segunda-feira, 6 de março de 2017

" EM JEITO DE BALANÇO ..."




Folheei em retroespectiva as páginas do primeiro volume deste blogue.
Datam de 2007, ano em que de repente, brincando, tacteando, experimentando, dei os primeiros passos neste mundo da blogosfera.
De quando em vez gosto de reler os meus escritos à época, até porque através deles consigo visionar o que eu era, como era a minha realidade, quais os meus anseios, inquietudes, angústias e assomos de felicidade.
Porque eu sou assim, e sempre deixo escorrer através das minhas letras, os meus estados de alma, sem preocupações, maquilhagens, disfarces, máscaras ...
Eu sou de facto assim, e "dispo-me" sem reticências, sem receios de valorações, sem preocupações do socialmente correcto ou incorrecto.

Se de alguma coisa eu sou dona, neste mundo, é das minhas escolhas, decisões, sentires... e livre arbítrio, também ... sem sustos ou pudores.
A idade entretanto vai-me conferindo independência, despreocupação, "estatuto" ... O tal estatuto que eu acredito ser de facto "um posto",  nesta vida.

Já vou em quinze volumes das postagens que aqui deixo.  Passei todas as publicações, comentários e afins, a suporte de papel ( sou da velha guarda, não esqueçam ... e esta coisa da net, da "cloud", "Dropbox", "OneDrive", pouca confiança me dá, dados os "cataclismos" por vezes ocorridos neste mundo virtual ), e com eles elaborei ano após ano, uns livritos que "enfeitam" a minha estante ...

Será herança patrimonial para quem cá ficar e os queira.  Valem o que valem, poderão interessar ou não, aos meus continuadores ... Um dia terão um fim previsível, creio !

Uma das coisas que me chamou a atenção, nesta romagem à que eu era então, foi a hora a que debitava quase sempre, os meus textos. Verifiquei que varava a noite com toda a displicência, que escrevia preferencialmente na calada da madrugada.
Três da manhã, nessa época, era início de serão para mim.  Refiro com frequência que "sono nem vê-lo", e parece ser verdade que a concentração, a paz e o recolhimento eram requisitos acontecidos, potenciais produtores dos meus relatos.
Parece-me também, ser eu então possuidora de um discurso algo esperançoso, interessado, entusiasmado e entusiasmante, frequentemente.  Sinto em mim, olhando hoje o espelho que me reflecte, que aquele estava imbuído de uma postura de crença face ao futuro, de alguma determinação, expectativa doce, de alguma combatividade.
Eu era alguém com garra, convicção, aposta ... vontade !
Eu acho que acreditava mesmo, que a coisa iria adiante, que eu ainda teria muita história p'ra viver e contar ...

Passaram quase dez anos ... Como a tirania do tempo nos confina mais e mais à realidade, e nos corta as asas do sonho !...

Hoje, já constitui um sacrifício ... ou pelo menos uma desaposta, o esticar da noite madrugada fora.
Hoje, o meu discurso remete-me quase sempre, para uma introspecção reflexiva e algo doída, da minha existência.
As minhas palavras parecem ser mais azedas, mais cansadas, menos confiantes e esperançosas. Mais acomodadas, talvez !
Nos meus textos detecta-se, creio, o enrugado de marcas indeléveis e sem remissão, deixadas pelas intempéries da vida, sem perdão ou piedade.
Sinto uma mornidão que me exaspera e desanima.  Sinto falta da loucura, da adrenalina, do riso, da alegria e da "pedalada" que me norteavam então.
Sinto falta daquele valer a pena que insuflava  o meu espírito e velejava no meu coração.
E pergunto-me : pode uma década ser tão carrasca e impiedosa na nossa saúde física e mental ?
Podem os reveses e as desilusões, os sonhos derrubados e incumpridos, deixar tantas marcas, estragos e destroços numa vida ?!...
Podem os anos, confinar-nos a Invernos sem Primaveras que os sucedam ?!...
Podemos deixar que uma desistência instalada nos tome conta, nos avassale e nos adormeça nos anseios legítimos de quem ainda está vivo ???!!!...

Quero horizontes !  Preciso de pôres, seguidos de nasceres de mais sóis e luas  !  Preciso de pintar, outra vez, o céu com estrelas !
Preciso de refrescar a minha capacidade de deslumbre. A minha capacidade de emoção.
Preciso de recolorir o verde da minha esperança !
Preciso ganhar outra vez asas e sabedoria de voo.  Preciso redescobrir as coordenadas de viagem !

Preciso amar outra vez !  Rebentar de paixão !  Rir loucamente e insanamente soltando a criança, a jovem ... a mulher madura que já fui !
Preciso desgrenhar os cabelos no vento, abraçar o azul embalador do mar, conjugar outra vez convictamente, os verbos "querer", "acreditar", "apostar" e ... "VENCER" ...

Meu Deus ... como preciso !!!...

Anamar

quinta-feira, 2 de março de 2017

" OS NINHOS "






"Os ninhos "

Os passarinhos tão engraçados,
Fazem os ninhos com mil cuidados
São para os filhinhos que estão para ter
Que os passarinhos os vão fazer !

Nos bicos trazem coisas pequenas,
e os ninhos fazem de musgo e penas
Depois, lá têm os seus meninos,
Tão pequeninos ao pé da mãe.

Nunca se faça mal a um ninho,
À linda graça de um passarinho !
Que nos lembremos sempre também
Do pai que temos, da nossa mãe !

                               Afonso Lopes Vieira


As andorinhas iniciaram a sua faina no beiral  lá de casa ... contei ontem.
Revimo-las com sorrisos nos rostos e enternecida admiração.  Afinal, auspiciam tempos felizes e promissores aos lares hospedeiros que escolhem.

A minha mãe, com 96 anos à beira de serem cumpridos, tem uma idade mental quase permanente, talvez de uns 5 ou 6.  A demência progressiva que lhe tolda a mente e o raciocínio, transformou aquela mulher decidida, capaz, viva e independente, num simulacro de gente.
Transformou-a numa criança de tenra idade.
Neste momento, a minha mãe adora os patos da lagoa, fala e trata indistintamente os animais com a pieguice e a ingenuidade protectora de uma criança, infantiliza todas as suas posturas e todas as suas conversas.

Já me martirizei demais por tudo isso. Já me angustiei e rebelei demais contra o destino.
Mas como p'ra tudo o que é irremediável, e que ainda por cima se arrasta temporalmente, devemos encontrar estratégias de convivência  por forma  a defendermo-nos psicologicamente, também eu deixei de chorar, de me amarfanhar, de me revoltar, até mesmo de querer entender.

É simplesmente assim, nada se pode fazer além de lhe falar com a máxima doçura, aceitação e paciência.
Os diálogos parecem tirados de um jardim infantil.
Por isso lhe conto vezes sem conta quem é quem, na nossa família tão pequenina.  Por isso lhe repito os nomes de cada um, desde os pais, ao marido, às netas, bisnetos ... ao meu próprio, e lhe reavivo quem ainda vive, quem já partiu e todos os pormenores referentes à sua vida actual e pregressa.
Por isso lhe fiz, a seu pedido, um esquema  com todas as personagens que a atormentam, quando não consegue lembrar ...
E ri, quando diz que "já fez o trabalho de casa" ao ler e reler essa folha ...
E ri, quando me pergunta : "Filha, então tu és o quê, meu ?"... E fica eufórica  quando a esclareço.
"Ah.... agora já sei que és minha filha !  Já não me engano mais !"....

