blogue, e não posso obviamente ficar indiferente a isso.

Começado há uns anos, meio a brincar, meio a sério, tem mantido até hoje as características que intrinsecamente  sempre o nortearam : é fundamentalmente um espaço intimista, um espaço privilegiado de diálogo comigo mesma, de reflexão ... também de escape.

Nesta vida de individualismo feroz e indiferente, de falta de tempo e disponibilidade para partilhas e encontros, de egoísmo e desumanização, a solidão deixa as pessoas mais e mais confinadas a células anónimas, isoladas e esquecidas.  Ilhas no meio de multidões !
Vive-se, sobretudo na cidade grande, num abandono infinitamente maior ao experimentado nas aldeias mais inóspitas e perdidas.
Porque aí, as comunidades, independentemente da sua dimensão, são gregárias, são familiares, são de dimensão afectiva.

Aqui, vive-se o silêncio, o esquecimento e o abandono.
Aqui, sobrevive-se ...

Por isso, este espaço é também um espaço de afectos. Assim o pressinto e assim o entendo.
Os afectos sem rosto, nome ou rótulo que se expressam por todos quantos, anonimamente o buscam, o lêem, com ele talvez se identifiquem.
Resta-me pois registá-lo, congratular-me e agradecer !

Tenho produzido muito pouco nos últimos tempos.
Parece que estou a desaprender a escrever ...
A vida e eu, há largo tempo, não estamos a falar a mesma linguagem ...  A desesperança e o cansaço instalam-se.
Tempos difíceis estes ...

Reitero assim os meus agradecimentos a todos vocês, aí desse lado, nesse universo anónimo do virtual, vocês que por momentos vão cruzando as vossas vidas com a minha, neste destino que se faz e que se cumpre !

BEM  HAJAM !!!

Anamar

sábado, 20 de agosto de 2016

" AQUELE MENINO "




O Kiko fecha o ciclo agosteiro de aniversários, por cada ano.

Há nove anos que está connosco, e é o terceiro de três irmãos em escadinha de três anos, como já contei muitas vezes.
Chamei-lhe uma vez, um "menino light".  De facto, não encontro outro vocábulo que melhor o defina.
O Kiko acorda a sorrir, vive a sorrir, não há o que o apoquente ou faça mudar de humor.
Conversador permanente, inquisitivo, extrovertido, defensor das suas ideias, tem uma preocupação constante em ser pormenorizadamente claro no que expõe.
Reúne e cerca-se de um fã-clube interminável, de adultos a crianças.
Amigos dos pais, amigos dos irmãos, amigos seus, do colégio, do desporto, de todo o lado ... Ninguém consegue ficar indiferente à simpatia cativante daquela criança !
Desinibido, interessado, participativo, é o produto final da "escola" recebida de dois irmãos mais velhos.

Tudo tem sido simples, na educação do Kiko.
Afinal, é o terceiro filho, e os pais, nestas circunstâncias, já "descomprimiram" das ansiedades e obsessões excessivas, com que normalmente educam os primeiros.
Também, a experiência acumulada com as primeiras crianças, mais alguns anos que já passaram entretanto, um acréscimo de maturidade e sabedoria, normalmente facilitam as coisas, e desanuviam esta nova experiência.
Quem beneficia são, em primeira linha, obviamente os miúdos, mas também os pais e a relação de convivência existente entre todos.

Penso por isso, que de alguma forma, o Kiko é possuidor de um certo "know-how" facilitador, por ter sido criado mais solto, por ser chamado a resolver-se, resolvendo as situações, por ter percebido desde sempre, que a divisão de tarefas, a interajuda, a colaboração participativa de todos e a responsabilidade individual, são a chave da felicidade e de uma vida mais simples, equilibrada e inteligente !...

Este ano, no regresso das minhas férias, tinha o Kiko à minha espera, no aeroporto.
Ele a irmã correram a dependurar-se do meu pescoço ... e de imediato, esqueci o cansaço da viagem !!!

O Kiko trazia debaixo do braço, um jornal desportivo, e resolveu aproveitar o meu regresso a casa, para me actualizar sobre as "últimas" do seu Sporting : as transferências de jogadores importantes do plantel do clube, ora a decorrerem ... Mais me informou, de uma forma exaustiva, das suas preocupações com as inerentes conseqências,  monopolizando a minha atenção para o que reportava como muito importante !!!...
Era quase um homenzinho a falar !!!...

