sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

" ISTO SOU EU A PENSAR ... "




O dia está de "nieblas" ou seja, está envolto num nevoeiro tão cerrado que não se vê, só se adivinha ...
Não está frio, nos 16 graus de um Janeiro, meio de Inverno.  Contudo ... chove. Chove aquela chuva miudinha que não é bem carne nem peixe, mas que chegou para me encharcar na caminhada ... já que hoje era dia .
Eu gosto das "nieblas", este tempo fantasmagórico que desenha perfis esbatidos, como se estivéssemos atrás de um vidro embaciado.  Gosto deste ar misterioso que sempre me transporta às narrativas celtas, às costas bravias e inóspitas da Irlanda, tão bem retratadas naquele filme maravilhoso de mar alteroso e descomandado  com  que  "A filha de Ryan" nos presenteou, nos écrans de cinema nos idos de 70 ...

Afinal, o dia está parecido com a vida das pessoas.
A maior parte não tem tempo, saudavelmente, para se preocupar com estas tretas. Mas como "quem tem vagar faz colheres ..." eu, até enquanto caminho, penso na vida e falo sozinha ...
O cinzento que me cercava e que me fazia "desaparecer" no raio de alguns metros, foi propício a que me interrogasse pela enésima vez, do porquê da insegurança e da instabilidade da nossa existência, nos dias que correm.
Nos primeiros tempos da minha vida, eu e as pessoas minhas contemporâneas  adquirimos, alicerçámos e interiorizámos conhecimentos, princípios, valores que nos norteavam e que nos garantiam certezas mais ou menos indiscutíveis.  Sabíamos que estas causas, produziriam aquelas consequências, que se vivêssemos controladamente dentro de determinados parâmetros  que conhecíamos, não teríamos à partida, surpresas desagradáveis ou grandes percalços no futuro.
Podíamos planificar, podíamos aceitar desafios e assumir responsabilidades, mesmo a longo prazo, porque era devidamente acautelado o risco que se corria.  E só o corria quem queria.

Hoje, vivemos num arame sem rede.  Tudo, mas tudo, pode sempre acontecer em qualquer circunstância.  Tudo o que era certo ontem, cai em suspeição hoje.  A instabilidade, a incerteza, a dúvida sobre o que e quem nos rodeia, é uma onda gigantesca que cresce mais e mais avassaladora, como um tsunami nos nossos dias.
Há uma desprotecção total do ser humano  face à sociedade, face aos cidadãos, face às instituições, face aos princípios, às linhas norteadoras e às coordenadas que nos regem.  É como se, de repente, toda a sinalética que conhecíamos, fosse desvalorizada, e todos os códigos assimilados e válidos, caíssem em desgraça e passássemos a desconhecê-los.
E aí ficamos nós  mais perdidos que no meio de um deserto, mais naufragados do que em cerração de alto mar ...
E apossa-se-nos uma angústia, um pavor, um cansaço e um descrédito em tudo, que nos indigna, nos revolta e nos reduz à fragilidade com que nos confrontamos, percebendo-nos demasiado insignificantes e desprotegidos no mundo que habitamos.
Não temos verdadeiramente ninguém que nos defenda, as instituições são mais e mais falíveis e inaptas, as estruturas sociais não respondem e não funcionam sequer em tempo útil, são manipuláveis e corrompíveis.  Deixámos de saber as linhas com "que nos cosermos" ... deixámos de identificar as verdades que o eram ...
E ficámos estranhos ... estilo  marcianos largados de uma qualquer nave espacial ...

Somos espoliados nas "nossas barbas" ... e sabendo-o, contudo,  não temos armas disponíveis para a reversão das situações. Tudo é maquiavelicamente engendrado.  Verdadeiros  processos kafkianos são montados. Cantam-nos canções de embalar descaradamente entorpecentes,  para que consigamos reagir.  A verdade e a mentira, o direito e o avesso, o certo e o errado saem da tômbola aleatoriamente, como se inocentemente, o seu grau de validade fosse o mesmo ...

Estas reflexões atormentaram-me e atormentam.  Angustiam-me e desgastam-me.  Desmotivam-me e desencantam-me face à vida e ao futuro.  Sou cada vez mais uma analfabeta, face ao livro da Vida.

Fiz análises de rotina há alguns dias.  O meu colesterol continua teimosamente descontrolado, e desafiador.  Depois de há já razoável tempo eu ter assumido medidas correctivas no meu esquema de vida demasiado sedentário, assumiu valores ainda mais elevados.
Alimentação simples e não comprometedora, comportamentos de risco que evito diariamente e exercício físico praticado com total regularidade, seriam garante de uma segura descida dos seus valores.
Bem ao contrário ... num braço de ferro, persiste em assumir valores fora da tabela.
Sou meio inconsequente em relação a estes acidentes de saúde.  Como o meu pai, que resistia o mais que podia a médicos, medicamentos e tratamentos, eu, que felizmente não tenho  historial de contratempos a este nível, evito dar-lhes importância, protagonismo ou com eles me preocupar.
E por isso, tenho assumido um comportamento de "deixar correr" ...  Os resultados laboratoriais chegam, leio-os de través e guardo-os no armário até que uma nova investida de "consciência" me invada ... e os repita.

