quarta-feira, 22 de outubro de 2014

" ESCORRÊNCIA "




Ando tão indefinida quanto a indefinição do tempo !

Um tempo que põe a mesma árvore que frutifica, a reiniciar a floração, sem se decidir ... põe-nos a nós, de neurónios baralhados, corpos confundidos, feitos "baratas tontas", em encruzilhadas de vida, sem bússola.
Ou em alternativa, que o não é, num marasmo, numa apatia, numa desmotivação e num cansaço de doer.

Um "abanão", dizia-me um amigo, eu precisar urgentemente ... Um abanão !!!

Mas que abanão ?   Que intensidade de abanão precisarei eu, para ver a vida de outra forma, para me ver com outras "lentes", para achar alguma credibilidade nesta coisa que vou desfiando ( "gemendo e chorando, neste vale de lágrimas" - dizia-se na catequese ), vinte e quatro sobre vinte e quatro horas ?
"Para sorrir" ... dizia ele !...
Refém ... sinto-me refém de uma não sei que história sem história,  sinto-me penitente de uma não sei que falta ou pecado, sinto-me ré de um não sei que ilícito ou infracção ...

Dor ...
Um destes dias li um artigo espantoso, sobre a dor.
A dor muda que carregamos e não dizemos. Vem às vezes aos rostos, que não têm a habilidade da camuflagem ...
Vem às vezes à voz menos treinada em desdizer ...
A dor do corpo, quase sempre a menos importante, e depois a outra, a gigante ... a monstruosa ... a da alma, a que está cá dentro e que comanda.
Comanda o dia e comanda também a noite.  Traz-nos ao peito, raivas  incontroláveis.  Traz-nos água aos olhos, desobedientes.  Traz-nos nós que não se desatam, às gargantas que entopem e emudecem.
Ensombra a luz do caminho, e por isso, o assombra irremediavelmente.
Paralisa e tolhe.  Agarra-nos, como as forças da lama de um pântano escuro agarram quem lá fica prisioneiro.


A dor, cuja cura mendigamos e de que ninguém quer ouvir falar, por incómoda, por perturbadora, por massacrante ... Se calhar, até por acusadora ... será ?
A dor que não expomos, porque não é socialmente correcto expô-la, não é prudente no mínimo, ou aconselhável ...
Sequer adequado, encararmos as fragilidades, denunciarmos as dificuldades, exibirmos as nossas merdas, e menos ainda, servi-las de bandeja na praça pública, para repasto de urubus ...
Porque urubus pairam, sempre pairam, desde que cheire a carniça em putrefacção.
Já assim é, na savana africana ...

E isso, é demais ... assim já é demais ! É masoquista, é suicida, é temerário ... é brincadeira de mau gosto, ou perda da noção !
Porque é no mínimo ingénuo acreditar em arrego, esperar uma espécie de protecção ou colo anónimos, acreditar em disponibilidade, interesse ou vontade real, filantropia, afecto de geração espontânea, propiciados a nomes sem rosto ... o nosso .
É no mínimo tonto, fora da realidade ... sem necessidade, dirão os avisados.
E depois, quem é suficientemente insano que grite no escuro, que suba à montanha e clame, ou que abra o buraco no deserto e largue lá o seu desespero, auto-estigmatiza-se, auto-rotula-se ... coloca-se uma etiqueta ...
Desnuda-se, tira a roupa protectora da alma ... e mostra-se vulnerável e frágil.  Mostra-se no seu pior.
Mostra como é tão anormalmente diferente, tão imperfeitamente humano, tão marginalmente "outsider", numa sociedade de sentires calibrados, equilibrados, previsíveis e aconselháveis.
Uma sociedade vocacionada para o sucesso, e para os vencedores ... Não para os perdedores, aqueles que evidenciam uma sobrevivência desequilibrante e desequilibrada !...

E talvez tão tivesse valido a pena !...

E incomoda os outros !

E as pessoas não vivem aqui, para serem incomodadas.
As terapias, individuais ou grupais, como qualquer serviço, pagam-se.   E aliás, custam os olhos da cara a quem delas precise !
A sociedade não tem obrigação de ser psicoterapeuta de causas não suas !
Nela, é cada um por si.  E é esta a realidade.  Não tenhamos veleidades !

Na verdade,  muitos, quase todos  vivem felizmente deslumbrados com a vida.   Vivem numa integração quase perfeita no éden da existência.  Vivem em gratidão permanente.  Vivem em êxtase absoluto, porque acordam e dormem cada dia, todos os dias.
Numa realidade normativa, cumprem sem guerrear, com  razoável satisfação, o inquestionável, destinado a si e aos que amam.
E percebem que é assim, deve ser assim ...  Incorporam essa realidade sem utopias, sonhos megalómanos, devaneios absurdos, exigências doentias, insatisfações despropositadas ... a idiota mania do direito à felicidade ...

São indivíduos estruturados, assertivos, inteligentes, pragmáticos, realistas, saudáveis, não lunáticos, crescidos e não atrofiados emocionalmente, adultos, maduros ... ( sei lá o que estas coisas são !!!... )
e por isso, talvez felizes ... ou mais felizes !

Sabem, é muito engraçado fazer-se uma análise antropológica, social, relacional ... das respostas de cada indivíduo face ao que o perturba, ao que o desagrada e o incomoda. Face a quem vá chapinhar no seu charco cálido e manso ...
Se nos cheira mal, afastamo-nos.  Se nos queimamos, tiramos a mão.  Se nos incomodam, evitamos e podemos mesmo fugir ...
Deve ser legítimo, lógico ... deve ser humano !

E uma escorrência fétida, putrefacta, infecta ... só mesmo de máscara, luvas e viseira ... eu entendo !...

Anamar

domingo, 19 de outubro de 2014

´" É ASSIM QUE EU SOU !..."




É extremamente curioso, o ambiente de um terminal de chegada de aeroporto.
É um mundo dentro do Mundo !...
Seja na multidão que circula, seja na diversidade cultural que desfila, seja no multicolorido da pele, dos trajes, seja nas línguas, nos cabelos, no ar, dos que estão e dos que chegam ... seja nas emoções expressas ou na ausência delas ... seja no ruído de fundo, permanente, seja até nas bagagens que passam ... Tudo é uma curiosidade só !!!

É um espectáculo, estar simplesmente sentado, apenas olhando atentamente, sem urgências, analisando quem, com mais ou menos pressa, chega e parte.
Chega do grande coração intraportas que medeia desde a pista de aterragem à sala das bagagens, por corredores intermináveis, guichets, escadas e passadeiras rolantes ... e parte para o exterior, para a rua, para a grande metrópole ... para a vida lá fora, para o trânsito, para a chuva, o calor ou o vento, para a família ou para os hotéis, para alguém, ou para ninguém .

Os rostos em férias são diferentes dos rostos em trabalho.  O ar tranquilo dos que se adivinham veraneantes, é diverso do ar afobado, do fato e gravata, dos que se adivinham em trabalho.
As mochilas a que quase   se resume a bagagem despreocupada dos mais jovens, contrasta com as várias malas, avantajadas quase sempre, das famílias ou dos viajantes de uma faixa etária que nunca dispensa as "amenities " ...

Os operadores de viagens esperam fastidiosamente a chegada dos clientes.   Exibem mecanicamente o folheto informativo, gracejam entre si.  Às vezes parecem sonolentos.
Aeroporto, para eles, representa trabalho simplesmente.
Já nem curiosidade experimentam pelos rostos que esperam, massa informe que se repete em ondas, pelos dias e pelas noites.

Quem chega e sabe que tem quem o espere, abre um sorriso à porta de acesso, rasga esse sorriso quando encontra o rosto esperado no meio da multidão, e acena efusivamente enquanto empurra em ritmo acelerado, o carrinho da bagagem, pela rampa abaixo, na urgência do abraço, do beijinho, de mais sorrisos e gargalhadas.  Afinal, o chão firme já está debaixo dos pés ...

P'ra mim, um aeroporto sempre é um lugar de emoções.
Está inevitavelmente associado a destinos, a sonhos, a outras realidades, novas vivências e maior riqueza interior ...
A períodos garantidos, de afastamento das rotinas muitas vezes pesadas ...
Está associado a sol com outra cor, a mar generoso, rostos distintos, verde e flores, saberes e sabores, outros cheiros e outro vento ...  outra chuva, aventura e liberdade !
Há sempre um mistério desejado e doce, para além das salas de embarque, que não consigo disfarçar.
Mesmo quando não vou, mesmo quando ali estou apenas por acidente, e não saio do lugar ... o meu olhar guloso e atrevido infiltra-se, sem passaporte, percorre corredores, escadas, passa barreiras, adivinha os assentos de espera, olha a pista com os "monstros" alados em dormência de repouso, e o meu coração de caminheiro inquieto, sem rota definida, de viajante sedento e curioso  - que feito pássaro solto, salta de galho em galho  -  acelera as batidas, e lança-se no espaço, em velocidade de cruzeiro, a muitos mil pés de altitude, para um voo interminável e errante !!!

É assim que eu sou !...



Anamar

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

" HISTÓRIAS SEM HISTÓRIA ..."


O tempo está isto. Está esta coisa que se sabe ...
Mas também, sempre ele tem a culpa de tudo ! Por isso, ri ou chora, adocica ou sopra de fúria, se, e quando quer. Com estados de humor indiferentes aos estados de humor flutuantes, dos simples mortais.

Afinal a gente sempre reclama. Sempre achamos, do que reclamar.
É a humidade, é a chuva, é o sol forte demais, a desuso, é a ventania desabrida, é o ar trovoado que nos azara a cabeça, ou é o cinzento de um céu mal pintado ... Enfim, qualquer coisa é "bode expiatório", qualquer coisa justifica o desconforto, a vontade estranha de fugir, de voar p'ra outros céus,  outro chão ...
Qualquer coisa explica esta estranha ânsia de levantar ferro e zarpar ... zarpar por aí, por onde não houvesse vivalma ...de preferência ... digo eu !