Este é o Kiko ... o puto mais bem disposto que conheço, o menino de sorriso franco e aberto, face a tudo o que o rodeia !

Hoje é o seu dia.
Que seja mais um dia feliz, na senda de todos os que a vida lhe reservar ... é o que daqui, embora longe, lhe desejo e vaticino !

UM  BEIJÃO, meu amor !

Anamar

sábado, 13 de agosto de 2016

" ESTE INESQUECÍVEL MÊS DE AGOSTO "




Foi um Agosto tão quente quanto o que ora se vive.

Lembro que por esta altura, eu já não me mexia, arrastava-me.  Na cama, não me voltava ... rebolava. Tinha um "barrigão" daqueles, que para olhos sabedores, vaticinava a chegada de um rapagão.
Barriga de primeira gravidez, numa altura em que o controlo do peso não parecia ser coisa preocupante.  Comer por dois ... era ainda o lema !

Ecografias não existiam. O sexo da criança haveria tempo de saber-se.
Menina era o que eu queria ... menino, o que as pessoas afiançavam iria ser.
Pelo sim pelo não, roupinhas em defensiva ..
Nada de muitos rosas ou azul-bébé comprometedores.  Uma coisa assim mais para os azuis escuros, vermelhos, amarelo pintainho que eu detestava, ou mesmo verde, o que era pior ainda !...

E Agosto contemplou o meu desejo.  Uma rapariga com quase três quilos e meio, caíu-me no colo !
Uma menina de porcelana, de cachos loiros e olhos verdes. Uma boneca, para os meus vinte e dois anos ...

Muitos anos já passaram entretanto ...
Esta história já contei vezes de mais !  Mas sempre me enterneço ao relembrá-la ...
Agora ela aí está, mãe por três vezes ... duas delas em Agosto !

Somos uma família mínima, hoje em dia.  Sete pessoas apenas, que se ligam estreitamente por laços de sangue ... Três, a aniversariar em Agosto !

O António, o primogénito da escadinha dos três, não foi de modas.  Escolheu o dia do aniversário da própria mãe, para também ele, conhecer este mundo.
Assim, o 13 de Agosto traz-me o "pack" duplo !

Quando o relógio marca   00 : 00 , sempre  telefono. É tradição cultivada .
A mãe diz-me : " Já são muitos, mãe !"...
O António surge-me do outro lado, com a voz totalmente mudada, nos seus quinze anos.
Voz de homem num rapazinho de corpo espigado, quieto, de poucas palavras.  
" Obrigada, avó" ... em escala de graves... ( rsrsrs )
Idade complicada esta !...

Fiquei meio sem jeito.
Onde está o menino que eu adormeci, para quem tocava os discos infantis, o menino também ele loirinho, em fotocópia impressionante da mãe ??!!!
Por onde ficou aquela criança que me povoa a memória e que não consigo já sobrepor a este jovem, que tenho à frente ???!!!

O tempo !...
O tempo vai contando as histórias, vai fazendo as vidas, vai-nos deixando assim, meio perplexos, atontados, gostosamente estupefactos e enternecidos, como se de repente, sem que o tivéssemos percebido, os caminhos se tivessem desenrolado  à nossa frente, embora à nossa revelia ...

Parabéns Cláudia !  Parabéns António !
Prometo ficar mais atenta, para que não me cresças assim, como se eu não desse por isso, e nem sequer tivesse sido convocada para esse milagre !!!
Dia imensamente FELIZ para os dois !

Anamar

segunda-feira, 11 de julho de 2016

" O SONHO COMANDA A VIDA "




O país deitou de verde e vermelho ... amanheceu de verde e vermelho ... aliás, eu nem sei se houve noite !

Esqueceram-se as dores, esqueceram-se as mágoas, os anseios, as dúvidas e as incertezas ...
O país abriu um parêntesis, e suspendeu-se por um tempo.
Este, o sortilégio do futebol !...
Ou melhor ... este o sortilégio da concretização de um sonho sonhado, que parecia inalcançável, e afinal, o não foi !
E era um sonho tão imenso, tão acarinhado nos nossos corações, que teve a dimensão do seu tamanho ... ou seja ... infinito !