Entretanto, vou ouvindo as sugestões de gente avisada : "tens que te aconselhar com o médico !  O valor é elevado,  olha este e aquele a quem aconteceu isto e aquilo " ...

São as estatinas o fármaco aconselhado na terapêutica.  Todos o sabemos.  Só que se trata de um químico com uma moldura de efeitos colaterais assustadora.  Desde a dependência ao medicamento,  ( que exige um tratamento longo  para que tenha eficácia, direi mesmo, "sine die" ),  a um prejuízo acentuado no âmbito da parte muscular e articular do paciente, com restrições na qualidade de vida, e bem assim,  a ser potenciador de alterações cerebrais, como a demência ... o leque de aspectos negativos secundários inerentes, assustam-me e desmotivam-me totalmente.
Depois, ouvem-se algumas vozes da comunidade científica, denunciantes destas situações, com desaconselhamento do uso deste químico, e igualmente se escuta um ping-pong de opiniões sobre a mesma prescrição, desmistificando o colesterol como vilão no nosso organismo, e denunciando  e desmascarando um empolamento intencional e miserável da verdade, montado em prol do  "lobby farmacêutico", que a comercialização destes medicamentos beneficia.
O dinheiro e os interesses económicos das multinacionais sem escrúpulos, sempre à frente, trucidando, se preciso for, o ser humano !!!...

Bom, e portanto, SIM ou NÃO ?
Leio, busco na Internet, falo com gente da área, profissionais de saúde, e fico mais ou menos na mesma ... ou seja, quem fala a verdade, neste imbróglio ???!!!
Trata-se de uma  patologia  silenciosa e falsa, que só é detectável em exames e investigação adequados, ou por alguma "surpresa" grave que nos espreite ao dobrar de uma esquina ...  E aí, poderá já ser tarde !...

"Nieblas" ... sempre as benditas nieblas, poalha viscosa de desinformação, dúvidas e incertezas !...
E nós por aqui, indefesos ... como a mosca presa na teia de uma aranha monstruosa, contra a qual jamais terá capacidade de fazer frente !!!

Anamar

domingo, 19 de janeiro de 2020

" SEI LÁ QUE NOME DAR A ISTO ... "




E o bando dispersou.
Eram muitas, há pouco, patrulhando lá de cima o que suponho ser bem desinteressante aqui por baixo ... um casario sem rei nem roque, uma floresta de betão com alguns assomos de verde, para fazer de conta.
Sei que gaivota não é bicho de jardim, não é bicho de floresta, mata ou serra.  Gaivota é bicho de arribas, de falésias a pique, de rochedos salpicados de sal.  Gaivota é bicho de azul, de rendilhados de espuma, de caramujos, de algas e de peixe de marés distraídas.
Adormece-se se a onda ajuda, pica a fundo sobre as cristas, se ela é rude e se impõe.
Gaivota é bicho de ser livre.   Perspicaz, atrevida e desafiadora, não entendo por que perde tempo a andar por aqui ...
Por essa razão perdoei à minha, que partiu há muito.   Partiu, mas levou-me com ela nas asas do sonho, para bem longe deste cativeiro ...

O céu hoje é um céu de Primavera, num glorioso dia de Inverno.  O seu azul diáfano, a sua luminosidade de doçura perceptível, o calor tímido do seu sol, é um doce envolvimento para o coração e para a alma.
Da janela, repousada em varanda de privilégio do meu sétimo andar, pouco se atreve a tapar-me o horizonte.  Pouco se atreve a escurecer-me a luz.  Pouco se atreve a boicotar-me o pensamento que se solta e voeja longe, mais e mais longe ... sempre mais além ...

O rasto de um avião aqui por cima, traçou uma linha perfeita na tela do firmamento.  Um avião, seja qual for, é um caminho, é um projecto, é uma viagem, é uma história.  Sempre é uma história na vida das pessoas. Uma história contada ou inacabada.
Um avião, é uma chegada e uma partida.  É um encontro onírico.  Para mim, sempre o é.
E lá vou eu ... atrás do rasto, atrás das asas ... atrás do sonho !