Até os patos estão fora do lago...
Mais de vinte ponteavam há pouco a relva, na bordadura da água.
Cá fora a chuva cai, copiosa, insensível. Tenebrosa.  Toda a noite, toda a madrugada e por todo o dia, vento fortíssimo arremessou torrentes de água contra os vidros das janelas, empoleiradas neste terceiro andar, sobranceiro ao verde frondoso das árvores baixas e da relva do golfe, e frente ao cinzento uniforme e plúmbeo do céu, sem horizonte que o limite.

Está um tempo de borrasca.
O firmamento não tem nuvens ... é uma nuvem !   Inteiro, escuro e triste, desliza açoitado pelo vento, empurrado, como se fosse fumarada enfarruscada de chaminé de fábrica.
As árvores vergam, ameaçando quebrar, a temperatura caíu abissalmente, antecipando um Inverno em Outubro ... e as rajadas ruidosas, assobiam desaconchegando tudo e todos. Fustigando o corpo e macerando a alma !...

O silêncio por aqui, ouve-se ...

À excepção do assobio da ventania que se esgueira por qualquer não detectada frincha, à excepção do tamborilar forte das gotas de chuva nas vidraças, e do lamento queixoso da ramaria ... tudo o mais, é quietude.

Vi-os há pouco , à passagem ... aquele casal, na beira da estrada.
Dividiam uma protecção única, para a chuva impiedosa.  As roupas ainda ligeiras, obedecendo à convenção calendarizada, levantavam as golas, fingindo proteger.
Eu juraria estarem completamente encharcados, porque o vento desordenava o percurso da chuva .
E cingiam os corpos na tentativa de aconchego ... e seguravam o chapéu sem esperança, titubeante aos golpes desabridos ... e tinham os rostos iluminados, radiosos e coloridos do calor terno que os inundava, com  uma felicidade e um sorriso tão rasgado, que desafiava a autoridade dos céus ...
Eu diria que passeavam pelos intervalos das gotas, provocadoramente, desatentos ...
Tão demais o que os unia !!!...Tão de menos a intempérie que os rodeava !!!...

Anoiteceu-me junto às vidraças.
Sou eu, os dois gatos e a cadela, o universo espectador deste fim de dia.
Eles dormem.  Eu, alongo o olhar através da penumbra que desce mais e mais, de instante a instante, apagando os contornos deste quadro sem caixilho.
Espicho os olhos por entre as cordas que despencam dos céus, na tentativa de divisar alguma coisa, alguém ... lá longe ... mais além ..
Uma sombra que entrasse solidão adentro... Uma ária que me trinasse um rouxinol ... Um perfume que me subisse da mata ...
Ou tão só, na esperança  de descobrir onde pára a nesga de azul e os raios de sol ( neste anoitecer castigador ), que eu tenho a certeza, pairavam sobre o chapéu de chuva daqueles dois ...

Anamar

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

" INEVITABILIDADE "




Não sei como será viver-se, tendo como esperança de vida, não  ter esperança de vida ...
Não sei como será acordar-se, e por cada manhã  constatar que  mais uma noite passou,  e voltaram a esquecer-se de nos vir buscar, durante o sono ...
Para o bem ou para o mal !...  Ainda não foi desta ...
Não sei como é, olhar o mundo do poleiro da ramagem,  da emoção daquele galho que já foi nosso, e saber que os voos não se podem fazer com as  asas já cortadas ...

E sentir o fervilhar da vida por aí, ouvir dos projectos e dos sonhos, perceber a pulsação dos que riem, dos que falam e se agitam, e entram, e saem, e caminham ... porque têm caminho à sua frente ...
Conviver com o sorriso feliz e iluminado, dos que têm esperança ... porque têm vida !!!

E  não têm paciência, disponibilidade, vontade ou interesse, para ouvir aquela nossa história que nos garantem, repetida já,  cem vezes ...
E confrontam-nos  constantemente  com a confusão, a imprecisão,  a ausência de nexo da nossa argumentação ...
Eles lá  têm tempo para isso !!...
O tempo deles é precioso demais para o perderem  escutando nada de relevante.  Afinal, têm vidas que os solicitam, e onde  há  tanto  para fazer !...

E reclamam da repetição do repetido, da negligência dos nossos  cabelos brancos em desalinho, da indiferença ou da distância adormecida que nos embala ... porque as emoções nos falham, as forças se esbatem,  o cansaço se instala, a  mente  se  opaciza ,  na proporção da turvação crescente do nosso olhar... e da nossa cabeça !

Não sei como será percebermos que o tempo passou, muito depressa, que o nosso lugar do sofá, é quase só o que nos deixaram ... e que nos cabe viver, ou melhor, sobreviver  sem que façamos grande turbulência, exigências,  ou agitações de maré brava e perturbadora ...
Para que o estorvo que já somos, não se torne insuportável, e a nossa presença  quase já  muda ... inaceitável ...

E verificamos o ar entediado  e saturado com que não ouvem já as mesmas queixas, repetidas mil vezes, que falam das dores, da imobilidade, do desequilíbrio, dos sons  não ouvidos, ou das imagens não definidas ... Do que se confundiu, do que se esqueceu, do que se baralhou ...
Se tudo isso é verdade, é constante, é permanente ... e dói mesmo ?!
Dói no corpo alquebrado, no coração cansado e na alma entristecida ?!

A minha mãe tem noventa e três anos e meio.
Já por aqui falei muito dela.
Já contei como a sua história é de coragem, dedicação, força, tenacidade e persistência.
Nunca foi mulher de capitular face a adversidades e  a  tropeços.  A  sua vida  foi sempre mais a dos outros, em detrimento da própria.  A do meu pai, a minha, a das netas ... também  a dos bisnetos.

Agora garante estar  farta de por aqui andar.
As dores são insuportáveis, diz.  A autonomia desaparece diariamente, porque a decrepitude a incapacita de reger os seus dias, como sempre fez.
O seu sofá  é o mais alto poleiro da ramagem, de onde olha um mundo que já não conhece, já lhe diz pouco, e sobretudo, a cansa... A minha mãe está a querer desistir da caminhada !
Só pede que uma qualquer noite, se lembrem  dela,  por cá.

Olho-a e penso, num misto de emoções que não descrevo ... como será viver-se tendo como esperança de vida, não  ter mais esperança de vida ?!...

Anamar

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

" DELETEM !... "



Estamos naquela hora em que o sol nos foge numa fracção de segundos.  Apenas o tempo de procurar os óculos, para percebermos que ele já foi por hoje, naquele azul diluído num laranja-fogo, lá longe ...
Está a por-se bem mais à esquerda, no meu horizonte visual, por detrás das antenas de telecomunicações encarrapitadas incomodamente no alto de um terraço, frente à minha janela.
Ainda assim, deu p'ra ver que se deitou numa espécie de água de maré baixa, quando o mar recua, e fica aquela serenidade no areal.

Levantei-me não há muito, constatei ...  E pensei como foi curto o meu dia, como se encurtando-o mo anestesiasse, doesse menos, por menos horas ter de confronto comigo mesma.
Porque, de facto, enquanto os sonhos vão e vêm na sala escura do nosso "consciente onírico", tudo desfila à revelia do real, e com sorte, deambulamos por espaços, por pessoas, por momentos que já foram, e que se não foram, muito provavelmente gostaríamos que tivessem sido ...

Estou assim ... não diria desequilibrada ... Não gosto do termo.
"Desestruturada", encaixa na perfeição.
Desestruturada é alguma coisa fora do contexto, fora do enquadramento ... fora da moldura.
Aquele pedaço de pano que esgaçou, sem hipótese de conserto, está totalmente desestruturado.

Um dia fica-se assim.  Quando os olhos, o peito e a mente, não obedecem a ordens.
"Florzinha de estufa", como diria a minha filha, que tem pouca queda p'ra perceber estas coisas fora dos enquadramentos rígidos de racionalidade, pragmatismo e objectividade, na realidade em que se mexe .
Fraca capacidade de resiliência.  "Frescuras" ... diria, se fosse brasileira.  Falta do que fazer ... dir-se-á.  "Vida santa " ... dirão os que analisam de fora ... " que não valorizo".
"Querer mais o quê ?... perguntam-se.
Tontinha, insana ... mal agradecida e parva !!!

Estão desde já, todos perdoados !
Estas coisas, não entende quem quer.  Sim, quem pode.  Quem é capaz.  Quem percebe.  Quem sente, ou sentiu .

Quase me culpabilizo por não ter uma razão comezinhamente palpável, que justifique o esfiapar deste tecido de refugo, que é a minha mente, sobretudo nestes dias coloridos a ocres e vermelhos de Outono, com o sol a dormir por detrás das antenas, só p'ra me desfeitear ...
Uma razão daquelas que fazem estatística.  Que engrossam colunas.  Insuspeita.  De peso.  Uma boa razão, de valer a pena !
Porque nos tempos que correm, só tem direito a lamúrias existenciais, quem sofrer de males maiores, aqueles que atacam as pessoas ditas normais, por azar, acidente, ou destino, nesta época de crise bravia.
Esses sim, mereceriam o nosso respeito, comiseração e solidariedade.

Só  que  há  "males  maiores",  tão  "mortais"  quanto  outros.  Que  uns  entendem ... outros  não !...
Também, não vou agora aqui discutir o sexo dos anjos !

"Em criança não nos despedimos dos lugares.
Pensamos que voltamos, sempre.
Acreditamos que não é a última vez " - diz Mia Couto.