As pessoas mobilizaram-se em redor da nossa esperança.  As pessoas uniram-se em torno do que merecíamos.  As pessoas reacreditaram, como se reacredita em causas nobres ... aquelas que o coração alberga ...
Parecia legítimo que um pequeno rectângulo aqui esquecido nesta Europa de Deus,  uma pequena terra engenhosamente tratada como enteada dos privilegiados ... um pequeno país, ardilosamente segregado pelos donos de tudo ... parecia justo, dizia, que erguesse a cabeça, se mostrasse ao mundo, com a cara e a coragem de quem lhe deu a História!
E Portugal, com a humildade que nos talhou, com a força e a determinação de quem nos forjou e com a coragem e a fé do sangue que indistintamente nos corre nas veias, acreditou, perseverou, alcançou !
Lutou, agigantou-se e valorizou-se, sem baixar a cabeça e sem se acobardar, frente ao favoritismo dos que são favoritos, só porque o são, mesmo que o mérito lhes possa não corresponder.

E mostrando uma vez mais que querer é poder e que um sonho que se sonha junto, vai muito além da força do simples crer, fomos adiante e cumprimos uma vez mais, o destino !
E a História voltou a fazer-se com a mesma tenacidade, arrostando marés adversas, ventos de temporal, e tocaias plantadas no caminho...

E hoje, as ruas, as praças, os viadutos, as pontes, tudo quanto era uma nesguinha de chão, um pedacinho de terra, o topo de uma estátua ... ao sol ou à sombra, sentados, ou em pé, horas perdidas desde a madrugada ... havia um português presente de corpo e alma, agradecido àquela gente que deu o suor, o esforço, e o sangue por uma causa que cresceu, que avassalou, que unificou, que varreu e que se tornou a onda gigante e incontrolável de nos sabermos felizes !

A onda que fez de cada um de nós, amigo do desconhecido ao nosso lado...
Que nos fez rir do nada, que nos tornou crianças irreverentes nos saltos e nos gritos, que nos uniu nos cânticos, nos slogans, no Hino ...
A mesma onda que foi uníssono no Brasil, em Timor, em Cabo Verde, em Angola ... em todos os países onde as nossas raízes nunca deixaram de dar flores e frutos ... nas bocas de todos os emigrantes que ponteiam o mundo de pedacinhos de Portugal ...
A onda que nos envolveu na bandeira da nossa vontade ...
A onda que nos prendeu uns aos outros com os cachecóis do nosso contentamento, que nos pintou e iluminou com as mesmas cores ... o verde, o vermelho e o amarelo dos nossos castelos, uma vez mais inexpugnáveis!...

E este pequeno país periférico, este sul de uma Europa chauvinista e xenófoba, este nosso torrão natal ... "lá bas", para uma França que teve que nos engolir ... mostrou de novo a sua raça, acordou de novo os seus brios, fez da dor uma força sem tamanho ... e encheu-nos  os corações, com uma alegria sem medida !
E Portugal fez-se presente na Europa, fez-se Gente no mundo, fez-se desígnio do destino !

Não vou acrescentar mais nada a tanto quanto tem sido dito, contado, falado, dissecado .  Todos vivemos tudo, bem de perto.  Todos sabemos exactamente de tudo.  Todos sofremos, rimos, chorámos, barafustámos, apoiámos os nossos putos !

Eu, fico com uma dívida de gratidão acrescida, a esta vitória :  a minha mãe que caminha para os 96 anos, viveu um dos dias mais felizes da sua vida.
E ela que com grandes períodos conturbados de demência, atravessa agora um privilegiado tempo de alguma acalmia mental, diz-me que já pode morrer em paz ... e não importa que daqui a quatro anos já não possa assistir ao novo Campeonato, já que este lhe deixou o coração pleno de felicidade !...

Anamar

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

" COMO UM PRESENTE DE NATAL ... "






Liceu Nacional de Évora - MEMÓRIAS


As gaivotas voavam em bando  bem  aqui por cima.
A tarde estava cinzenta, emborrascada, desalinhada.   Elas também.
Parecia não se chocarem  nos céus, apenas por acaso, num remelexo indisciplinado, acompanhado de grasnidos cortantes.
Tinham pressa, as gaivotas, uma estranha pressa de recreio de criançada.  Uma aparente hora de ponta lá pelo alto.
Perdi-me por ali, quieta, apenas olhando e pensando, do alto do meu sétimo andar : como o tempo nos foge !  Como corre célere, dobra esquinas, voa nas rectas, desaparece no nevoeiro, escapa-nos na vida !...

Hoje experimentei viver uma espécie de milagre.  Um milagre de Natal, seguramente !
É certo que os milagres têm tamanhos, talvez.  Talvez tenham graus, julgamos ... mas não deixam de ser milagres !