Também se fascinou com a chegada das andorinhas.
Dizia-me hoje que elas haviam voltado porque sabiam que ali iam encontrar as suas casinhas.
Adora ir, na cadeira de rodas, ao terraço ver as sardinheiras em flor ( que a extasiam ), e o avanço dos ninhos em laboriosa construção.

E então do nada, surpreendentemente, com ar de menina levada de bibe e ardósia, começou a declamar-me, sem erro, as primeiras estrofes deste enternecedor poema de Afonso Lopes Vieira, que aprendera na escola, que fazia parte do seu Livro de Leitura e que por momentos a transportou a um passado longínquo e difuso, espantosamente claro, que a deixou tão feliz !

E eu nem sei bem descrever o misto de sentimentos que me tomou ... Estupefacção, ternura, alegria e tristeza ...
Como a mente humana é insondável e como os mecanismos mentais que norteiam o Homem ao longo da sua existência, fogem ao domínio da nossa compreensão e capacidade de entendimento !
É como se houvesse sempre dentro de nós, um eco que persiste e nos coexiste através dos tempos, rumo à Eternidade !

Por momentos,  a minha mãe  voltou a ser menina outra vez !

Anamar

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

" E ASSIM SERÁ ... "




As andorinhas voltaram ...
E se voltaram é porque a Natureza outra vez milagrou.  Se voltaram, é porque a imortalidade do tempo permanece intocada .

Vi-as em volteios determinados na aragem fria que por ora se sente, esperando uma Primavera anunciada com a brevidade do calendário. Rumam aos ninhos que ainda outro dia deixaram, emancipadas que foram, quando, pressurosas e guiadas pelos pais, fugiam do Inverno desconfortante que se aproximava, e norteavam a África, na sua primeira viagem migratória.
Trazem sorte e felicidade aos beirais que escolhem ... diz-se.  Talvez por ser auspiciosa a sua chegada, mostrando que a renovação não cessa, a esperança não morre ...

É sempre um deslumbre e uma emoção, confrontar-me com os mistérios perfeitamente insondáveis e que não se explicam, das leis da sobrevivência natural.
O "código genético" é poderoso e absolutamente imperativo. E quando pensamos que seres infinitamente pequenos e desapetrechados  quando comparados ao ser humano, respondem com uma inquestionável capacidade e uma eficácia espantosa e precisa, ao que a Biologia define para as suas vidas, temos que forçosamente nos sentir mínimos, insignificantes, fascinados !

Olhei-as na afobação da construção de novas "casas" e na reconstrução das já existentes. Olhei-as, na azáfama de projectos decididos, numa alegria de viagens, chilreios, deambulações apressadas, nos golpes de vento da tarde.
Como seriam as histórias que carregam ?  Como serão as lembranças do oceano, do deserto, dos dias e das noites estreladas, das luas e do sol quente e tórrido das terras lá longe ?  Como será esta liberdade de andorinha que vai e que vem, e sempre e só responde à chamada do destino ?

Por aqui, as mimosas começam a engalanar-se do amarelo esperançoso e promissor, simplesmente porque também elas sentem o apelo da continuidade da Vida.  E por cada canto, por cada nesga generosa de verde e terra tudo eclode numa cascata de cores, de cheiros e de sons ...
E assim será, ano após ano nas existências de cada ser. E assim será, numa renovação prometida, até à eternidade dos tempos.

A vida de cada um é a vida de cada um. É a fatia de contemporaneidade que por aqui partilhamos com tudo o que é vivente.  Mas também com tudo o que nos pré-existiu e existirá depois da nossa passagem.
Estamos em trânsito.
Não somos mais que andorinhas arribadoras.  Não passamos de mimosas que floriram, nas suas Primaveras ... ou sopro de brisa fugaz que perpassa pela copa dos pinhais ...
Mas o privilégio de que dispomos pelo facto de ainda continuarmos a cumprir os nossos desígnios por cada dia que nasce e adormece à tardinha, é uma bênção sem tamanho, é um êxtase e um deslumbramento agradecido à Natureza, mãe embaladora, útero generoso, regaço doce e repousante !

Anamar


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

" PARA ALGUÉM QUE AINDA NÃO NASCEU "




( Dedicado à minha neta que virá )

Não sei o teu rosto, no entanto adivinho
que virás com um norte, um rumo e missão
de amparar quem cansado percorre o caminho,
de ajudar a erguer quem se sente no chão ...

E levas em frente a história começada
És uma semente que a vida plantou
Uma árvore de sombra na beira da estrada,
Um sopro de esperança que algum deus soprou ...

És uma criança e já és o universo...
A luz de uma estrela para quem está perdido
A força do amor transportada num verso ...
Não sei o teu rosto e no entanto acredito
que tu vais vir
para as margens unir
em pontes lançadas ...
As estrelas te embalam
no céu escuro se calam,
pelas madrugadas !

E tão pequenina,
menina ladina,
como seiva vivaz
tens o mundo no peito,
qual  amor perfeito,
por favor, traz a paz !...

Anamar

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

" QUERIA ..."



Queria dizer não dizendo,
por preciso não ser mais ...
e que os ais deste lamento
voassem no firmamento
a outros céus e outros mares
Queria chorar não chorando,
por teus ouvidos ouvirem
e sentirem o meu pranto
para lá do universo,
nas galáxias de outro espanto...
Queria ver-te não te vendo,
porque leio a voz do vento
e entendo a canção do mar
que te trazia até mim
nas asas de um querubim,
sem precisar te chamar ...
Queria que o sonho lembrasse
o que há muito já esqueceu,
que o dia se levantasse
e a madrugada guardasse
todo o amor que já foi meu ...

Mas o tempo ... ai o tempo ...
carrasco, dono, verdugo,
um tirano e gozador
Vai levando e vai correndo,
brinca e ri do meu tormento,
indiferente à minha dor !

Anamar

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

" FESTEJANDO ... "




2016 terminou.  2017 abriu um sorriso prometedor e cúmplice...

Sempre assim !
Quando um ano se abeira do fim e já desvendou tudo o que tinha p'ra nos mostrar ... quando não acreditamos mais que algo nos venha ainda a surpreender nesse tempo rançoso que está a expirar e que provavelmente defraudou a expectativa que viemos carregando enquanto a ampulheta ia vasando ... ansiamos que um novo tempo espreite, que novos dias nos recarreguem a esperança, nos alimentem o sonho uma vez mais, nos voltem a dar razão p'ra continuar a viver .

Sempre assim !
Nesta "virada" que ontem se voltou a cumprir,  tenho razões acrescidas para festejar.
Aqui neste meu espaço, que como refiro na sua apresentação, é de intimismo e cumplicidade, é de mim para todos e para ninguém, que existe pela simples paixão da escrita, que carrego desde que me sei gente, atingi os  MIL POSTS partilhados com todos quantos me visitam, me lêem, me comentam.
Todos quantos disponibilizam o seu tempo, o seu carinho, o seu interesse ou mera curiosidade.

A caminhada tem sido longa, ultimamente lenta e sem ânimo  vezes demais, fruto dos tempos que atravesso.
Contudo, continuo a refugiar-me neste canto privilegiado, continuo a assomar-me nesta varanda de afectos, continuo a amparar-me em todos os que anonimamente ( quase sempre sem deixarem outro rasto que não o franquear da "porta" ) por aqui passam ...  e com isso continuo a reerguer-me, a reabilitar-me e a sentir-me viva de novo !