Eu sempre olho para os lugares, bem ao contrário ...  Achando que é de facto a última vez.  Lamentando que o seja, quase sempre.
Por isso também, guardo uma religiosidade solene quando o sol amodorra, e os silêncios possíveis ocupam os espaços vazios por aqui.  Sempre penso, que muitos o vêem deitar sem que o vejam acordar amanhã ...

E pareço ouvir aquele meu amigo ( alguém, já não sei quem foi, dizendo a sorrir, abanando a cabeça desaprovadora ) : "Lá estás tu a ver as coisas dessa forma !  Tens é que pensar, quantos lhe assistem o despertar, isso sim !"

A velha história do copo meio cheio e meio vazio ...  A demagogia à solta !...

Este texto hoje, é um desconchavo mental.  Uma peça de "patchwork" de má qualidade !
Retalhos mal ajambrados, coisa atamancada e perversa ...
É lava de vulcão, cujo vómito súbito seria impensado ...
É tudo, e é nada !  É só um "botar para fora", neste Outono pesado e cansativo.

Querem um conselho ???   "Deletem !... "

Anamar

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

" QUAL DELES ? "




29 de Setembro, Dia Mundial do Coração !...

Qual deles ?

Aquele  que  se  escaqueira,  com  alguma  frequência, e  que  é  responsável  pela  tensão  alta  e  baixa,  taquicardias,  AVCs, tromboses, e  toda  a  panóplia  de  doenças,  que  enchem  toda  a  panóplia  de  manuais  de Medicina ?

Aquele que faz disparar exponencialmente as estatísticas das doenças vasculares em Portugal, quiçá no Mundo?

Aquele que é responsável pelo recheio dos obituários, dos jornais que ainda os publicam ?

Aquele que entroniza anualmente  um S. Valentim qualquer, importado não há muito tempo, lá de fora ... que se nos meteu nos usos e costumes, e que reactiva  em cada Fevereiro, graças às técnicas de marketing e publicidade,  a economia  desta sociedade de consumo em que vivemos, "avermelhando" magicamente por um dia, o cinzentismo instalado  em muitas vidas ?...

Ou o outro ?

Aquele que normalmente não tem conserto, por mais congressos, colóquios, estudos aprofundados que sejam feitos ... por mais sumidades que  eclodam  na comunidade científica ?...

Aquele que não há tratados que o tratem, conselhos que o encaminhem, leis que o orientem, lógicas que o norteiem ?...
Porque ele é libertário, temerário, imprudente, voluntarioso, provocador, surdo e burro ?...

Aquele que não aceita correntes, nem cangas, nem mapas, nem caminhos, nem GPSs ?

Aquele que morre e renasce  constantemente, por um qualquer milagre mal explicado da Vida ?

Aquele que se regenera, que tem um impensável poder de cicatrização dos rasgões que o atormentam, e qual Fénix, renasce das cinzas, quando parecia ser improvável e um acto ciclópico, tal desiderato ?

Aquele que por tudo isto, nos faz sentir  aceitavelmente  estúpidos, gostosamente tontos, impressionantemente  tolerantes,  inexplicavelmente  cegos,  determinantemente ilúcidos ... com a agravante de o sabermos, e gostarmos de o ser ?...

Pois talvez seja simplesmente o Dia Mundial do Coração, " tout court " ... Nada a fazer !!!...

Anamar

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

" QUERO VOLTAR ... "





O avião deixou a Portela, e rumou ... Rumou céus fora, já a noite se abatia sobre Lisboa.

Ela partira ... e ela, ficara.  Não entrou no aeroporto a despedir-se. Odiava despedidas ! Esta, em particular.
Largou-a ainda na rua, de mala de rodinhas deslizando na calçada. Tratou de engolir com força o nó que se lhe apossara da alma, tratou de opacizar os olhos para não perceber que afinal chovia ... meteu a primeira, no carro que não desligara, e seguiu .

Afastou-se dali, rápido.  E enquanto a segunda circular se lhe desenrolava  indiferente, mais indiferente ainda, mais distante da chuva, das luzes, das buzinas, ela se sentia.
Havia uma espécie de amputação no ar.  Uma orfandade definida.  Sentia a opressão que uma violência gratuita e arbitrária, instala no coração.

" É ... não tens a noção desta cidade ... É um amor-ódio que experimento em cada segundo ... não pára nunca !
Sempre um barulho de fundo ... A única semelhança entre as pessoas, é terem braços e pernas ...
Suja e arranjada ao mesmo tempo ... linda e feia ao mesmo tempo ... tanta gente, e tudo tão sozinho !...
Homens lindos e homens horríveis ... Caríssima ... Talvez venhas a gostar de passar temporadas, aqui comigo ... um dia ... Museus lindos, que precisam uma semana para se verem ...
Não !  Não tens a noção do que te falo !...  Multiculturalidade ... Cosmopolitismo ... Nas pessoas, não encontras uma fisionomia semelhante ... Tudo coexiste ... ninguém repara em ti ... Podes morrer, que ninguém dá por falta !... "

As primeiras mensagens, a trazerem o frio e o abandono, de lá ...
As mensagens de resposta, a levarem o cheiro da terra molhada da serra, o azul do céu, os raios do sol que é só nosso ... o verde da esperança e do ânimo ... ainda que a saudade, essa coisa tão próxima, não desentranhe nunca, e mortifique, a cada dia que nasce mais vazio ...
A incerteza, a dúvida, a angústia ! A inevitabilidade , que como todas, não é escolhida, impõe-se...
E depois, há aquela paixão que não se suspeitava. Aquela Lisboa que afinal é muito mais bela, que tem regaço de mãe, e braços de embalar ... Que tem colo, que é ninho, cúmplice e aconchegante ...
Há a gaivota no rio, e o vento que empurra a vela ... há o crepúsculo em Sintra, e há um Outono doce, dourado de plátanos a despirem-se, enquanto o cheirinho das castanhas no assador, sobe, e nos fala da casa ali ... do refúgio a esperar-nos, ali tão perto ...
E há o riso dos amigos, a força dos afectos ... as cumplicidades partilhadas com a mãe, com irmãos, com avós... com crianças ... Com família, que teve de desprender as amarras e deixar-nos  partir ...  
E há até o fado, que é frase feita, mas que é verdadeira.  Bate, e carrega em cada nota o que é ser português, e percebê-lo, por vezes tardiamente, quando nos escorraçam da nossa terra ...
E há o mar salgado ... com as lágrimas de Portugal a encherem-lhe as marés ...
A  nostalgia, é então a única coisa palpável,  que pinta o céu cinzento, lá longe !...

"Angústia... sim ...  Angustiada, vivo ... Talvez  a  confrontar-me em definitivo, com a injustiça de  ter que deixar o meu chão !..."



Anamar

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

" OUTONO "


 

O Outono parece ter chegado.  Mais cedo, afinal.
Depois de um Verão atípico e de uma Primavera que não tivemos, o tempo deu uma volta, os dias acinzentaram, o sol ganhou aquele brilho estranho que se percebe estar a apagar-se, embora ainda seja quente.
Um calor, que não nos espantaria  se de repente ouvíssemos trovejar.

Iniciaram-se as tarefas de preparação da " toca " para o Inverno que há-de vir.
Os putos andam ligados " à corrente ", pelo reinício das escolas.  Como se isso fosse a última maravilha do mundo, e como se os livros que agora afagam, miram e re-miram com curiosidade, não fossem rapidamente motivo de saturação e incómodo ... Não demora !
Os pais andam  obviamente a reboque, às vezes mais ansiosos que os próprios miúdos.

Quem já não tem esses "filmes", mesmo assim anda a sofrer da "síndrome" outonal.
Numa sanha estranha e inexplicável, lança-se à limpeza das casas, a fundo, lança-se à "purga" dos roupeiros, numa ânsia de os extirpar do antigo acumulado, e considerado já de inviável utilização.  Parece pretender-se deitar fora, junto com tudo isso, e com urgência, um pouco do "lixo de alma", pesado, cansativo e sufocante.

Na época da queda da folha, numa das fases de mudança profunda no ano, o ser humano também assume o espírito de equinócio, que desta feita, à semelhança da Natureza, é um período de interioridade, introspecção e  intimismo.
É o período de recolhimento, de hibernação, de adormecimento, de concha.

Eu, pelo menos, sinto assim !

Muito difícil sempre, atravessar este "túnel" !
Muito penoso sempre, arranjar forças para andar adiante.  Mais difícil de ano para ano, parece.
É como um fardo mais e mais pesado, com acumulação de tudo o que de negativo a vida parece encarregar-se de nos adicionar ao percurso, sempre na razão inversa da força anímica de que dispomos, e que enfraquece a olhos vistos.

Mas por outro lado, acredito que o Outono da vida, possa ser um tempo de privilégio para alguns.
Para aqueles que têm ninho, lura, porto, cais, luz, âncora ...
Para aqueles que têm raízes escoradas, referências seguras, que têm sossego no coração e vivem quietude na alma.
Esses devem fazer um tempo de fruição, de bem-estar, de enriquecimento espiritual, de acerto com o "caminho", de pacificação do espírito, de repouso interior, de plenitude gratificante, sem sobressaltos ou angústias, estou certa ...

Imagino aquela casa, bem simples, de quarto e sala, aninhada naquele jardim pequeno, de plantas bravas a bordejar o areão da entrada.
Imagino aquelas duas janelas ladeando a porta, e a cancela em madeira velha franqueando o acesso ... a gemer nas dobradiças ...
as roseiras de rosas singelas, com o  aroma tépido das Santa Teresinha, e as ervas aromáticas perfumando o ar.
Imagino os gatos ronceiros por ali ... Os de dentro e os de fora, em harmonia plena ...
E os pássaros que ficaram, buscando o aconchego. Porque os outros, já não pulam pelos galhos ... Partiram para longe, faz tempo !
Imagino a mesa junto à janela, salpicada de potes com alecrim e madressilva, a esmo ... espaço de escrita ou de leitura, na moldura do jardim lá fora ...
uma música calma, perpassando em surdina, para não espantar o som da aragem nas folhas, nem macular o tamborilar dos salpicos de chuva na vidraça, de quando em vez, em ameaços, apenas ameaços ...
Imagino uma luz acesa, velada, íntima, para não sobressaltar os sonhos, nem dispersar os pensamentos ...
Imagino aquela casa de Outono ... imagino ...