E entrar na máquina do tempo, recuar mais de meio século, abrir cortinas e espreitar ...
Desencaixotar imagens, reabilitar rostos, desempilhar emoções, faxinar a poeira dos anos como quem abre uma arrecadação de conteúdo meio esquecido, como quem viola um baú arquivado que não cogitávamos arejar ...
Esgaravatar em lembranças algo difusas já, em memórias meio empalidecidas, rebuscar histórias que nos fogem, e querer agarrá-las com desespero, antes que se esvaiam de vez, só de pirraça ...
Virar menina outra vez , pegar na pasta, vestir a bata, calcorrear as ruas, procurando nas calçadas o eco dos meus passos de então ...
Esperar de novo que o sino interrompa as brincadeiras, o jogo do "mata" e do agarra,  no encaminhamento da meninada para as salas ( será que ainda toca ? ... )
Olhar o sr. Francisco , miudinho, mexidinho, pelos claustros ... afobado, no uniforme de botoadura dourada ...

... requer uma robustez de coração, e uma estrutura de alma que não lembra ao Diabo !  ( rsrsrs )

Pois foi o que me aconteceu neste dia cinzento, de gaivotas em algarviada nos céus aqui por cima.

Quando as tecnologias da actualidade  ( que invadem, quantas vezes abusivamente as nossas casas e devassam as nossas vidas além da conta ), resolveram surpreender-me e me deixaram bem no colo, um "embrulho de Natal", com laço de fita e tudo, com estrelinhas em piscadela, recheado de surpresas e emoções, de sorrisos e de afectos resguardados nas memórias, conservados nos tempos, partilhados nos corações, arquivados na vida  ... eu fiquei pasma, enquanto o sorriso enternecido e a lágrima emocionada se atropelavam, na pressa de romper  !...

Sensação de contornos difíceis de definir... Surpresa, alegria, ternura ... saudade !
Sim ... saudade, o sentimento maior de todos eles, sem sombra de dúvida !...

Bem haja a quem tenazmente me "procurou" ao longo dos tempos !





Anamar

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

" UMA CARÍCIA NO PEITO "




E o S.Martinho que não nos falha !...

Se há santo em que tenho obrigação de acreditar, é mesmo nele !
Ano após ano, por mais "entruviscada" que esteja a situação, por maiores negaças e caras feias que o céu, as nuvens e o sol nos venham fazendo ... é inevitável.  Tudo dá a volta, e este "break" climatérico sempre se instala.
Os dias azulam outra vez, a temperatura ameniza, a Natureza deslumbra-nos de novo com o seu traje de gala ...
E de repente apetece passear pelos caminhos, ora cobertos de folhagem dourada como os dias que fazem ...

São envolventes.  Amanhecem transparentes  e diáfanos.  Juram permanecer sempre assim até que a noite suba.  Têm um sol ímpar.  É particular, distinto, indizível !
É um sol que fecha definitivamente a porta às estações luminosas e amenas que já foram, e abre as portadas às sombras, à interioridade, à penumbra dos dias curtos, agrestes, cinzentos e entristecidos que hão-de chegar ...

É um sol que não se define.  Só se sente!...
Porque não há vocábulos no léxico, que nos digam com perfeição, como ele é, de verdade !
Lembra um colo, lembra a doçura de um cachecol em dias frios ... a fofura de um novelo de lã !...
Tem a cumplicidade de um beijo longo, tem a envolvência e a segurança de uns braços queridos ...
Penetra e entranha, numa devassidão consentida ...
Aquece as fímbrias da alma e adoça o coração, com generosidade ...
Dá-se, sem perguntar !...

E depois, tem o brilho resplandecente das auras santificadas, em capelas penumbrentas.
Pinta-se no arco-íris, com tonalidades insuspeitas, e que nenhuma paleta conhece ...
É claro, luminoso ... afaga.  É um sol de despedida e de carícia, que oferece o melhor de si antes de partir ... para que se retenha na memória ...
Tem  o  cheiro  das  castanhas  que  estalam  no  assador,  e  o  alaranjado  dos  diospiros  maduros ...
Tem o calor macio que aquece os velhos silenciosos dos bancos do largo ... adormentados, com a "pirisca" esquecida no canto dos lábios ... inverno à espreita, na esquina da vida !
Tem impregnados em si, os acordes de Chopin, que ecoam em sonatas embaladoras, por claustros imaginados ...