Para todos vós, portanto, também razão e destinatários da minha escrita, o meu OBRIGADA de coração !

Anamar

" CONTO DE NATAL "





Eu tinha um gato e uma gaivota ...  Já todos sabem.

Há para lá de tempo que eles povoam os domínios que o meu olhar alcança, encarrapitada que estou no alto deste sétimo andar.
Neste meu tempo de silêncios, de muros altos e horizontes distantes, neste tempo de muita gente e poucas pessoas ... habituei-me à janela.
Da janela eu sou dona do mundo!  Salto as casas, os telhados, as chaminés e os muros, que não me interessam nada, e voo lá para bem longe, onde as escarpas da serra se divisam, onde as nuvens se passeiam, onde o sol adormece e onde a lua sempre assoma, engalanada de festa.
Monto a cauda dos arco-íris, quando se desenham e participo das "raves" estelares, quando desbundam na agitação feliz dos solstícios.
Tenho a brisa que me afaga o cabelo, tenho o ouro e o vermelho do plátano que em rituais de adormecimento se despe, preparando o sono regenerador, neste Outono já Inverno.
Tenho o som do mar, ora tempestuoso ora doce, no bater e no estreitar dos rochedos com carícias atrevidas ...
Isto, já sem falar na canção dos búzios, que de lá me contam o vaivém das ondas ...
E tenho os cheiros dos musgos e das carumas, dos azevinhos e da humidade sombria que amarinha os troncos, o cheiro das heras e da folhagem tombada que atapeta os caminhos ... que eu não vejo, não escuto e nem cheiro, mas que adivinho, porque os tenho todos guardados na mente e no coração.
E eu sou livre de querer, de inventar ou só de lembrar !

E depois, tenho a minha gaivota que me liga aos céus, e o meu Farrusco preto lá de baixo, que me prende à terra .
E entre este céu e terra vou vivendo, rica de sonhos e de amores.

Só que ...
O meu Farrusco partiu !  Não sei dele faz tempo !
Bem me esgueiro da janela, bem tento variados e possíveis ângulos da vista o poder alcançar ... ingloriamente !
Se chove, esmiúço os recantos do terraço, cantos protectores e de guarida ... em vão !  Se faz sol, esmiúço os muros de espreguiçamento, os parapeitos de sestas ... em vão !
Eu sei que os gatos são aventureiros e independentes.  Nisso, somos bem iguais.  Eu sei que os gatos são irremissivelmente sonhadores, teimosos e livres.  Nisso, somos mais iguais ainda ...
Mas o Farrusco já há muito que é um gato ancião, que eu sei, e a sua provecta idade deveria contê-lo na aventura e no devaneio.  Seria prudente.

Depois, também não é justo que o Farrusco faça isto comigo em plena quadra natalícia ...
Deixar-me com o coração apertado, o olhar perdido e uma orfandade que me atormenta a alma ... não me parece bem, nem coisa adequada  ao coração generoso de gato !...

Não quero acreditar que ele partiu para a Terra do Nunca, sorrateiramente (com a discrição que só eles sabem ter ),  porque nunca vou poder aceitar que ele se cansou do meu terraço, da Terra dos Homens, dos frios Invernos, impiedosos para um gato cujo único tecto é o céu estrelado das noites escuras ... se cansou da barriga vazia e da incerteza dos restos deixados por uma que outra alma caridosa ... se cansou até do amor que cá de cima eu lhe devotava, em segredo ... sem que ele soubesse ...
Porque afinal, nós tínhamos um pacto silencioso de afecto.  Ele era " pertença " minha, há muito !

Hoje, eu vasculhava uma outra vez o terraço do Farrusco ...
Com um  céu escuro e indiferente, que se debulha em água cá para baixo, com o frio gélido do Inverno que resolveu fazer as honras, o desconchavo que nos envolve é total.  O desconforto impera .
As gaivotas, que há pouco deambulavam em voos incertos na aragem, desapareceram em busca de poiso, longe que lhes ficou o mar alteroso.

Desisti de o esperar...

Os gatos são filósofos, sonhadores e poetas ... que eu bem sei.
A esta hora o Farrusco já deve estar na dimensão dos que conversam com a lua, dos que escutam as estrelas e amam a imensidão do Universo !
A esta hora ele, a quem a dimensão do terraço não chegou, voa seguramente na liberdade do vento, trepa os telhados das madrugadas e espreita-me por entre as nesgas das nuvens ... quando elas, de "carneirinhos", esvoaçam lá longe, no limite do meu horizonte ... encarrapitada que estou no alto deste sétimo andar ...

Porque  nós  tínhamos  um  pacto  silencioso  de  afecto ... e  os GATOS  não  nos  faltam  nunca !...

Anamar

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

" E É ASSIM ... "




Mais um ano a findar.
Tempo de balanços sobre a vida, "impostos" pelo clima emocional que sempre nos rodeia nesta altura.
É estranha esta época !
Sem que demos por isso, mesmo os mais resistentes, que tentam distanciar-se de todo este circo de emoções em que mergulhamos, acabam capitulando e querendo ou não ... ( que droga !... ), sossobram e deixam que o contexto existencial os fragilize.

Assim sou eu.
E se o Natal é passado mais ou menos rodeado de luzes, barulho e confusão, rodeado de afectos e euforia da criançada ( já pouco criançada ... ) ... se o Natal me atordoa ou até anestesia, a passagem de um ano a outro, a viragem da página, o encerramento de mais um ciclo temporal é um mix incontrolável de estados de alma !
Assim que a descompressão do Natal se inicia e que entramos em contagem regressiva para as últimas badaladas, uma irracional angústia, talvez incoerente e incompreensível, uma melancolia doída começa a sufocar-me as entranhas, oprime-me o peito e aflora-me lágrimas a olhos desobedientes.
Procuro monitorizar as emoções, procuro racionalizar os pensamentos e arrefecer o coração ...
Quase sempre em vão.
Fico uma imprestável  florzinha de estufa, um galho de árvore indefeso abandonado na intempérie, uma concha rolada na maré ... sem remédio ou guarida ... numa solidão de doer, num abandono de comiseração ...
E um peso que não suporto, uma carga que me verga, uma escuridão de cerração compungida, toma-me conta, tolhe-me, derruba-me ... como dia que se abate, sem pôr de sol que o detenha ...

Inevitavelmente, tudo o que foi me visita.  Inevitavelmente, tudo o que é me angustia.  Inevitavelmente, tudo o que será me assusta.
Um céu turbulento de nuvens encasteladas, ameaçando borrasca, espreita-me.  Os raios de um sol tímido de Inverno, esperneiam no meio dos cinzas enegrecidos. O ar gélido açoita-me o rosto e desconforta-me o coração.
Queria fugir e não tenho para onde ... E não tenho como ...
Queria seguir para o sul, nas asas dos gansos selvagens, que têm rumo e destino.
Queria buscar a terra quente e um ninho manso.
Queria partir lá para onde se ouve a música do Universo, e os tempos são de esperança e de fé ...