Por que será que imagino aquela casa, que de repente, pelo sonho parece tão minha ... se nunca a vi, se nunca a vivi, se nunca a senti ??!!...

E no entanto, é como se a cheirasse, como se já a tivesse palpado, como se conhecesse com perfeição a rugosidade da madeira da arca, como se soubesse com clareza a intensidade da luz que penetra pela janela ... como se ouvisse com nitidez o estalar do areão do caminho sob os pés que avançam, como se adivinhasse sem erro, os "gatos" daquele prato  do escaparate, como se olhasse a ramagem do cretone que forra o sofá ... e a soubesse minha, de há muito ...
É como se me passeasse por um espaço mais que familiar ... íntimo ... secreto ... e tivesse em mim um calor doce de compotas, num embalo de amarelos, ocres e vermelhos ... de castanhas quase no braseiro ...

Quase sinto a brisa lá fora, lembro as notas  do murmúrio do vento, e os cheiros que vêm voando, e que eu não sei se são salgados ou doces, se vêm do mar ou da serra ...
Tenho um xaile breve pelas costas, tenho o cabelo prateado em corrente líquida de intemporalidade, e tenho um cesto no braço, repleto de rosmaninho ...
Quase sinto ...

Por que será que temos estas coisas ?  Por que será que nos deixamos invadir por desnortes, que são isso mesmo... coisas inexplicáveis de orgias mentais, pura elucubração de demência ??!!...

Serão reminiscências de vidas passadas, ou sonhos de vidas futuras ???!!!...

O ser humano é meio doido,  mesmo !!!...

Anamar

terça-feira, 9 de setembro de 2014

" E SE EU ABRISSE INSOLVÊNCIA ?!... "




Preocupo-me mais, se não me preocupo ...

Eu explico : preocupo-me mais com um estado de letargia e uma postura de indiferença face à vida, do que quando ainda contundo, esbracejo, me indigno, reivindico ... O silêncio, sobretudo o silêncio de alma, é o que mais me aflige.
Porque naquele estado, estou viva, vejo colorido nos dias, tenho esperança, experimento sentimentos, acho que vale a pena, crio metas e objectivos, tenho expectativas que me importam ... encontro razões de vida !  Ainda acredito !
E nada pior que não nos importarmos já, que assimilarmos um amorfismo, uma insensibilidade e um cinzentismo face ao tempo.
Nada pior que condená-lo a um Outono antecipado e perene, fora de época !

E estou nessa !...

Neste momento, e de novo, acho que a minha vida é feita de desperdícios.  Acho que tem sido um caminho perdulário, mal escolhido, mal gerido e mal administrado.
Decididamente eu não dou para gestora, administradora, empresária ...
A vida de cada um é a sua maior empresa e desafio, o seu maior empreendimento.  E obviamente há que saber  levá-lo adiante, com inteligência, determinação, frieza e  clarividência.
Há que administrá-lo com racionalidade, objectividade e sentido prático.  Não pode haver cedências, deslizes, facilitismos.
A vida é real, todos os dias, as emoções só complicam.  Quando entram em cena, quando se sobrepõem e subvalorizam o senso empreendedor do processo, vai tudo "p'ro brejo" !

Portanto, eu não poderia nunca, dar certo ... portanto, eu só poderia obviamente falir o esquema.
Nem sei como me colocam como gerente de um megaprojecto destes !!!...

Cabeça fria na análise das coisas, é tudo menos o que eu tenho, racionalidade nas decisões, também não, clarividência ... com frequência pareço não querer ter, capacidade decisória, menos ainda ...
Aliás, a frequente e sempre presente indefinição e indecisão perante quase tudo, persegue-me com intencionalidade.  Coisa de destino, mesmo !
Tenho  um "peregrino" apelo pelo abismo, omnipotente e omnipresente.  E sempre, entre dois caminhos, sou especialista em escolher o atalho !...

Evidentemente que as minhas "finanças emocionais" têm que estar exauridas, muito mais que os fundos do "Banco mau" ...  Não há Troika por aí que me valha, nem saída que me acuda !
Não há recuperação à vista, nem a curto nem a longo prazo.  As reservas de resistência vão indo, com esta gestão danosa e ineficaz, e a esperança de refundição do processo, afigura-se tarefa titânica e impossível.
Uma auditoria não adianta, porque é linear e adquirido que a responsabilidade é do gestor !
Isso faz, colocarem-se nos cargos, pessoas totalmente desadequadas aos lugares, e sem perfil para o seu desempenho, claro !!!...

E depois há um enorme "handicap" ...  É que não há qualquer possibilidade de renovação ou  rodagem da equipa, porque seria eu, substituída por mim mesma ...
Muito pior que a "Olívia-patroa" e a "Olívia-costureira", da nossa saudosa Ivone Silva,
Por outro lado, eu reconheço ser uma aluna relapsa e desatenta, ou mesmo uma inveterada burra, porque pareço não aprender com os  insensíveis e ríspidos ensinamentos do dia a dia.
Tenho um masoquismo de vida, idiota !  Tenho um olho para entrar com as "jantes" nos buracos, que é obra !   E pareço atrair e cultivar o que me destrói !
Chama-se a isto, uma falta de pragmatismo estúpida demais !!!

O resultado de tudo, é de facto um estado de exaustão, de desencanto e de desistência tal, que me conduz à tal indiferença e letargia insolúveis, de que falava.

E  não  adianta,  porque  quando  o  registo  é  este, "encaracolo",  entro  numa  de "alforreca"  ( como diz a Lena ), fecho para obras, hiberno feito um urso polar, não emigro nas asas das andorinhas porque não posso ... encosto as janelas já que fica um por-de-sol de repente, e penso seriamente : " será que eu não poderia abrir insolvência ???... "

Anamar

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

" SOBREVIVE - SE ... "



A "lei" é a da sobrevivência ... pouco mais !

Nos dias que correm, vivem-se tempos de indefinição, de incerteza, de ansiedade, e por isso, de angústia.
Acho que não se safa ninguém.
Nem mesmo as crianças, que não mais têm  vidas descontraídas e despreocupadas, que as poupem a stresses acrescidos.
De facto, lançadas no emaranhado dos tempos, apanhadas pelo vórtice da vida insegura dos próprios pais, também elas já percebem e vivenciam a necessidade de sobreviver ... um dia de cada vez.
Também elas já percepcionam a aleatoriedade da existência diária, com escassa margem de segurança.

Os jovens, e os entalados na charneira dos trinta e muitos - quarenta e poucos anos, levam em grande maioria, uma vida atípica, maioritariamente de insatisfação, e quase sem alternativas possíveis.
A nível profissional os horizontes são sufocantes, a precariedade acentua-se, os caminhos outros, são inexistentes, a insegurança  é total.
A porta aberta ao mundo é a única saída que ainda deixa ver paisagem lá fora.  E por isso se emigra, em desespero de causa.  Porque verdadeiramente ninguém desejaria trocar a sua realidade conhecida e teoricamente segura enquanto porto de abrigo,  o seu nicho de conforto, pelo menos umbilicalmente afectivo, o seu ar e o seu chão ... pelo desconhecido, pela solidão e pela dureza da integração, onde quer que seja, ainda que seja só nos primeiros tempos, e ainda que represente melhoria significativa da realidade de vida.
O quebrar compulsivo das amarras, a violência do empurrão para a água, pode fazer do nadador, um náufrago, não esqueçamos !

A nível pessoal e familiar as indefinições persistem.  A dificuldade de equilíbrio e estabilização económica, a precariedade e insegurança do mercado de trabalho, adiam quase "sine die" a tomada de decisões de fundo, como seja por exemplo o estabelecimento de uma relação tradicional, a assumpção de filhos nessa relação, a aposta na aquisição de uma habitação para o casal, ou mesmo outras responsabilidades a longo prazo.
Porque nunca se sabe o que  esse "longo prazo" pode acarretar nas vidas das pessoas.

Ou então, as vidas das pessoas assentes diariamente em alicerces frágeis,  implantados em terrenos movediços ou "minados", não chegam sequer a resistir e a tomar consistência.
E assim, os ainda jovens oscilam entre experiências emocionalmente  falhadas, inconseguidas e desestruturantes, e desinvestimentos afectivos ( condenados que estão a sucumbir a curto prazo ). Abandonam  sonhos e projectos de vidas familiares que parecem inexequíveis, e fazem  escolhas  assumidas de vidas de solidão, com  o inerente desencanto, mágoa, frustração e estrago pessoal muitas vezes irreversível.
É isso que  confidenciam existir, é essa a linguagem que partilham entre amigos, quando se encontram e falam das suas experiências pessoais ...
Arrastam-se sem um vislumbre de futuro, eles, que teoricamente terão à  frente  ainda tanto futuro !...
E não vivem ... sobrevivem apenas !...

Os da minha faixa etária vivem "assombrados" e angustiados, num susto permanente com este mar encapelado em que são obrigados a navegar.
Criados e formados em parâmetros bem conhecidos e definidos, com regras e princípios com perenidade de segurança, com valores aprendidos e exercidos sem mutabilidade expectável, com uma previsão de futuro calma e tranquila, são agora obrigados a "mexer-se" em novos códigos, em padrões diversos, a aderir a novos "modus vivendi" que não identificam, a pactuar com novas e desconhecidas realidades ...