É um sol fugaz, um sol em trânsito, um restante sol de privilégio.
Breve partirá e deixará o sabor  promitente de um regresso futuro ... para quem estiver ainda por aqui !...

Será exactamente quando o S.Martinho voltar a despojar-se da sua capa protectora, e com metade dela, cobrir outro pedinte do caminho ...
Exactamente quando os dias azularem de novo, quando as alamedas se atapetarem saudosamente,  de folhas douradas ...
Exactamente quando "tudo der a volta" ... e nos deitar p'ra dormir ...
Exactamente quando  regressar o tempo das castanhas e a prova do vinho novo ...

Exactamente quando  voltar a ser  Novembro outra vez !!!...




Anamar

terça-feira, 1 de setembro de 2015

" CURTINHA ... "




Setembro chegou.
Enfarruscado, mal humorado ... cinzentão !
Chegou com prenúncios de chuva, com ameaças de vento, com mercúrio a cair no aparelhinho.
Chegou uma coisa assim, mal convencida, com cara de quem não é carne nem peixe, apitando o fim da partida ... doa a quem doer !

Recomeça a azáfama.
A "canalha" já anda eléctrica, a antever aquilo que irá fartá-los, lá mais para a frente.
Os livros pintam-se de cores convidativas, por enquanto.  As mochilas, os ténis, os fatos de treino ... e mais os estojos, os cadernos e tudo o que faz e mais o que não faz falta, mas que se insinua das vitrinas, deixa os putos acelerados, em "palpos de aranha".
Os pais, esses fazem e refazem as contas de um mês que promete ser " longoooo " ...

Sempre assim ... sempre igual !
Ano após ano, a miudagem recém chegada do calorzinho dos areais ainda bem mornos  mas muito mais vazios ... tem uma urgência urgentíssima, de rever os amigos, os colegas, os companheiros.
As novidades de férias fazem-lhe cócegas debaixo da língua.  Há uma pressa no ar  que se percebe , que se sente, que se transmite.

Até o sol amarelou, com cara de parvo.
Não consegue mais pintar a bochecha radiosa, com todo o empolgamento dos dias decorridos.
Já só convence poucos !

Começa a olhar-se a roupa e os sapatos ... e a verificar-se como num passe injusto de mágica, as mangas puderam encolher tanto !..
A constatar-se como as biqueiras  se tornaram impiedosas ... E já que as sandalinhas, não demora estão de lado ... fazer o quê ???!!!...

Como foi possível os ganapos terem medrado assim, em escassos meses ?!
Será que os regámos de mais ?!...
Será que nos distraímos,  mergulhados que estávamos, no creme suculento das bolas de Berlim ?!...
Será que adormecemos nas areias mansas, e recusámos acordar antes de tempo ?!...

Sempre assim ... sempre igual !

E como tenho saudades !...

Anamar

domingo, 9 de agosto de 2015

" ATÉ BREVE ! "






O Alentejo tinha deitado para a sesta.

A quietude e o silêncio haviam descido à terra.  As sombras projectavam-se no chão, e era nelas que o  gado  que  pastoreava  se  acomodava,  na  fuga  ao  calor,  insuportável  àquela  hora ...
A boca de uma fornalha acesa !...

Os únicos verdes ainda viçosos que assomavam, eram das vinhas e dos campos de girassol.  Tudo o mais era um braseiro de castanhos, ocres e amarelos queimados.
O restolho e o feno ressequido, eram o que restava das searas já ceifadas.
Os ninhos das cegonhas, agora totalmente abandonados, continuavam encarrapitados nos postes de alta tensão e no alto das árvores esquálidas.
Surgiam-nos aqui e além, charneca fora, lembrando que ali houvera vida há tempo atrás.
Era então Primavera, e o Alentejo, verde e florido ...

Não há sons na paisagem.  A dormência abate-se.
O Alentejo respira paz ...
Não mexe uma folha, e apenas o som dos besouros e abelhões que parecem cirandar sem destino, atravessa a planície.  Até as cigarras deram uma trégua.
Também os pássaros recolheram.  Voltarão, quando a tarde descer e alguma brisa fresca abençoe a terra.

E do chão sobe aquela coisa que é berço, é colo, é útero e é eco ...
É um apelo sem voz ... é a terra que fala ... é o resfolegar do silêncio e da solidão ...
Não se explica ... só se sente !
É como um retorno aos braços da mãe ... É como o abraço do amante ausente.  É o ombro, é o afago, é a carícia no cabelo, quando a brisa mansa sopra do montado ...
É um convite ao embalo, como se uma canção de ninar nos desse arrego, nos convidasse a deitar a cabeça e a repousar ... simplesmente a repousar na eternidade, porque o Alentejo é eternidade ...