Ou, pelo menos, queria dormir.
Dormir com a serenidade dos justos.  Dormir com a paz dos que não esperam amanhãs.  Dormir com a resignação do que me é destinado. Sem ambição ou sonho.  Com a certeza do nada, ansiando o tudo ... talvez  ...
E queria aturdir-me com o ruído insuportável do silêncio que me cerca.
Queria esquecer, esquecendo-me ... se o pudesse !
Queria partir na profundidade do sonho que não acorda ...
E seguir na estrada do tempo, colhendo braçadas das flores simples do caminho ... com auroras boreais no horizonte ... acreditando ser feliz !
Queria pintar os céus com todas as estrelas que vivem dentro de mim ... e brincar com as luas e as orvalhadas destas madrugadas de gelo ...

Queria tudo isto ...
Só não queria pensar na efemeridade da existência humana. No soluço sufocado que intermedeia o nascer e o morrer.  Na incapacidade tantas vezes sentida, frente a maré alterosa que derruba e destroça.  No vazio que nos fica nas mãos, quando a areia se nos escoa por entre os dedos ...

Só não queria pensar que a ampulheta esvaziou uma outra vez ...

Anamar

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

" O NATAL DO NOSSO DESCONTENTAMENTO "




E então é Natal ...

Mais outro Dezembro, mais outro Natal, outro ano em passadas aceleradas para o fim.  E nós, com ele ...
O calendário anuncia, determina, impõe tréguas, paz, conciliação no coração dos Homens, indiferentes.

Um pouco por todo o Mundo a azáfama instala-se no ritmo de sempre.  As luzes há muito se acenderam nas ruas, as vitrinas das lojas vestiram-se com o que de melhor havia no seu interior, num apelo mudo aos passantes.
Compra-se, encomenda-se, marca-se ...
Tem que estar tudo estranhamente a postos,  no que mais parece uma maratona social que deverá ser irrepreensível nos pormenores.  Há uma urgência instalada e sentida.

Por aqui as pessoas dão-se as Boas Festas, indistintamente, numa transcendência magnânima que vem do coração.  Exortam-se os maiores e mais profundos sentimentos de alma, numa generosidade sem contenção ou limite.
Afinal, reina um espírito universal de solidariedade e irmandade.
Pelo menos uma vez no ano, as mãos entrelaçam-se, os corações estreitam-se ... parecemos comungar um insuspeito sentimento de fraternidade ...

É o "reencontro da diáspora", diz Marcelo Rebelo de Sousa, referindo o encontro das famílias que a sorte madrasta teimou em separar e espalhou pelo planeta.
É a busca do convívio daqueles que por aqui vão estando, por vezes pouco presentes ainda assim.
E é a recordação de outros encontros, entre aqueles que não voltarão a encontrar-se, nesta diáspora que é também a vida de cada um ...
E depois há os que não têm mais quem encontrar ... a não ser os que na mesma nau e na mesma odisseia, partilham os temporais de todos os dias .

Enquanto isso, sabemos das bombas.  Sabemos de Aleppo e das suas crianças órfãs e sem sonhos ...
Sabemos dos refugiados nos campos da desesperança ...
Sabemos dos atentados e sabemos dos que morrem, sem bem saber porquê ... Apenas pela desdita de estarem no sítio errado na hora errada ...
Sabemos os amordaçados na voz e na vontade, onde a palavra liberdade é mítica ...
E sabemos África e Ásia naquela manta de retalhos de miséria e infortúnio.  De doença, de provação e de dor ...
E sabemos das cidades agrilhoadas mesmo no coração da "civilização", pelo medo dos fantasmas  da ameaçadora violência sempre iminente, demasiado iminente ...
E sabemos da lotaria que é a vida de quem conta tostões nas contas magras, em meses demasiado compridos ...
E sabemos do frio e do silêncio, em lares de costas voltadas, quando as pessoas já só se desconhecem ...
E de velhos ... centenas de velhos ... largados  na solidão desesperante de hospitais e instituições, e onde a demência é uma aliada e uma misericórdia ...
E sabemos de todos os sozinhos, silenciosos e escuros na alma, com horizontes de sol posto ... numa orfandade de afectos e calor ...

Sabemos tudo isso e ainda assim acreditamos neste Natal !...
Afinal, simplesmente, o Natal do nosso triste descontentamento !!!...

Anamar

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

" E ALEPPO AQUI TÃO PERTO !... "




E Aleppo aqui tão perto !...

Porque afinal o Mundo é pequeno, demasiado pequeno ... bem o sabemos.  E o troar das bombas nos rebentamentos, em noites intermináveis e tenebrosas, chega-nos aqui.  Bate-nos ao coração.  Toca-nos o espírito e desassossega-o, e intranquiliza-o com as danças medonhas dos monstros e da morte esvoaçante.
A escuridão pesada e inimaginável  por nós, os presenteados do destino, assombra os que não dormem, não comem e não vivem,  lá ... talvez à espera do derradeiro momento ... quiçá o do alívio, em cada estrondo que atordoa.

As ruínas do que foi um local de se viver, as portas e as janelas esventradas no que ainda resiste em pé, são fantasmas terríficos de dedos acusadores  ao Mundo do século XXI, que parece adormecido, demasiado indiferente e distante.
Entretanto, como soldadinhos fantoches em guerras de fazer de conta, os civis, homens, mulheres mas sobretudo crianças, indefesos, vivem o horror da incerteza, do medo, do pânico paralisante de bicho acoado em ratoeira armada por loucos em desvario.
E tombam ... tombam a cada hora, a cada minuto, sem saberem por que tombam ...  Sem saberem por que vale tão pouco a sua condição humana !...

Bana relata, na sua inocência de menina de sete anos, o que vê, o que ouve ... ao que assiste, com o pavor de quem não sabe se no momento seguinte ainda o poderá fazer ...
E suplica que rezem, que todos unam preces  para que o Inferno páre, para que o pesadelo termine... para que as bombas parem de cair, arrastando consigo tudo e todos.
O pai foi ferido, perdeu o seu melhor amigo e muitas outras crianças como ela ... só que mais desafortunadas.  Velhos, homens, mulheres com crianças ao cólo, perambulam sem destino por entre escombros que escondem a desgraça.  Não há mais refúgios, não há mais esconderijos !  Só a sorte de cada um ditará o seu destino.
Em desespero, tenta chamar-se a atenção hipócrita do ocidente, das instituições e dos países preponderantes, para o genocídio que acontece a cada dia.
Fazem-se vídeos nas redes sociais. Usam-se os recursos das novas tecnologias para denunciar, sensibilizar e pedir socorro, em despedidas pungentes, de pessoas conscientes de que essas serão as suas derradeiras palavras ao Mundo.

Aleppo é uma cidade fantasma.  Aleppo é um pesadelo tornado realidade, onde a vida é aleatória, onde o sonho não cabe mais, onde a busca da sobrevivência é o único horizonte para os que resistem.

Enquanto isso, o Mundo faz compras de Natal !
Atropela-se, num afã alucinado de consumir, consumir, consumir ... na promoção de um evento cada vez mais desumanizado, esvaziado, alienado.
As cidades iluminam-se profusamente.  As mesas irão rechear-se.  Os risos, a alegria e a abundância  não deixam espaço para outras preocupações ou pensamentos mais altruístas e fraternos.
As consciências repousarão sem demasiados sobressaltos ... tenho a certeza !