Não se sentem confortáveis nos novos fatos que têm que envergar, não se encaixam nos novos figurinos que os rodeiam, com regras que não entendem ... e já não têm estaleca nem saúde,  para enfrentar  a cinetose a que o sobe e desce das marés os sujeita ...
Desesperançados, cansados e com um caminho já precário e fracamente promissor a percorrer, também não vivem ... sobrevivem no cinzentismo e na brisa dos dias !...

Enquanto isto, depois de cem anos sobre a Primeira Grande Guerra e setenta e cinco sobre a  Segunda, a Europa vê de novo, meio adormecida e esquecida, parece, acender-se um rastilho ameaçador mais a leste ( não querendo entender que é num rastilho que começam os grandes incêndios ) ...

Enquanto isto, o Estado Islâmico, insano e bárbaro, assassino e inconsciente, avança em loucura fundamentalista e destruidora, numa ameaça bem clara, galopante, terrífica, imprevisível e de alcance incomensurável, sobre o ocidente ...

Enquanto isto, o ébola alastra e devasta descontroladamente, dizima impiedosamente os mais pobres dos pobres ... os países miseráveis de África ... e revela a impotência, a real incapacidade, a fraca aposta e a ainda clara  ignorância do Homem,  face aos cataclismos naturais que se abatem sobre o Mundo ...

Estranhos dias estes !...
O planeta Terra está,  de facto, a ficar um lugar pouco recomendável e esquisito para se sobreviver ... que direi para viver ?!...

Anamar

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

" A CRISE ESTÁ A AJUDAR A JUNTAR QUATRO GERAÇÕES À MESMA MESA "


A  casa de Isabel Cabral, em Ermesinde, é um exemplo de coabitação, impulsionada pela crise, de várias gerações da família


Encerra-se aqui, a publicação dos cinco artigos, escritos pela jornalista Ana Cristina Pereira do jornal "Público", sobre "as diferentes gerações", e divulgados ao longo de cinco domingos consecutivos.

Porque os achei interessantes, pertinentes  e lúcidos, decidi partilhá-los com todos aqueles que acedam aqui, ao meu espaço.

Anamar


Por força do desemprego, da precariedade e da emigração, pode estar a abrandar o processo de desarticulação das famílias e a aumentar a coabitação de gerações.  Este é o último de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações.


Maria não larga o telemóvel. Anda encantada com um rapaz e a conversa com ele, parece interminável - trocam mensagens a uma cadência só deles.  "Dizemos coisas sem jeito, mas que para nós fazem sentido ", conta ela, entre risos.  Nada irrita tanto os avós como aquele toque constante.  De vez em quando a avó até lhe diz que gostaria que o telemóvel caísse e deixasse de funcionar.

Só tem 14 anos, Maria António.  Mora com os avós em Santa Eufémia, uma aldeia do concelho de Leiria.  A mãe está em Bergen, a segunda maior cidade da Noruega.  Maria esteve com ela dois anos e meio, mas quis regressar.  Quer fazer um curso técnico-profissional de gestão de quintas e eventos equestres.  E está convencida de que em Portugal as escolas são mais exigentes e os cavalos melhores.  "A minha mãe deixou-me vir.  Ela está triste, mas compreende ."

Mónica António, a mãe, não pensou que lhe custasse tanto deixá-la ao cuidado dos avós.  A 11 de Agosto, estava a colocar a mala na bagageira e já lhe rolavam as lágrimas pelo rosto.  Foi a chorar grande parte da viagem até Lisboa.  Recomeçou o choro mal ouviu, já no avião, falar norueguês.  "Estás no teu país e já não estás.  Já estás a ouvir uma língua de um sítio para o qual não queres voltar."

O avô torceu o nariz.  Tudo aquilo lhe parece um bocado disparatado.  Para ele, adolescente não tem querer ;  quem tem querer é o pai ou a mãe ou ambos, caso ambos se portem como pais, o que não é o caso do pai de Maria.  A mãe pensou muito.  Maria tinha quatro anos quando o avô a levou pela primeira vez à Feira da Golegã e lhe comprou um cavalinho de plástico.  Por volta dos seis começou a pedir para montar.  Monta desde os sete.  Quantos pais podem gabar-se de ter uma filha que, aos 14 anos, sabe o que quer ?"  "Ela está feliz em Portugal ", percebe a mãe.  "É  uma rapariga da terra.  Gosta de tomar banho na nascente, de ir à terra com o avô, de alimentar as galinhas, os perus e as ovelhas.  Se tiver equitação, passa horas a limpar as cocheiras."

Que não haja equívocos.  As famílias, sublinha o sociólogo Manuel Villaverde Cabral, não são democráticas, embora sejam menos autoritárias, menos impositivas, do que há 30 ou 40 anos.  As idades continuam a pesar, até "pelas diferenças de formação e do papel que cada grupo etário desempenha na sociedade e dentro da própria família."

As relações entre as gerações podem variar conforme a classe social, a zona de residência, o posicionamento político, a escolaridade, a orientação sexual e outros factores.  O uso do telemóvel, porém, será quase sempre um ponto de descontinuidade.  Dir-se-ia que os mais novos não se cansam de o usar.  Mandam em média 100 mensagens de telemóvel por dia - segundo um estudo feito pelo Instituto Superior Técnico e pelo Instituto de Telecomunicações no ano lectivo de 2010-2011.  Às vezes, parece que querem só testar o canal de comunicação.  "Estás aí ?"  "Onde estás ?"  "Está tudo bem ?"

Quando Mónica era adolescente, havia dois telefones lá em casa e ambos tinham um cadeado a impedir chamadas não autorizadas.  Qualquer conversa podia ser ouvida.  Agora, Maria tem telemóvel na mão e destreza nos dedos.  O avô, de 68 anos, a avó, de 62, adoram-na, mas não compreendem aquela ligação à máquina.  Os pedidos para sair são outra tormenta.  Têm medo que algo lhe aconteça.  A mãe explica-lhes " que tem de se confiar, que ajuda soltar a corda com limites."

Era outro o Portugal da juventude dos avós.  Há 50 anos, 91% dos casamentos realizavam-se sobre a égide da Igreja Católica, o marido provia o sustento e ditava as regras ;  a mulher era responsável pelo governo da casa e, tal como os filhos, devia-lhe obediência - só 18% delas trabalhavam fora.

No calendário das relações entre gerações, vale contar um antes e um depois de Maio de 1968, que começou por ser uma contestação estudantil em França e se tornou  no que Villaverde Cabral descreve como " o cume do movimento antiautoritário que varreu o mundo".  Nos países democráticos e não só, " a contestação da família patriarcal, da repressão sexual e das desigualdades de género fizeram diminuir o autoritarismo."

Depois de 25 de Abril de 1974, Portugal tratou de recuperar o atraso.  As mulheres atiraram-se de cabeça para o mercado de trabalho.  Diminuíram os casamentos, aumentaram os divórcios, diminuíram os nascimentos, aumentou a esperança média de vida.  É essa, resume Villaverde Cabral, " a modernidade da sociedade actual.".  Com tudo isso " a noção de família foi perdendo a sua personalidade masculina autoritária."  e a própria família perdeu muito do seu peso " como referência social e mesmo pessoal."

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

" ENCERRARAM-NOS O SONHO ... "



Ontem cometeu-se um crime em Sintra.

Porque um crime pode ser tão somente um atentado ao nosso património cultural, um assalto às nossas memórias colectivas, um roubo dos nossos sonhos, um margear compulsivo do nosso imaginário.
Um crime é tudo aquilo que nos vede a criatividade, defraude a fantasia, nos cerceie a vastidão da "viagem", nos erga muros ao "passeio" da mente e do coração ... nos ampute a ilusão, de pelo menos por um par de horas, nos sentirmos crianças outra vez ...

O Museu do Brinquedo em Sintra, sem acordo possível entre o proprietário ( já que de uma colecção particular se trata )  e a autarquia, encerrou em definitivo as suas portas e janelas, pelas seis da tarde deste 31 de Agosto de 2014, numa tarde quente e ensolarada, com a vila do romantismo pejada de visitantes, portugueses e estrangeiros, adultos e crianças.
Havia alegria no ar, havia boa disposição, e aquela displicência de quem usufrui o que quer que seja, sem pressas, degustando cada instante.

Desloquei-me intencionalmente a Sintra, inclusive não estando em perfeitas condições de saúde.  Mas fi-lo numa espécie de despedida devida a um espaço, que durante dezassete anos prestou um serviço público absolutamente  ímpar, estou certa.
Isso se percebia claramente pelos rostos, e pelas expressões de apreço e de alegria incontida das muitas crianças que por lá circulavam, encantadas, agradavelmente surpreendidas, a deleitarem-se numa realidade lúdica que não é seguramente a sua  na actualidade, e com uma curiosidade  insaciável e atenta, de ouvirem as histórias e as explicações dos adultos que as acompanhavam.
Esses sim, misturavam numa indefinição de sentimentos,  algo que se percebia doído, emocionado, saudosista, fascinado ... com estupefacção, mágoa e revolta.
No ar pairava uma pergunta indignada : " Porquê ?! "  "Por que não foi possível chegar-se a um consenso e acerto entre as partes implicadas, por forma a que, como acontece em muitos países estrangeiros, se pudesse ter mantido entre nós, um lugar tão peculiar, um serviço público de tanta valia, com um acervo amplamente divulgador da cultura de um povo, das suas raízes, costumes, memórias e histórias ... Tudo o que constitui também  afinal, a nossa identidade cultural ?!
E bem assim,  possuidor  ainda, de um espólio valioso, de peças de origem internacional, com igual importância" !

Por que é que este país tem uma estranha vocação para perder, para se empobrecer, para não se dar valor, para não se cuidar ?!...