Volto lá, sempre que o peito sufocado precisa de ar.
Volto lá, sempre que a "fome" me aperta as entranhas, sempre que o coração mingua no peito e a alma fenece e me atormenta.
Volto  lá,  quando  preciso  reencontrar  as  raízes,  reavivar  as  memórias,  conferir  os  espaços ...
Quando preciso achar cada esquina imutável, no sítio exacto onde a deixei.
Quando preciso escutar o som das gerações, no lajedo das calçadas.
Quando preciso  rever as sombras que permanecem, ouvir a voz dolente e cantada de todos os que foram... Porque todos já foram ...

Quero encontrar a minha avó com o cabelo em carrapito, avental à cintura, com o negro perene da viuvez ... a chamar-me, ao portão ...
Quero encontrar o meu avô, comigo pela mão, a caminho do chafariz, na hora de dessedentar o Carocho ...
E a minha tia a migar as sopas da açorda, na mesa de pedra ... e o pratinho da romã para o lanche ...
Quero o queijinho seco e as azeitonas retalhadas, roubadas aos punhados, da "tarefa" da despensa, e comidas  às  escondidas, no  terreiro  do  quintal, por  onde  as  galinhas  ciscavam ...
Quero os pirolitos fresquinhos, da cesta mergulhada no poço, junto às avencas que cresciam espontâneas, nos rochedos do fundo ...
E quero que me façam de novo as tranças, me vistam o bibe, e me deixem jogar à "faia", riscada no largo de terra batida em frente à porta ... ou ao berlinde, na sombra das árvores de copa farta ...

E nunca chegam para saciar o que tenho aqui dentro, as horas que por lá fico ...
Nunca mitigo esta fome de reencontro.
Nunca preencho os espaços devolutos do afecto.
Nunca recupero os pedaços da minha identidade, para que possa reconstruir-me outra vez ... que não seja já, hora do regresso ...

E o Alentejo lá fica ... de novo, à minha espera.
De novo, aguardando que a voz da terra ecoe rumo ao horizonte, e me alcance ...
Aqui,  deste  lado  do  Tejo ... aqui,  nesta  terra  de  ninguém ... aqui,  onde  a  orfandade  dói  mais !!!...

Não é uma despedida.  Não é um fechar de porta.  Não é uma partida ...
É, e será sempre, um "até breve" !...

Anamar

terça-feira, 4 de agosto de 2015

" AQUELE LUGAR AO SUL ..."




De alguma forma, eu sou apátrida.

Nascida dos quatro costados na charneca alentejana, a vida encarregou-se de me saltitar de "déu em déu"...
Ainda não tinha dois anos e já deixava a aldeiazinha raiana, da qual obviamente não guardo nenhuma memória, e rumava a Évora.
Em Évora espiguei.
De Évora retenho as primeiras memórias doces de consciência a forjar-se, os primeiros creres, os primeiros sonhos, os primeiros amigos ... o primeiro amor ...
Amor de doze, treze anos ... Tão "sério" quanto o permitem  ser, toda a ingenuidade, toda a singeleza, toda a autenticidade dos sentimentos forjados no peito de uma menina metida a mulher !...

Em Évora comunguei  a História, a tradição, senti as raízes cravadas na planície, aprendi a liberdade de horizontes sem limites, entendi o som do silêncio das searas ondulantes, partilhei a melopeia  das cigarras no meio de tardes escaldantes ... ou segui o voo largo da cegonha, demandando o ninho ...

Em Évora,  miscigenei-me com os sentires de Florbela, embalei-me no som dormente dos cantares do monte ... suspendi a respiração, com a sonoridade do sino da aldeia distante, às avé-marias ... ou confundi-me  simplesmente, com os chocalhos do gado na sossega do fim de dia ...

Em Évora, ouvi o som dos passos no lajeado das travessas e alcárcovas solitárias, escutei o eco das palavras nos claustros silenciosos ... bebi a seiva, que trepa o corpo de quem nasceu no Alentejo !

Em Évora, senti a intangibilidade do carácter vertical de um povo !
Palpei o tamanho da solidão, no monte perdido no nada, o inconformismo das eras, e a força de um sangue que não verga !...