Lá, a cidade também se ilumina, por cada explosão acontecida.
Nas mesas desmanteladas, de lares que já o não são, haverá comida, haverá leite ... sequer pão ?
Os choros, os gritos lancinantes, a dor e o desespero alastrarão por entre as sombras agigantadas, até que um silêncio de morte desça ... e com ele traga a paz para os que deixaram de sofrer !

Assim é o Natal  ...
Assim é o Natal também em Aleppo ... aqui tão perto !...



Anamar

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

" DOENÇA DOS TEMPOS "




As pessoas morrem aos poucos, um bocadinho de cada vez.
A solidão em que uma imensa faixa da população vive, o isolamento a que é votada  mercê do ciclo da vida, marginaliza, obstaculiza e segrega da felicidade muito ser vivente.
As grandes cidades, com o anonimato de que somos vítimas ombro a ombro com as multidões que cruzamos, o ostracismo em células que muitas vezes já foram familiares e hoje pertencem apenas aos que restaram, as torres, os edifícios de muitos fogos com gente circunscrita a espaços demasiado restritos, desapoiada e confinada a mundos demasiado limitados, propiciam estados de alma deteriorantes e destruidores do ser humano.

A vida, com todas as dificuldades reais e exigências inerentes, com todas as angústias desencadeadas pela imposição do cumprimento de necessidades básicas, mesmo que só de sobrevivência ...
A vida, insatisfatória e com penalizações  frequentemente de uma violência desumana, entristece, desmotiva, cansa e angustia todos quantos a atravessam enfrentando os mais dolorosos escolhos ...
As dificuldades e as verdadeiras barreiras quase intransponíveis que se verificam no entendimento das linguagens, na comunicação entre gerações que criaram valores, convicções e formas de sentir totalmente diversas ...
A indisponibilidade que quase todos ostentam, num corre corre, numa lufa-lufa indiferente aos problemas de cada um, aos seus sentires e inquietações ...
A insensibilidade face ao outro, num egoísmo social, num egocentrismo monstruoso e sem tamanho ...
As frequentes desagregações familiares, as clivagens sociais, a progressão dos anos que também arrasta consigo limitações sérias e crescentes, a nível de resistência e de saúde ...
As incertezas em futuros que já se não afiguram tão distantes assim, e que se mostram preocupantes e com prenúncios de tempestades ...
... mergulham em si - em vórtices ciclópicos, em labirintos estonteantes e demenciais - as pessoas, já de si fragilizadas e desgastadas pela verdadeira epopeia que é viver e resistir no dia a dia.

Depois, surge também a dor da solidão afectiva.
Há cada vez mais pessoas que sofrem consigo mesmas.  Pessoas compelidas à sua solidão e ao seu isolamento emocional e afectivo, num processo contranatura, já que o Homem é um ser gregário, um ser de matilha e clã.
Ou por moto próprio, ou mercê de circunstâncias da vida, num desajuste com ela ... os órfãos do amor, do afecto, do amparo, do cólo de que não dispõem, do calor do abraço que anseiam ... são cada vez em maior número, alastrando uma epidemia social de gente sofredora da ausência de carinho e de afecto.
O aumento exponencial de divórcios e separações, a viuvez prematura entre pessoas ainda com invejável qualidade de vida ( mercê do acréscimo da esperança de vida  numa sociedade mais cuidada e com acesso a mais recursos em termos de cuidados de saúde) ... lançam na sociedade uma significativa franja de pessoas avulsas e sós, que, dependendo obviamente das suas personalidades e exigências perante a vida, a aceitam melhor ou pior, mais ou menos pacificamente e a vivem de uma forma mais ou menos feliz ... mormente com infortúnio e insatisfação, constato!

Não se encontram sucedâneos que colmatem esses buracos existenciais.
Não se compra afecto, partilha, cumplicidade, nas lojas que nos vendem quase tudo ...
Não se "encomendam" realizações e finais felizes,  para sonhos ainda tantas vezes sonhados.  Não se amanhece dizendo : "hoje encontro novos caminhos e vislumbro novas estradas !  Hoje, se chorar, vou ter quem pacientemente me seque as lágrimas, me devolva a esperança e a fé em novos e mais generosos horizontes !... "

E ss pessoas vão morrendo aos poucos, um bocadinho de cada vez .
Pelo menos até que ainda tenham um sopro de "vida" no coração e um derradeiro fôlego na alma ...

Mas,  os pôres de sol vão empalidecendo ... Esquecemos como é dançar na chuva ... O olhar opaciza, cansado de se alongar pelos montes, e o ouvido endurece ao canto das aves de outras vidas ...
A debilidade anímica abate-se sobre nós, a força do crer e do querer esvai-se, exaurindo a capacidade do avanço, perdida a aposta no valer a pena ...

Esta implacável "doença dos tempos" alastra e submete, trucida e desmantela !...

Anamar

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

" SONHOS SONHADOS "




Estamos naquele tempo em que o plátano das traseiras se traveste das cores doces de um Outono-Inverno dormente e sorumbático, que nos aconchega.
As folhas verdes já são minoria, quase um achado encontrarem-se.  Os ouros e os ocres avermelhados imperam, em folhagem que se precipita a formar tapete no chão desta praceta, hoje silenciosa.
É domingo, o céu cinza plúmbeo impiedoso aqui por cima, está de um uniforme impávido e sereno.
A chuva precipita-se copiosa, alguns pombos cortam em pressa o firmamento e as gaivotas que recuaram, dançam nas ondas da aragem.
Para lá, onde o céu beija o mar, adivinho um desalinho alteroso ...
Por isso, elas buscaram terra segura.

Aqui, impera uma total ausência de som que me perturbe.  Os gatos dormem e ressonam mesmo, neste dia de desconforto.
À minha frente, o incaracterístico casario desgovernado e ao meu lado, companheira de demasiadas horas de silêncios e solidão, Énya embala-me com o seu inconfundível timbre, em melodias que conheço de cór.

Um dia mais que se abeira do fim.  A escuridão começa a cerrar-se ... e ainda não são cinco da tarde !

Interrogo a vida e o que é vivê-la.
Interrogo esta inépcia inata que tenho para o fazer.
Interrogo esta insatisfação dolorosa de mãos demasiado vazias perante ela.  Como se por entre os dedos me tivessem  fugido o sonho, a vontade e a fé ...
Interrogo esta incapacidade de nortear estes meus rumos sem rumo ... Com menos rumo que o das gaivotas aqui por cima ... que parecem não tê-lo.
Interrogo a lógica de uma existência que simplesmente se arrasta no escoar dos dias.  Pergunto-me como será ... e apavoro-me com o que está por vir ...

E o tempo escoa e submete-me.
E vergo-me perante os seus desígnios inapeláveis.
O pântano, o atoleiro, a areia indefinida e movediça  retiram-me a fé, a coragem e a força de mover as pernas e andar ...
Atordoo-me como numa estrada desconhecida, sem fim ou destino, cansada ... perdida sem itinerário.
Como se simplesmente devesse seguir, penitente ...

Por que não sou simplesmente uma pessoa comum, se sou uma pessoa simples no viver ?!
Por que me rebelo e não me conformo com o percurso tépido que a vida me disponibiliza ?!
Por que me maltrato inventando sonhos maiores do que a realidade mo permite, num desassossego inveterado ?!