Não ouviremos mais, exclamações  encantadas  face a um pião, a um livrinho de histórias, a uma mini tábua de engomar, um servicinho de loiça, um carrinho de bombeiros, um comboio no emaranhado dos  carris, um batalhão de soldadinhos de chumbo, um "Jogo da Glória" de tantas tardes sonolentas, ou um pequeno balde de folha, companheiro de areais perdidos : " oh ... eu brinquei com um exactamente igual !... "  "olha ... eu tive um destes !..."
E o puto a indagar insistente, sobre o paradeiro da dita peça ... e o pai a responder : " deve estar lá para casa da avó !..."

Não ouviremos mais as explicações detalhadas e cuidadosamente possíveis, dos adultos, perante os rostos sedentos da criançada, sobre o que eram as trincheiras da 1ª Grande Guerra, ou sobre os hospitais de campanha, ou o desfile das tropas alemãs pelas ruas de Berlim, com a suástica estampada nos carros de guerra, e a saudação nazi exibida por cada soldado ...  para se ouvir logo a seguir, um puto esperto e informado, argumentar : " olha, olha mãe ... o Hitler !  Vai lá à frente, naquele jipe !..."
... ou o adiar para melhores horas,  do esclarecimento complicado sobre a "múmia" que repousava na vitrina !!!...

Enfim, uma ternura sem tamanho, tudo isto !...

Dei por mim a sorrir.
Dei por mim a recuar no tempo, e a passear-me pelas lembranças doces e distantes da minha meninice.
Do tempo em que a Lolinha, a minha primeira boneca de porcelana, de caracóis  loiros  e olhos azuis, que chorava quando embalada, e que "vive" comigo até hoje ... me entrou pela vida adentro, pela mão do meu pai !...

Outros tempos, outros sonhos, outra vida ...   Outra que eu era !...

Ontem cometeu-se um crime em Sintra.
O Museu do Brinquedo encerrou definitiva e injustamente, numa tarde quente, luminosa, aparentemente indiferente ...  E com ele, encerraram-nos também o sonho !...

Mas a curiosidade das nossas crianças, as recordações dos nossos velhos, e obviamente a memória saudosa de todos nós, não o mereciam !!!...



Anamar

sábado, 30 de agosto de 2014

" COM AGOSTO NOS VAMOS ... "



Comecei a viajar para fora do país, já a caminho dos 47 anos.  Era assim na altura, creio.
Pelo menos, para as pessoas da minha classe sócio-económica, uma classe média sem outros proventos significativos que não adviessem do seu trabalho.
As viagens para o estrangeiro não estavam por isso vulgarizadas, quase banalizadas como acontece hoje em dia.

Até lá, também à semelhança das pessoas que eu conhecia, fazia-se normalmente,  sobretudo  enquanto as crianças eram pequenas,  o périplo de Algarve ou Costa Alentejana, onde as praias na altura tradicionalmente quentes e mansas, nos esperavam, esperavam famílias inteiras, de chapéu de sol, lancheira com o aviamento, toalhas e brinquedos da pequenada.
Diariamente faziam-se as sandwiches, coziam-se os ovos, lavava-se e cortava-se a fruta para os tupperweres, tiravam-se as bebidas frescas do frigorífico, os iogurtes ... repetidamente dia após dia, na semana ou vá lá, nos quinze dias em que por lá se estava. O mês inteiro, era de facto, para os "sortudos" !
Normalmente, casas alugadas juntavam por vezes mais do que um casal.
Amigos juntavam os orçamentos, as vontades e a amizade, e tornavam assim, as férias menos perdulárias e muito mais agradáveis e felizes.
Juntavam-se as crianças que  se divertiam muito mais, juntavam-se as longas e serenas conversas sem pressa, pelas tardes, à sombra dos chapéus de sol  que para isso também juntavam estrategicamente as suas sombras ... juntavam-se  as  cumplicidades femininas, em horas palmilhadas no areal, na babugem da rebentação ... juntavam-se as gargalhadas, os jogos, os passeios e as fotografias, para mais tarde recordar ...

As minhas férias de Algarve começaram em casas alugadas, com refeições que aí se confeccionavam.  Eu costumava dizer que mudava de tachos e de panelas, mudava o cenário ... e a peça era a mesma.
Mas enfim, os ares sempre eram diferentes, o passeiozinho pela fresca das noites algarvias era algo fora da rotina do ano todo, o D. Rodrigo que se comia, o café que se tomava pós-jantar, o sentar numa esplanada a ver os veraneantes circularem, já dava p'ra quebrar o "cardápio" que conhecíamos sobejamente.
Comecei no sotavento algarvio, e fui avançando em anos sucessivos, rumo ao barlavento.
Comecei em Vila Real ( ainda só tinha uma filha bebé ) e terminei muitos anos depois, em Lagos. Deambulara então por Albufeira, Oura,  Vila Moura, Portimão e Lagos.   Seguiram-se depois uns anos de Porto Covo, em férias de que guardo gratas e saudosas memórias.
Ilha do Pessegueiro ao fundo, o "Quadrado", a fortaleza, a Praia dos Búzios, a Praia do Samouqueiro, a dos Pescadores ... tudo muito selvagem, tudo muito natural ainda, nada "estragado" por imposições de turismo "civilizado" ... tudo simples, genuíno ... Alentejo a molhar o pezinho no Atlântico !...

Três famílias amigas, a que se juntavam por vezes ainda mais uns "apêndices", ou conhecidos  de circunstância, muita criançada, amigos do peito mesmo ... quase família única, quase irmãos ...
A vida viria a desmembrá-las.  Uns partiram cedo de mais, e sem aviso, outros separaram-se na vida, e finalmente a vida separou todos !
As crianças tornaram-se por sua vez, mães de crianças, e também, injustamente, vá-se lá saber porquê, se perderam no destino ...

É certo que posso considerar-me uma privilegiada, porque já na infância, contra o que de facto  não era muito comum naquela altura, eu fazia praia em Albufeira, durante um mês, ou  em Vila Nova de Mil Fontes,  ainda sem luz eléctrica ( ! ), ou mesmo  em  Sesimbra ou Sines.  Férias com a minha mãe só, ou com familiares chegados, que tinham a pachorra e a generosidade de me levar.
E depois, durante alguns anos largos, beneficiei de uma esticadinha até ao Minho, para termas que os meus pais faziam por razões de saúde.
Lembro que não eram propriamente emocionantes esses dias, dada a tipicidade da frequência desse local.
Mas ao tempo, os putos não davam palpites nestas coisas !

O tempo passou, e como disse, comecei a fazer férias no exterior, beirando os cinquenta anos.
Timidamente, começaram por passeios de carro, por alguns, poucos dias ... Picos da Europa,  Sevilha, Madrid, Toledo, León ... coisa pouca !
Arriscámos mais tarde a República Dominicana ( um dos destinos paradisíacos muito em voga na altura ), que nos acenava com  o sonho das praias adornadas de coqueiros, águas mornas,  turquesa e transparentes, corais e peixes multicoloridos,  no calor prometido dos trópicos ...  Depois Cuba, Brasil, Países Nórdicos, países da Europa Central ...

Posteriormente, já noutra realidade familiar, permiti-me destinos mais longínquos : Jamaica, Maldivas, Tailândia,  Sta. Lucia...ou ainda  Costa Rica,  Bali,  Maurícias, Samaná,  Zanzibar, e mais recentemente o sonho antigo de S.Tomé e Príncipe.

Enfim, as viagens começaram a vulgarizar-se à medida que o poder económico dos cidadãos disparou.
Não esqueçamos o período mais "endinheirado" do país, face  aos  proventos  "fáceis" da Comunidade Europeia. Foi uma época de ouro,  e de muita inconsciência também, em que o português começou a "sair" com facilidade, e frequência.
Viajar para o estrangeiro passou a ser uma espécie de direito adquirido, por cada Agosto, e havia mesmo quem se endividasse,  em financiamento para a almejada viagem de férias ...

Chegámos aos dias de hoje.
A economia do país, mercê da crise que vivemos há demasiado tempo, fechou os cordões à bolsa de quase todos.  Penalizou  o desejo de muitos, sobretudo dos que têm na alma o espírito inquieto de viajantes, os que são saltimbancos de sonhos, os que têm uma alma vadia e curiosa ...

E neste fim de Agosto, neste encerramento da quadra  estival, quase afirmaria sem erro, que a velha lancheira e o chapéu de sol, se reabilitaram à luz do dia,  e a  este sol  pouco convicto ... que parece, também ele, regatear  a  sua  presença  nesta  nesguinha de areia à beira-mar plantada ...
Quiçá  talvez  face ao  valor do "cachet"  modesto, por aqui  oferecido ! ... Afinal, estamos em Portugal !!!...



Anamar

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

" QUE BONS SOMOS A INVENTAR ! "



Na vida não se reedita nada !

Só os livros se multiplicam, criando edições sucessivas de acordo com a satisfação dos leitores.
O ser humano vive, vira a página e anda para a frente. Esgotou !
Gostou ?  Queria alongar ?  Temos pena, não é possível !
Nem comprando novo bilhete como no cinema, poderíamos visualizar o mesmo filme !
Não gostou ?  Não se amofine, pois também já passou !  Aquela sessão terminou, e não há reprise, felizmente !

Então,  inventámos aquela coisa a que chamamos de "saudade", que é algo perturbador, como o é a comida requentada.
Faz mal.  Passou do prazo.  Ficou estragada.
É algo que acabou, e não deixamos que acabe. Que não existe, mas não desgruda.
A saudade é exactamente assim.  Mata o coração, inunda os olhos, aperta o peito, provoca cataclismos na alma.