Mas  arrancaram-me da minha cidade, como quem arranca a flor da esteva nascida sem ser perguntada, na  planície sem fim ...
Extiparam-me  a liberdade de potro solto no montado ...
Cortaram as asas à garça que plana na terra recém-revolvida ...
Apagaram  a estrela do boeiro, no meu céu afogueado da canícula da tarde.  E todas a miríades estelares que ponteiam as madrugadas escuras, e que só lá, naqueles campos se desvendam ...

E trouxeram-me para a cidade grande.
E na cidade grande eu tornei-me órfã de coração.
Na cidade grande, eu entristeci de alma ...

O apelo da terra povoa as minhas noites despovoadas !  O chamamento do chão  corre-me quente nas veias !  A simbiose dos genes  leva-me inapelavelmente para o sul ... como um suão que soprasse, e ao qual eu não quisesse resistir !...
Lá, onde o branco é muito mais alvo, o ocre e o cobalto, emolduram as vidas ...
Lá, onde repousam todos os que eram eu, antes de mim ... e que hão levar além, a minha linguagem da carne ...
Lá, onde as memórias estão inscritas em cada pedra da calçada, em cada esquina, em cada sombra que se alonga ...

Irei ao Alentejo muito em breve.  Não sei como, mas sei porquê !

Como uma febre sazonal  que me toma, me invade e  me domina, a minha mente não pergunta, não questiona, não resiste  ...
Leva-me ... simplesmente me leva !!!!

Anamar

sexta-feira, 31 de julho de 2015

" AQUELE AGOSTO ... (memórias idas ... ) "



Era assim ...

Chegava  Agosto, e o destino estava traçado !...
Iríamos  enfrentar  a  Nacional  nº1 ( ao  tempo, a  autoestrada  era  só  uma  esperança  remota )  !...
Uma odisseia e tanto !

Nada, que umas sete ou oito horas não resolvessem ! Isto, se a praga dos camiões TIR, não se plantasse bem  à nossa frente na estrada ... Aí, o pára-arranca seria  inevitável, e o tédio da viagem, crescia.

Nada, que nos livrasse de cinco, seis ou mais paragens, distibuídas entre  o xi-xi, o pão caseiro da Benedita, os panados com arroz de tomate malandrinho do Manjar do Marquês, as especialidades doceiras de Penacova, e mais as pausas  p'ra um cigarro fumado  e os músculos desentorpecidos ...

Nada, que evitasse sermos  massacrados cem vezes, com a pergunta recorrente e desesperante :  "Ainda falta muito " ??!!

Carro atulhado ( parecia o "camião das mudanças" - dizia o pai ), um calor exasperante, a raparigada no banco de trás, dividindo ao milímetro o espaço.
7 e  3 anos, não davam paz a ninguém. Discussões, gritaria, puxões de cabelos, choros e ofensas, exigiam permanente  necessidade  da  interferência  da  mãe, a  pôr  ordem  nas  hostes ...
Sem alternativa, depois de esgotados todos os jogos possíveis, todas as cantorias imaginárias, vistos todos os livros de histórias, e sem que o sono desse tréguas ... depois de todas as  tentativas de entendimendo, com uma guerra desenfreada das almofadas, e já semi-despidas, as pestinhas eram silenciadas, em desespero  de  causa,  com  a  arma indiscutível  de  uns  quantos  oportunos  tabefes, distribuídos a eito ... acerta  aqui,  acerta  ali !!!

De nada adiantava lembrarem o rio, que corria lá no finzinho da terra . Nem os "alfaiates", que planando adormecidos sobre a água fresca, provocavam gritinhos de pirataria entre a miudagem menos habituada a nadar no meio deles ...
De nada adiantava lembrarem a pilhagem das maçarocas de milho, nos milheirais dos vizinhos ... que nunca da avó, claro ...
Ou as uvas, que já maduras enfeitavam os muros do caminho, a prometerem doçuras gulosas para o lanche ...
De nada adiantava lembrarem a brincadeira sem fim, descalças na terra, os "bolinhos" feitos  com a farinha das galinhas, desviada à surrelfa, para "venderem" nas quitandas do sonho ...
De nada adiantava degustarem por antecipação, os jogos de cartas, ao sete e meio, ao burro deitado e em pé ... que  a mãe  haveria  de  deixar,  contra  os  horários  da  cidade,  debaixo  da  tileira,  na  mesa  de pedra, e  os  meninos  todos  do Vau  em  roda,  chilreando de felicidade !...