Sonhos simples, contudo ... Sonhos justos, acredito ...
Sonhos de linguagem modesta, mas feitos de pequenos / grandes farrapos de emoções.  Feitos de linguagens de amor, de gestos límpidos, transparentes e quentes.  Sonhos pintados das cores envolventes e aconchegantes das doçuras outonais.  Sonhos vazios de solidões,  plenos dos afectos que sempre pairam  nos gestos cúmplices, nas palavras não ditas e só sentidas, nos sorrisos que nos enrubescem as faces, porque enleiam as batidas dos corações ... quando estas se partilham ...

Sonhos e mais sonhos ... apenas sonhos ...  Simplesmente sonhos sonhados !

Anamar



terça-feira, 15 de novembro de 2016

" GRATIDÃO "





12 Novembro 2016



" Gratidão "


Nasci neste dia e foi destino
a minha sina ser escrita na maré ...
neste caminhar pé ante pé
a minha vida ser cansaço e desatino ...

Mas os amigos que são amparo e são bordão
não me abandonaram no caminho
e foram tantos e transbordaram do carinho
que me fez reviver o coração !

E por isso as flores da madrugada,
gotas de uma chuva abençoada
que colhi, aspergiram a minh'alma

E uma profunda e doce gratidão,
contas de amor enfiadas num cordão,
foi a paz que me envolveu na tarde calma !

Anamar

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

" REZA, AMÉRICA !... "





" Um privilegiado de recorte fascista a liderar o descontentamento popular e a transformá-lo em poder pessoal.  Se precisávamos de mais sinais, este foi o último.  É para aqui que o mundo ocidental se está a dirigir " -  Daniel Oliveira

" Os idiotas vão tomar conta do mundo, não pela capacidade, mas pela quantidade.  Eles são muitos ! "  - Nélson Rodrigues


Estas, são apenas duas citações que a madrugada de ontem suscitou, depois de divulgada a notícia bombástica da vitória de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos da América.
O mundo acordou estupefacto, recusando acreditar estar perante a concretização de algo que parecia impensável.
A América amanheceu com uma espécie de outro 11 / 9  neste certamente inesquecível  9 / 11 !
A apreensão instalou-se de ocidente a oriente.  De certa forma, o mundo vivia o início do que poderá tornar-se um pesadelo futuro ...

Odeio a política, os seus meandros sujos e ignóbeis.  Odeio aquilo que a move, aquilo que alimenta os mais torpes desígnios dos que a fazem.
É um campo mal cheiroso e nojento.
Também não venho aqui tecer nenhum considerando novo.  Aliás, quem sou eu para me sentir com autoridade para opinar abalizadamente, a propósito ?
Sei contudo que na vida, queiramos ou não, somos seres forçosamente políticos e que tendo cabeça para pensar, também não fará sentido demitirmo-nos de pelo menos reflectirmos, analisarmos e termos opiniões pessoais sobre os acontecimentos e os assuntos que nos rodeiam e que determinam os desígnios do ser humano neste planeta que habita.
Sei também que tudo já foi destrinçado à exaustão, por todos, que todas as "armas" já foram esgrimidas neste contexto em todos os meios de comunicação social, que todas as análises já foram minuciosamente escalpelizadas e todos os cenários desenhados.
Portanto, trazer à colação este tema, talvez possa parecer pretensioso, redundante e excessivo.
Ainda assim, vou referir algumas questões que me preocupam, algumas interrogações que se me colocam, algumas dúvidas que me angustiam.

Basta ter seguido com alguma atenção a campanha havida para a presidência dos EU, para percebermos que estávamos perante dois candidatos que não seriam solução.  Entre Hillary Clinton e Trump, a escolha configurava-se difícil.
Nunca se trataria de uma escolha perfeita, num país dividido, em partidos também internamente esfrangalhados, mas sim de escolher entre dois males, o que menor fosse.
Nessa conjuntura, Trump deveria então ser assisada e prudentemente banido.
Um candidato notoriamente impreparado, um indivíduo de uma linha assustadoramente radical e extremista, com intuitos xenófobos, persecutórios, inescrupuloso no respeito pelos direitos humanos de que faz tábua rasa, misógino, provocador, louco e inconsequente ... representará seguramente um campo minado, com imprevisíveis consequências em termos futuros.

Como pode um indivíduo que assumiu posturas boçais inqualificáveis e abjectas, de um machismo aviltante e nauseabundo, ser reconhecido como idóneo na chefia de uma nação ?!

Como pode alguém que não reconhece e descredibiliza a luta séria e inadiável a ser travada num esforço colectivo por todos os povos na salvaguarda dos problemas ambientais do planeta, ser designado para chefe superior de uma super potência, com responsabilidades por isso, acrescidas, colocando à frente do direito à vida e à qualidade da existência do ser humano, os interesses do capital e dos lobbies económicos ?!

Como pode alguém assumidamente racista, extremado e emocionalmente intempestivo e desequilibrado - que fala em deportações massivas, que fala na criação de muros entre povos e países, quando o Homem deverá empenhar-se sim, em derrubá-los, numa luta para a integração, a aproximação e a assimilação do seu semelhante - ser colocado à frente dos destinos de um país como a América, com óbvias implicações em todo o equilíbrio e pacificação mundiais ?!

Como pode ter sido investido de poderes de chefe de estado, alguém com uma nem sequer disfarçável proximidade com linhas políticas e sociais suspeitas, perigosas e preocupantes - haja em vista o regozijo e o apoio exuberante pela sua eleição, provenientes de sectores, facções e países que sem dificuldade reconhecemos ?!

Bom, não pretendo alongar-me mais.
Estas foram apenas algumas reflexões que traduzem naturalmente inquietações que serão minhas e seguramente de muitos mais.

Pergunto-me : foi tão ardiloso Donald Trump que se aproveitou da ingenuidade do povo americano ?!
Foi tão perfeitamente artista no vestir dissimulado da pele de cordeiro, mascarando o lobo que ainda não se mostrou ?!
Jogou tão maquiavelicamente com a insatisfação popular, lançando eflúvios entorpecentes sobre todos os que irão acordar forçosa e irremediavelmente tarde ?!

Resta-nos aguardar e continuar atentos  para percebermos o desenvolvimento desta novela de mau gosto.
Até lá, se fosse católica diria : " REZA,  AMÉRICA ! "

Anamar

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

" NADA "




Nada ficou no lugar
ainda que o rio busque o mar
numa correria louca ...
Nada mais ficou igual
depois que esse vendaval
silenciou minha boca.
Nada ficou como era,
já partiu a Primavera
das minhas mãos, que cansaram
quando pela madrugada
os teus olhos que eu amava
dos meus, tristes, se apartaram.
Nada ficou como antes,
sonhos ficaram distantes,
irreais ... inexistentes ...
Foi injustiça da vida
uma chegada e partida
à minha mágoa, indiferentes !
Tu seguiste e eu fiquei ,
num amor que adivinhei
ser fogo fátuo, na estrada
Mas de tudo o que  vivi,
de nada me arrependi,
mesmo não sobrando nada !...

Anamar

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

" ORAÇÃO VESPERTINA"




O último pássaro atravessou este céu empalidecido.
Ia sozinho, decidido, rumando ao horizonte, em recorte esfíngico , contra as pinceladas laranja desenhadas num azul diáfano, diluído ... líquido, eu diria ... deste fim de dia.
É um céu de paz e serenidade, este que se desenha frente à minha janela.
É um recolhimento absoluto, esta hora de dormir, em que a Natureza emudece e se apazigua.
Não há perturbação, não há ruído ... é uma hora de privilegiado comprazimento. É uma hora de intimismo perfeito.  De equilíbrio e harmonia.
Em que a beleza que não se descreve é um louvor que se eleva ao infinito.
É uma oração celestial de gratidão pela arquitectura perfeita que nos envolve.
É um enlevo que nos emociona, por tão insignificantes, merecermos tanto !...