E depois, se não bastasse, a saudade é ilusoriamente adocicada, bem safada e mazinha ...
Parece aquecer-nos por dentro, parece adoçar-nos o desencanto, parece embalar-nos a existência.
E enquanto a sentimos, volta-nos tudo aquilo que a despertou, e parece que o reeditamos ... Mas não !.
Tudo não passa de uma masturbação das emoções, com um clímax nunca alcançado.  Porque não passa disso mesmo ... de uma satisfação insatisfeita, quase quase real, mas que sempre nos defrauda, sempre nos deixa outra vez de mãos dolorosamente mais vazias, e o coração mais dorido ainda.
Não passa de um truque, um analgésico para doença crónica !...

E inventámos também uma coisa chamada "sonho" , que consiste em projectar na luz do dia, o que só é possível viver ( quando desligados do real ),  vogamos pelo mundo onírico .
Porque o sonho e a realidade não casam de nenhuma forma !  E por isso os sonhos  reais, aqueles que arquitectamos com os cinco sentidos bem despertos, são tão mentirosos como os outros !
Nós é que pensamos que não.  E vamos acalentando ao longo da vida, o tão maquiavélico quanto patético projecto de realizá-los.

E por isso nos degladiamos, para isso consumimos  todas as energias que conseguimos arregimentar dentro de nós ;  reunimos todas as forças e convicções possíveis, e usamos um argumento forte, para nós mesmos :
aquilo a que se chama "esperança",  de que nunca abrimos mão,  e que  garantimos ser a última que morre, ou seja, que sempre irá  além da vida !
Sem ela na linha do horizonte, torna-se difícil progredir.  Ela funciona como catalizador ... assim  como  uma espécie  de  braseiro  de  sol,  de  dia,  e  de  farol  nas  escarpas,  pelas  noites ...

Ela empurra-nos, quando queremos amodorrar, hibernar, desistir ... puft ... sumir no espaço !
Ela é o complexo vitamínico que acode a situações de déficit orgânico ...
É o balão de oxigénio que impede a asfixia eminente ...
É a transfusão  abençoada, que evita o progresso da astenia anunciada ...
Mas actua pontualmente.   Não se tomam vitaminas todo o ano !!!...

E assim, entre a saudade, o sonho e a esperança, o ser humano vai acreditando na reedição possível  de excertos da sua vida, exactamente aqueles que quereria preservar, re-experienciar .
Extirpando do coração mágoas destruidoras, vai pintando quadros de renovação alcançável, vai tropeçando e esgrimindo com as dificuldades, as tormentas e os vendavais ...

E não se rende, porque apesar de tudo, o Homem é sempre um ser de fé, mesmo que ela não tenha rótulo, e o seja apenas na sua essência de herói e resistente, enquanto Homem que é !!!...


Anamar

terça-feira, 26 de agosto de 2014

" A CORDA DOS SONHOS "



Sempre suspensa, este estupor desta vida !
Suspensa entre o que foi e já não é, entre o que podia ser e também não, e entre o hoje e o que se sonha por noite, embiocados na almofada adormecida ...

Suspensa  pois ... num raio de uma estrada sem sinaléctica de orientação, sem sol ou estrelas lá por cima que dessem uma mãozinha, logo a mim, que nem tenho GPS !
É uma maldade mesmo, de quem goza com esta insatisfação de maçã que cai do galho antes do tempo, misturada com a esperança de florir no pé ...
Hoje, p'ra semana, no Outono, tempo de colheitas ... ou quem sabe na próxima Primavera, com as primeiras águas de Março ?!...

Sempre fico na esquina, de tocaia, tocando o silêncio mais absoluto de que sou capaz, como puto reguila que não quer denunciar a maldade ... à espera que ela, a vida, se solte da corda, abrindo as molas, em dia de vento ... E deixe de estar suspensa a baloiçar !
Mais hoje, mais amanhã ... talvez sábado que é bom dia... ou domingo, em que a alma se veste de festa !...

Mas não !
Converso com os raios de sol que passam pelas frinchas, escuto os silêncios das paredes errantes, avalio os segredos dos rostos espalhados aqui e ali ... e busco no tempo, a ponta da linha p'ra tricotar um futuro parecido a presente ...
Presente,  presente  de laço e de fita ... Não este presente, o outro, porque este me atormenta por falta de originalidade e incómodo !...

Quero um presente da vida !
Bolas, p'ra chatice já basta ela estar suspensa !
P'ra maçada já chega ela não se colorir ... e devia !  Porque nós nunca sabemos se aquele dia é o "tal" dia ... o que sempre esperamos no virar das esquinas.  E por isso devemos estar sempre no nosso melhor ...

Mas eu estou cansada desta espera de paragem de trem.  Desta estação de azulejos azuis, onde o meu passado amodorrou, como as searas de trigo maduro que se embalam  na brisa da tarde, na canícula de Verões alentejanos ...
Tão longe ficaram  eles, os Verões daquela terra !
Depois, tive que me habituar a ser deserdada de destinos, a ser apátrida, em searas de betão com cogumelos a roubar-me o sol ... que passou a entrar só por frinchas na minha vida !

E sobem  marés a acariciar praias desertas, e vem o vento que decidiu desmanchar-me os cabelos .
E passa gente, e voam gaivotas, e escuto vozes, e oiço risos e gargalhadas em compassos certos.
E sorrio, e falo, e digo ... e arranjo pretextos para esperar  acordada ainda, a próxima alvorada, como se ela, na fresca da madrugada, no orvalhar das ervas, no acordar da neblina, me trouxesse então, o presente pedido naquela carta de letra rabiscada, esquecida  à lareira na bota de Natal !...
Talvez ... quem sabe ?!...

O tal presente de laço e de fita !...

E quando a manhã clareia, percebo que afinal deslizei toda a noite num baile de máscaras, de braços de sonho p'ra braços de sonho, percebo que estou entontecida pelos volteios ciclópicos das melodias, sinto  a cabeça ensandecida e exausta pelo torpor dos ritmos com que me atordoei, em mentiras quase verdades, só porque no meu sono eu acreditei que seria assim !..

E abrindo os olhos, no soltar do bocejo da noite finda, vejo-me esgotada, bêbeda de exaustão, ébria de desalento, defraudada do crer, olhando o estupor da vida, que com um esgar  indiferente e insensível, escarnece e diverte-se, no balancé  de corda de roupa !!!
Igualzinha ... desafiadoramente igual !!!...

Anamar

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

" FECHADOS EM CASA, MAS EXPOSTOS AO MUNDO "








Este, o quarto artigo do jornal "Público", subordinado ao tema "As diferentes Gerações", que tenho vindo a publicitar aqui, neste meu espaço.

Espero que, tal como eu, o achem interessante.


   Anamar


Os que nasceram desde 1995 têm uma existência de paradoxos, são os mais protegidos e os mais vulneráveis, são aqueles por quem não se dá nada e de quem se espera tudo.

Este é o quarto de cinco textos sobre as diferentes gerações.











André Agante divertiu-se muito este Verão com os primos e amigos. Passaram horas na piscina, fizeram pizza, jogaram ao toca-e-foge, soltaram as galinhas e correram atrás delas. “Anteontem, eram dez a brincar”, diz ele. É grande a casa dos avós nos arredores de Aveiro. Quando a mãe era menina, também ali recebia primos e amigos. Nas férias, havia pelo menos três crianças a saltar de um lado para outro e ninguém colocou cancelas de segurança nos quatro lances de escadas. Quando André nasceu, cancelas nas escadas, protectores nas tomadas.
Nunca houve tanta preocupação com a segurança infantil. Há até pais que põem capacetes de esponja aos filhos antes de os soltarem dentro de casa. “Até que ponto este excesso não está a criar miúdos menos autónomos?”, pergunta a mãe de André, Catarina Ribeiro, co-fundadora da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Criança Abusada e Negligenciada. Quando André entrou no pré-escolar, aos três anos, queixavam-se os educadores que alguns nunca tinham subido escadas.
Ninguém conhece infância tão protegida como os que nasceram no final do século passado ou já neste – a chamada geração Z ou geração digital. E, no entanto, nunca houve tanta percepção de vulnerabilidade. Parafraseando um texto que o sociólogo Manuel Sarmento co-assina com Natália Fernandes e Catarina Tomás, essa é uma das muitas contradições de um país que pode orgulhar-se de ter uma das mais baixas taxas de mortalidade infantil e um dos mais elevados níveis de segurança urbana do mundo e ainda leva puxões de orelhas pelo maltrato intrafamiliar e pelo abandono escolar.
É recente o reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos. A Convenção dos Direitos da Criança, adoptada pelas Nações Unidas em 1989, foi ratificada por Portugal em 1990. Em 2001, num apelo à participação da comunidade, o país começou a criar comissões de promoção e protecção de crianças e jovens. Um ano depois, ficava perplexo com uma reportagem do semanário Expresso sobre abusos sexuais de rapazes à guarda da Casa Pia de Lisboa. 
Foi notícia até à náusea o processo Casa Pia. Era, interpreta Manuel Sarmento, o país a confrontar-se com a infância como tragédia, com a criança como vítima de uma sociedade que a desrespeita, que não a protege. Nada daquilo encaixava no ideal de criatura bela, inocente e espontânea que se propagava – o imaginário do “bom selvagem” herdado de Jean-Jacques Rousseau. Chocado, parte do país precipitava-se para uma preocupação nalguns casos excessiva.
O jornalista Tiago Freitas sente a preocupação ao criar uma filha de quatro anos e um filho de seis com a mulher no Funchal. “Estão habituados a que 'exista' tudo. Se passa uma nova série animada na TV, se um filme é lançado no grande ecrã, pedem o jogo. Após uma googlada, fatalmente aparecem inúmeras possibilidades de jogar. O principal desafio é saber onde ter a rédea, que é mais curta por um lado (brincar fora de casa, estar fora do alcance visual dos pais, andar sozinho na rua, ir ao mar desacompanhado) e mais solta por outro (mais respondões, menos obedientes, vida dos pais muito dependente da agenda deles)”.
Nenhuma geração cresceu tanto entre portas. Com a rua elevada à categoria de território predatório, isto é, a espaço onde qualquer estranho pode pôr a criança em risco, muitos pais tratam de enquadrar todas as horas dos filhos. As consolas, os leitores de DVD, os MP3, os computadores, os tablets e os telemóveis são os seus grandes aliados. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), 98% dos menores de 15 anos já usava computador, 93% possuía telemóvel e 95% acedia à Internet em 2012. Mas através da Internet a criança enfrenta outros riscos.
André Agante conta nove anos. Tem regras claras para usar a Net: não pode fornecer dados pessoais, revelar as palavras-passe, conversar com desconhecidos. Pode usar o computador que está no escritório ou o IPhone ou o IPad dos pais. E anda a construir uma cidade de dragões, já constituiu uma equipa de futebol e criou uma página no Facebook em nome da sua tartaruga.
“É importante que as crianças corram riscos num ambiente protegido para se poderem desenvolver de forma autónoma”, sustenta Catarina Ribeiro, psicóloga, perita do Instituto Nacional de Medicina Legal. “Crianças superprotegidas ficam muito mais ansiosas perante a adversidade. A adversidade pode ser pôr os pés na areia, mexer num animal ou apanhar chuva na cara.”
A percentagem de crianças na população residente está a cair, de modo consistente, desde o início da década de 1980 – entre 1981 e 2011 o país “perdeu” 936 mil crianças, segundo o INE. A democratização e a europeização impulsionaram transformações profundas. Há mais crianças a nascer fora do casamento ou a crescer numa família monoparental, recomposta, multiétnica ou de orientação sexual diversa. Nunca houve tantos filhos únicos. De acordo com o INE, 45,6% das crianças vivem em famílias sem outras crianças.