De  nada  adiantava ... porque  a  maldita  viagem  era  uma  Via  Sacra, que  nunca  mais  tinha  fim !

"Ainda falta muito" ???
"Quantos  quilontros" ?  - dizia  a  mais  mindinha, com  língua  de  trapos  pouco  desembaraçada ...

Era assim, Agosto !
Eram os grilos, as bicicletas, as amoras, as abóboras para retalhar e fazer carantonhas ... e tudo, tudo o que ficaria a ser lembrado o ano inteiro !
Era a Júlia, a Rita, o Rui, o Alberto e o João, amigos que o serão até morrer !

"Venham almoçaaaaarrrrr .... "- gritava a mãe na porta da cozinha.
Vá-se lá saber por onde as crias andavam !!!....

O martírio da viagem já ficara para trás.  Valeram  a pena as traulitadas, os berros e as promessas de castigos, logo esquecidos pela mãe...
Valeram a pena, porque era  Agosto ... e  aquele Agosto ... acontecia só uma vez no ano !!!

Anamar

domingo, 7 de junho de 2015

" JULGUEI ..."




Julguei que conhecias os caminhos ...
Sim, aquelas veredas que cortam a serra além, que sobem às falésias, e de repente nos deslumbram o mar ...

Julguei que os conhecias,  por os palmilhares vezes sem conta.  Até porque eram caminhos do meu coração ... Não podias esquecê-los na segunda curva da estrada !

Por que cruzámos trilhos, trocámos braçadas de rosas, respirámos o mesmo azul do céu, a mesma neblina do monte ?...
Por que  rimos com o voo do pássaro azul empoleirado no galho ... olhámos até ao firmamento a gaivota rasante, aninhada no vento que perpassa,  para descansar ???
Porquê ? - diz-me lá ...

Tantos códigos de afecto que registamos nesta passagem, e que nos caem do bolso do coração, no primeiro socalco da estrada !...

E as amoras ?!  Será o tempo das amoras adoçarem os caminhos ?
Não sei !  Já perdi a noção desse tempo ... como um  filme que saíu de cena, há muito !

Estranho ... é tudo tão estranho nesta jornada !
É tudo tão frio e tão vazio, que nem o sol que começa a esquentar por estes dias, consegue aquecer ...
Já perdi coisas de mais ...  Distracção  da alma ... tenho a certeza !...
Ou então já não sei jogar neste tabuleiro ...

Nesta altura, Lisboa era linda.  O castelo e as ruinhas  ressomavam a manjericos, a tronos e a festões.
Nesta altura, julguei que a cidade era do tamanho do que eu carregava dentro do peito ...
E as janelas das vielas, com os velhos de atalaia, e as roupas descoradas e tão velhas quanto eles, adormecidas na fresca da tarde, acenavam-me como as velas das faluas cruzando o Tejo, lá ao fundo ... por entre meio do casario !
Julguei que tudo ia ficar ... mas enganei-me outra vez !

Fica-me o quê, então ?

Fica-me o que consigo guardar no sótão da memória.  Ficam-me os risos iluminados dos rostos. Ficam-me  as vozes que a brisa me sopra lá de longe.  Fica-me o eco das fantasias inventadas, porque era Verão, havia sol de mais, e a esperança verde embalava-me no seu regaço ...
Ficam-me as mãos perdidamente vazias, esquecidas das linhas do teu corpo ...
E fica-me a ausência de todos os que amei ...
Fica-me o espaço vazio, sobrante na alma.
Fica-me o silêncio que pesa eternidades, e me assombra as madrugadas desertas ...
E ficam-me demasiados buracos, nos sonhos tricotados  nas noites enluaradas ...

Quem disse que o vazio não pesa ?
O vazio pesa o peso do Mundo !  O vazio tem a cor do desespero, pinta-se de negro como as alvoradas que não querem nascer , ou as velhas embiocadas que choram os mortos ...
Tem aquela cor mate, que é uma mistura inventada entre o vermelho sangue e o branco paz, que são a cor da inquietação  e a cor da saudade ... tenho a certeza !...

E eu que julguei estar viva !...  E afinal, não era  bem assim !... Também não era bem assim !...
Estou por  aqui, é verdade ... Mas olho e não vejo, busco e não encontro, falo e não me oiço, chamo, e a voz atraiçoa-me ... segue sem endereço, como mensagem extraviada ...

Então, resta-me sentar  no penedo adormecido, olhar o sol a descer de mansinho ... e esperar.   Só esperar !...

Anamar