Sempre silencio, no recolhimento de claustro de abadia ... nem sei explicar o quanto !
Pareço não querer tocar o que vejo, o que sinto, o que perscruto.  Porque tocando, perturbaria este milagre que se me desenrola perante o olhar ...
Breve, Vénus, a primeira "estrela" do firmamento, se acende, na guarda do rebanho que aí vem, à medida que a escuridão desce.
E uma poalha generosa ponteia e pinta, como nenhum pintor o sabe fazer, esta abóboda de veludo aqui por cima.

Fim de mais um dia que nos foi dado viver ...

Anamar

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

" EU TORNEI-ME GAIVOTA ... "


O bando dá em passar por aqui, nestes fins de dia.
Quando as luzes do céu já se fecharam, quando o cinzento que se estende até onde a vista alcança prenuncia borrasca pela noite que se avizinha, elas passam pressurosas numa urgência lida, de busca de poiso para a pernoita.
Seguem na mesma direcção ... todas ... muitas, ordenadamente, como quem voa sem dúvidas no itinerário ou sequer no destino a alcançar.
Vão determinadas.  Conhecem o objectivo ... e têm urgência.
Afinal a noite aproxima-se, o mar está longe ... e a tempestade anuncia-se ...

São elas, as gaivotas, sobre quem tanto sempre escrevo.

Olho-as, "sigo-as", projecto-me através delas na liberdade de todo um firmamento por minha conta.
De todo um  mundo sem barreiras ou limites que o definam.
As gaivotas despertam-me desejos do que só adivinho e que está para lá do que alcança a mente humana.
Falam-me das asas que não tenho, transportam-me as saudades que me pesam no coração, levam-me recados sem endereço ou morada ...
São estafetas dos sonhos que me moram na alma.  Falam-me dos horizontes sem horizonte da vontade indomável que me habita ...
E dizem-me do mar, morada eterna de meu repouso e sono.
Dele, contam-me os seus segredos salgados e embalam-me na melopeia das ondas que adivinho num desmantelo ... lá longe !
E mostram-me o vento que lhes despenteia as penas, e sempre me desafiam a partir ... embora eu só as veja por detrás da vidraça que  me torna refém de mim mesma ...
Tenho a certeza que passam aqui p'ra me justificarem a imaginação e o devaneio. Para me acicatarem a vontade... p'ra me confrontarem sem remédio, com as minhas raízes e escoras ao chão que habito ...

E contemplo-as longamente ... melancolicamente ... persigo-as com o olhar, até onde a vista mo permite e me espicaça ...
É uma nostalgia errante a que me aperta aqui por dentro, por vê-las partir ...
É uma orfandade doída, a que me deixam no peito quando me percebo, injustamente, mais só ainda ...

E acabo indo ...
E parto no bando, lado a lado, aprendendo a contornar os golpes de ar, aprendendo a preguiçar na orla das nuvens, aprendendo a brincar nos volteios da ventania, desbravando as estradas do céu, saboreando os salpicos das marés, equilibrando-me  no pico das escarpas altaneiras ... e sendo dona dos areais  infinitos, agora que as praias ficaram vazias ...

De repente eu aprendi um caminho, eu rescrevi a minha história ... eu ganhei asas ... eu tornei-me gaivota !!!

Anamar

sábado, 15 de outubro de 2016

" A IRRELEVÂNCIA DO EXISTIR "




Não escrevo ... faz tempo que não escrevo !  Nem consigo achar que valesse a pena fazê-lo.
Parece que já disse tudo o que tinha a dizer.  Parece que secou em mim a cascata que me extravasava, me inundava e me transbordava, abençoadamente, quando punha as letras no papel, quando o coração jorrava e a alma se despia, em alívio ...
Tudo parece ter deixado de fazer sentido !  Tudo ficou  desconhecido !  Eu passei a desconhecer-me, mais e mais ...

Estou a viver uns tempos absolutamente estranhos na minha vida.  Sinto-me como que dormente, amodorrada, adormecida..
Pareço esperar um qualquer nada que não defino.  Pareço esperar uma qualquer esquina, que dobrada, me mostrasse um caminho, uma estrada, um rumo ... um horizonte.
Um horizonte que me definisse vistas ou perspectiva, que daqui, deste ponto onde me encontro não enxergo, não alcanço, não diviso.

Como se pode viver apenas respirando, acordando, dormindo, realizando as mínimas funções vitais ?
As mínimas, garantes apenas da sobrevivência ... Porque viver não pode ser apenas isto, tenho a certeza !
Não experimento emoções, não toco a esperança, não me entusiasmo ou preencho com projectos, futuros, sonhos, ilusões ...
Parece que já esqueci o que é tudo isso !
Apenas sinto um cansaço e um abandono de ser desistente e incrédulo.
E pergunto-me quanto tempo alguém é capaz de se arrastar assim ?!
Estou cansada, brutalmente cansada  sem ânimo ou força para continuar.  Tudo parece ser irrelevante na minha existência. Indiferentemente irrelevante !...
Como se um vento destruidor  de tempestade alterosa, me tivesse pegado em remoinho de dia invernoso, e como folha arremessada, me jogasse num vórtice impiedoso ... E me açoitasse, e me sacudisse, e me atirasse pelas alamedas de jardim esquecido onde ninguém passa ... em rodopio entontecido !...
Qual folha amarelecida de Outono , ignorada numa esquina de ventania.  Varrida pela ignorância da tempestade, com a indiferença absoluta do desconhecido.

Pouco importa quem sou, o que sou, como estou ...
Quem se importa com a folha seca, desprendida daquela árvore que se despiu na aproximação do desabrigo que aí vem ?
Quem sequer sabe que eu ainda existo, só porque ainda estou por aqui ?

Exausta ...
Numa espécie de fim de linha, de volta de estrada ... de fim de caminho !
Vazio ... só vazio à minha volta.  Silêncio absoluto.  Descolorido de fim de dia ...

Mais um.
Apenas mais um a encerrar as portas.
Mais um que jamais poderá retornar e voltar a ser vivido !
Mais um que nunca mais poderá ser reinventado na minha vida !...

Anamar

sábado, 8 de outubro de 2016

" FIM "




Estranhos estes fins de tarde ... Estranhos estes fins de estação ...Estranhos os fins de vida !...

Os dias anoitecem bem mais cedo.  Alaranjam lá ao fundo, escurecem os contornos que se tornam mágicos ... e partem.
A mornidão ainda prevalece, doce, embaladora, envolvida nas cores anoitecidas e dolentes de um Outono recém chegado.
Os silêncios descem, como se a Natureza entoasse uma canção de ninar, de fim de dia.

Junto de mim, Énya lança acordes celestiais, aqui neste meu quarto de solidão e paz.  Por alguma razão a busco, no aconchego da quietude que me rodeia.
Ela "fala-me" na medida certeira do meu estado de espírito.  Ela afaga-me a alma, e aquece-me o coração, com os seus sons de melodia de outra dimensão !.
São assim estes tempos de penumbra, como claustro de abadia.
Silenciosos, dormentes, com a luz velada a coar-se pelas frinchas ...