A sociedade valoriza mais as crianças, mas as pessoas estão cada vez menos dispostas a tê-las. Será uma característica típica do que o sociólogo alemão Ulrich Beck chama modernidade reflexiva. Se as relações de “curto prazo” são o paradigma, uma criança é um investimento a “longo prazo”. E isso pode ser visto como um estorvo, mas também como a derradeira possibilidade de estabelecer um laço eterno, uma certa forma de recuperar o “encanto com o mundo”.
Nenhum dos primos com que André se diverte em casa dos avós é de primeiro grau. É o único filho e o único neto. Não é daquelas crianças tiranas que o psicólogo espanhol Javier Urra descreve como desobedientes, desafiadoras, ávidas de atenção, capazes de dar ordens aos pais. É uma criança meiga e generosa. Os pais incitam-no a receber amigos e a partilhar o que é seu e ele partilha até o dinheiro que recebe no Natal e no aniversário. Chegado o Verão, a mãe pergunta-lhe quanto destinará às crianças pobres e ele faz um donativo para uma colónia de férias.
Professora da Universidade Católica do Porto e especialista em mediação familiar, Catarina vê muita gente viver em função dos filhos. “É importante que as crianças percebam que os pais têm direito a momentos em que elas não sejam o centro das atenções. Uma criança para crescer bem tem de ser sujeita a frustrações. Não a podemos proteger de tudo. Parte-se um brinquedo, chorou, não é preciso comprar outro a correr. Isso é pulsão compensatória. Os pais sentem culpa por estarem pouco presentes.”
Apesar de os homens participarem cada vez mais, a educação ainda assoberba mais as mulheres. E elas suportam uma das mais longas jornadas de trabalho e um dos mais baixos níveis salariais da União Europeia. Só em 2009 foi consagrada a universalidade da educação pré-escolar a partir dos cinco anos e alargada a escolaridade obrigatória até aos 18. Os equipamentos de apoio à família, diagnostica Manuel Sarmento, continuam insuficientes e as prestações sociais baixas.
“A sociedade não está organizada para os pais de hoje, que têm de aceitar todas as propostas de trabalho que aparecem”, entende a actriz, encenadora e dramaturga Marta Freitas, mãe de um rapaz de 11, Simão, e de uma rapariga de 9, Lucas. “Trabalho muito. Trabalho muitas vezes 15 horas por dia. Tenho de fazer uma gestão de tempo eficaz. Se sei que os meus filhos vão estar em casa ao final do dia, paro para estar com eles, nem que mal eles fechem os olhinhos eu volte para o computador.”
Simão e Lucas vivem entre a casa da mãe e do padrasto e a casa do pai, da madrasta e da meia-irmã, situada uma rua acima. Não lhes faz confusão. “As casas ficam perto”, diz o rapaz, escorregando no sofá. “Acho que é giro, é um tempo para um, um tempo para o outro”, achega a rapariga. “Com o pai vamos mais a concertos, com a mãe vamos mais ao teatro”, prossegue ela.
Frequentam o ensino integrado no Conservatório de Música do Porto. Ela passou para o 4.º ano, estuda violoncelo, ele para o 7.º, estuda piano. “Já têm uma carga horária muito grande”, considera a mãe. Ela e o ex-marido recusam-se a correr com eles de actividade em actividade. “Eles andaram ao sábado no atletismo. Problema: de 15 em 15 dias há competições. Isto de frequentemente transformar fins-de-semana em actividades é uma coisa que está fora de questão.” 
Gostam de ter tempo para estar com os amigos, para estar com os pais ou os avós, para estar consigo próprios – a ler, a ver televisão, a jogar, a brincar ou a nada fazer. “Gosto de ser criança”, diz Lucas. “Um adulto não liga aos amigos a dizer ‘Oh, vamos brincar!’ Nós ligamos. Às vezes, os adultos dizem que têm saudades de ser crianças, porque têm muita coisa para fazer.”
Hoje, observa o sociólogo Machado Pais, “uma criança necessita de se desconcentrar para ter a impressão de que está adquirindo experiências: joga um videojogo enquanto come pipocas, fala com a avó pelo telemóvel enquanto vê televisão e acaricia o cachorro com o pé. Tarefas múltiplas encarnam uma ideia nascente da experiência: uma presença ubíqua, uma desatenção permanente.”
Fazem todos parte da sociedade de consumo. “Boa parte pratica excessos que vão da comida calórica aos meios electrónicos”, torna Machado Pais. “Os horários de dormida nem sempre são respeitados. Muitos têm televisão e computador no quarto, divertindo-se, até altas horas da noite, com videojogos, programas televisivos ou visitas a sites nem sempre apropriados à sua idade. O sedentarismo, por sua vez, tende a aumentar as taxas de obesidade entre as crianças.”
Não é tudo igual. Portugal é um dos países mais desiguais do mundo e isso é óbvio na infância. Os dados do INE mostram que em 2013, 2,2% das crianças com menos de 15 anos pertenciam a famílias incapazes de lhes assegurar pelo menos uma refeição diária de carne ou peixe; 4,3% não podiam trocar roupa usada por nova; 2,4% não tinham dois pares de sapatos de tamanho certo; 5,4% não tinham livros adequados à idade; 7,4% não dispunham de espaço apropriado para estudar; 12,1% não podiam participar em eventos escolares não gratuitos; 24 % não podiam participar numa actividade extracurricular.
Rúben Malhadinhas tem 12 anos e uma energia imensa que esgotou a pedir um IPad à mãe. A mãe, 15 anos mais velha, disse-lhe que era impossível. Ele pediu-lhe que lhe desse então uma Playsation3. Ela tornou a dizer-lhe que não. Ele faz os trabalhos nos computadores da escola e na Qualificar Para Incluir (QPI), uma associação empenhada em travar a reprodução de pobreza. Usa o computador de casa para jogar. O computador é lento. “Está cansado”. E ele tem pressa. “Quero divertir-me, aproveitar a vida.” E fá-lo, sobretudo nos jogos electrónicos, no futebol e no skate. 
Dependentes das condições de vida dos adultos, as crianças sempre foram mais atingidas pela pobreza do que qualquer outro grupo etário. E tudo piorou com a crise, que se agudizou desde 2008. Lucas e Simão nem vêem noticiários. “Na maior parte das vezes, é só desgraças!”, diz ela. André vê: “Nós andamos a poupar e, quando temos alguma coisa de que não precisamos, damos.”
Não fosse a QPI, Rúben ficaria em casa as férias inteiras. Adora participar nas actividades que ocupam mais de cem miúdos em cada mês de Julho. Durante o mês de Agosto, a associação continua a assegurar uma refeição por dia à sua família. Andreia, a mãe, está desempregada. Mesmo com ajuda alimentar, vê-se aflita para comprar os medicamentos de asma para a irmã de Rúben, de cinco anos.
O que será a geração Z no futuro? “Há quem defenda que as nossas sociedades vivem, no domínio cultural, um processo de mutação protagonizado pelos bárbaros que existem à volta e dentro de cada um de nós”, comenta Machado Pais. “O que caracteriza esses bárbaros é a sua fugacidade, a sua capacidade de navegação rápida, o seu deleite em surfar as realidades à superfície, como se não quisessem perder tempo em descobrir-lhes as profundidades. Demanda-se o caminho mais curto e mais rápido para o prazer. Buscam-se conexões, mas as relações que se desenvolvem são marcadas pela fragilidade.”
Neste domínio como noutros, o imaginário nacional balança entre a crise a esperança. Esse paradoxo, explica Manuel Sarmento, faz-se do confronto com a criança-vítima (como aconteceu há pouco com um bebé morto num banho de água a ferver) e com a criança-problema (a da indisciplina, da violência nas escolas, da anorexia, da obesidade), mas também com a criança-rei (que começa a usar as novas tecnologias antes de falar, que apreende a escrever português quase ao mesmo tempo que inglês, que é vista como super-especial). O susto dos adultos com a suposta incapacidade de esta geração adquirir uma cultura de esforço convive com a crença de que resgatará o país do seu papel subalterno, até porque deverá ser a mais preparada de sempre.