O fim de qualquer coisa, sempre é estranho.
É um despir do espírito e é uma preparação para outra realidade, com uma roupagem nova.
É uma hora de passagem.  É uma hora de mudança. É uma hora de transição.
Nem sempre queremos deixar o que já foi.  Nem sempre estamos desarmados para receber o que chega.
Há uma violentação do Homem ... se mais não for ... sê-lo-á por inércia a ser vencida.

O Outono da vida é igual.
Encaminha-nos a passos largos e pressurosos para o Inverno que há-de vir.
As luzes da alma reduzem.  Os silêncios prevalecem.  O espírito amodorra.  O corpo cede.  O cansaço providencial avança.
Os comutadores da "grande máquina"  redimensionam as capacidades.  A apatia instala-se.  Há uma resignação latente, no cansaço prevalecente.

Vou-me confrontando mais e mais com tudo isto.  Diariamente.  Com uma violência atroz.  Demasiado longa ...
Para se viver não basta acordar, respirar, comer ... dormir, outra vez.

A minha mãe assim mo lembra, por cada dia em que nos falamos.
E quem sou eu p'ra lhe dizer que terá que entender que a realidade é aquela que a confina a um sofá, uma cadeira de rodas ... uma cama ?
Que autoridade tenho eu, que entro, que saio, que corro, que vou e que venho , para lhe dizer a ela que está frente a uma parede cujos desenhos do papel que a revestem, já sabe de cor e já contou mil vezes ... que tem que aceitar, e ... conformar-se, talvez ?
De que audácia disponho, para lhe falar em pessoas bem novas, reduzidas a um vegetar em vida ? Como se isso a compensasse da sua ... que não o é ?!
Para lhe apelar que pense em tantos quantos, bem ao nosso lado, vivem a conformação da inalterabilidade de uma morte lenta e dolorosa ?
Que atrevimento me toma para lhe dizer, às vezes já cansada e agastada, que deve tentar distrair-se com uma televisão que desliga ... porque está farta?
E que devo responder-lhe quando me diz que todas as noites pede p'ra "se lembrarem dela", porque não quer este fim de uma vida tão longa, a custos tão elevados ?

O fim de qualquer coisa, sempre é estranho..

Por que, ao longo das nossas vidas temos que conviver com sucessivos epílogos, sem remédio ou justiça?
Por que nos confrontamos, tendo que aceitá-los e ultrapassá-los com toda uma resiliência de que nem sequer dispomos, tentando minorar-lhe os danos colaterais ?
Por que nos lança a existência, sucessivos desafios de perda e devastação irremediável ?

E há que seguir.
Há que continuar, remediando as escoriações, reunindo os cacos, suturando os rasgões, embora saibamos que não mais seremos os mesmos.
O caminho é longo e pedregoso, os pés retalham-se ao percorrê-lo ... a alma dilacera-se ... o coração sangra ...

O fim de qualquer coisa, sempre é demasiado estranho !  Irremediavelmente estranho !...

Anamar

domingo, 2 de outubro de 2016

" OUTONO OUTRA VEZ ! "




Anoitece mais cedo.  Sente-se bem que os dias encurtaram.  O sol busca o horizonte bem antes do que há escasso tempo atrás.
A sua luz já não é igual.  É uma luz mais doce, mais dormida ... mais mansa.
Parece convidar a um regresso a casa, desvenda o segredo dos primeiros fins de tarde outonais.  E tem a cor desses fins de dia.  Tem os seus silêncios, a sua cumplicidade, a sua interioridade...
É um sol que me fala de saudade, que me fala de solidão, que me fala de abandono.
E do cansaço que me invade, também.
E eu tenho infinita saudade ... de tanta coisa que foi e não é mais.  Saudade de tudo ... indistintamente.  Saudade de mim !...

Eu pensava que depois de se morrer, não se podia morrer mais.
Mas pode !
Pode morrer-se e ir-se morrendo aos poucos outra vez ... Todos os dias um pouquinho.

Aqui por cima, uma gaivota sozinha, aproveita os golpes da aragem na demanda do poiso de pernoita.
Sozinha ... não voa, deambula em balanço de jeito de maré.
É a hora da passagem.  O dia cede lugar à noite, a luz à escuridão, os sons ao silêncio.

Saudade ... esse tormento de passado que se quer tornar presente, em vão !
Esse tumulto de labareda e chama desgovernada !
Essa espada que se enterra indiferente, mais e mais, dilacerando, despedaçando, cortando.  Até às fímbrias da alma ... insensível, distante ... surda !
Essa coisa desobediente e carrasca que não obedece à lógica, à sensatez, ao pragmatismo.  E nos fragiliza e desfaz por dentro.  E mata ... outra e outra vez !

Entretanto o Outono chegou.
Sinto-o, mas acho que já não o descrevo.
Há muitas emoções que percebo indizíveis em mim.  Como se me tivessem embotado o coração.
A vida endurece as pessoas.  Insensibiliza-as.  Amorfiza-as.

Lá longe adivinho a serra, nos verdes-musgo, nos ocres, nos vermelhos e nos castanhos de partida.
Sei-a e cheiro-a, como se lhe calcorreasse as veredas, de novo.  A caruma espalha perfume pelos córregos.
Os ouriços dos castanheiros bravos, dependuram-se, e abandonam o recheio.  Breve, as castanhas a assar,  voltarão a trazer-nos a intimidade de dias conhecidos.

Lá longe ... no fim do meu sonho, está aquela casinha que inventei.  Vejo-a, nas résteas de sol de fim de dia ...
Uma porta, duas janelas, uma lareira que haverá de fumegar, uma cancela de aldraba ferrugenta ... trepadeiras que já não florescem, em fim de estação ... margaridas em bordadura de beira de caminho ... e o areão que estraleja debaixo dos pés ... estrada abaixo ... sobre a arriba ...
E o interior ... ah, o interior também o vejo, pejado de sonhos, de emoções e de afectos ... entre palavras ditas e palavras apenas adivinhadas, em sussurro.  Entupido de esperança e de paz !...
E oiço claramente os acordes de Beethoven,  nas teclas do piano imaginado, nas noites de silêncio !
Porque eu sou livre de inventar ... e uma inveterada sonhadora !...
E aos loucos sempre se perdoa tudo ...

Lá longe ... depois da serra, o mar  braveja em areais que não pisei.
As rendas deixadas na areia, são véus largados que se fazem e desfazem, no capricho das marés.
A brisa que volteia traz histórias de marinheiros ausentes, e as gaivotas brincam de nostalgia de fim de Verão.

Mas tenho a certeza que agora é que se preparam p’ra serem felizes.  As praias ficam desertas, a mansidão dos mares da estação finda dará lugar às borrascas desafiadoras,  o silêncio irá imperar ... e vão restar-lhes as falésias.
E as gaivotas amam as falésias, amam roçagar a crista alterosa das ondas endiabradas, amam o desafio tentador dos ventos desgovernados que aí vêm ...  E amam ser donas das areias vazias e dos céus sem limites ... livres ... mais livres do que nunca !

É assim o Outono !

Sempre me mexe e remexe.  Sempre me envolve numa melancolia adocicada e morna ... como um agasalho promissor que me desse ninho !

Anamar