Vem aí a tempestade "Glória", dizem os serviços meteorológicos oficiais.
Que saudades dos tempos em que a voz de Anthímio de Azevedo, tudo simplificava no pequeno écran ...
As tempestades não tinham denominações absurdas.  Eram tempestades e pronto. O Inverno era o Inverno, com sabor a frio, a chuva, a ventos, mais ou menos fortes, dias seguidos ... os que fossem .
O Inverno eram as golas altas, os gorros fofos, as luvas que hoje esquecemos no fundo das gavetas.  Eram os pés encharcados, os guarda-chuvas partidos nas reviravoltas das esquinas. Eram as gripes, os espirros e as tosses persistentes.  Era o Vicks Vaporub que a mãe nos punha antes de dormir ...
O Inverno era o que abria as portas à Primavera, e esta ao Verão que antecedia o Outono, no tempo certo, sem surpresas ou desvarios.
As castanhas comiam-se assadas quando o S.Martinho nos batia à porta.  Os morangos e as cerejas assomavam com a doçura mansa da Primavera. As favas desciam-nos à mesa pelas Páscoas.
Era assim.  Sabíamos e esperávamos com gosto, com desejo, com alegria ... porque sabíamos que era exactamente assim !
As coisas eram conhecidas e seguras.  Sabíamos perfeitamente com o que contar, sem sustos ou atropelos. 
Hoje acontece tudo, sempre, em qualquer momento.  Perdeu a graça !...

Hoje sabemos muitas coisas.  Coisas de mais.  Aliás, sabe-se tudo, em tempo real.  E pasmamos com a evolução das tecnologias, com o avanço do conhecimento e da informação.
Mas morre-se nos hospitais, não da doença que lá nos levou, mas de uma bactéria residente, que parece estar ali, para abater quem entrou com uma apendicite ...
E morre-se, porque um inocente avião em rota comercial, é derrubado "por engano" por um míssil, no meio de confrontos absurdos e incontroláveis, em guerras políticas e fratricidas, comandadas de secretárias a milhares de quilómetros de distância.
E há fogos sem norte ou rumo, que devastam, destroem e matam, dia após dia ... homens, plantas, animais ... a Natureza sem defesa, consumida e reduzida a cinzas.  Seguem-se inundações catastróficas, num caos e num desmando que o Homem, afinal, não controla ou aquieta.
O planeta zanga-se.  Zanga-se e avisa.  Zanga-se e castiga.

O futuro mostra-se como as areias movediças do deserto, como as dunas móveis que se fazem e desfazem, à nossa frente ... incerto e duvidoso ... assustador !
O trabalho, o mérito, a isenção, o esforço, a verticalidade, parecem não garantir a dignidade e a realização de ninguém.  São outros os valores que movem o Homem de hoje.  São outros os "requisitos" garante da segurança nos dias vindouros. Os baluartes da sociedade são falaciosos, as estruturas que deveriam pugnar pelos seus direitos, e defendê-la das arbitrariedades que nela grassam, têm pés de barro e mostram-se ineptas, ineficazes e incapazes de proteger os cidadãos.
Manda o poder. Todo o poder ... material ou não ! Impõe-se sem escrúpulos.  De todas as formas de que dispõe.
Enfim, as tempestades vão muito além das meteorológicas !

Bem ... onde o pensamento me trouxe, numa viagem sem bilhete, intemporal e não programada !...
Comecei na minha janela, olhando o espaço sem limite ou fronteira, deitado aos meus pés, há algumas horas atrás ... e termino, quando o sol já faz as malas para dormir ... saboreando uma chícara aconchegante de café, de novo junto à minha janela, quando as gaivotas já buscaram guarida e só os pombos idiotas perambulam por aqui.
O plátano agora esquálido e esfíngico, despido da folhagem que ainda esperará para voltar, parece dormitar como os velhos à lareira.
De resto, o silêncio do fim de dia aproxima-se a passos largos.  Afinal, foi mais um dia de Inverno com um glorioso semblante primaveril !...


Anamar

sábado, 18 de janeiro de 2020

" OS PEQUENOS PRAZERES ... "



Levantei-me tarde, aliás como é hábito.  Herdei do meu pai os genes da apreciação de uma boa manhã na cama, não importando a hora do recolhimento.  Essa, pode ser qualquer uma, ao sabor das circunstâncias e dos momentos.
Já varei muita madrugada entretida cá nas minhas coisas,  já me amanheceu o dia sentada ao computador frente à janela de sempre, já escrevi muito de meu nas horas silenciosas e cúmplices, perdidas noite adiante.
Mas aquela oportunidade de tempo sem tempo, no entremeio da fofura dos lençóis, no ninho aconchegante e quente do édredon ... essa, é uma benesse sem tamanho, é um privilégio que me compensa da obrigatoriedade de encarar mais um dia, com ou sem vontade, no desencasular face à luta diária que sempre nos espera !
Sou tipicamente uma mulher da "noite".  Funciono do lusco-fusco, adiante.  As manhãs ... sobretudo as horas da alvorada deprimem-me, violentam-me, incapacitam-me os neurónios, tornam-me totalmente disfuncional ...
Sobretudo nesta época do ano em que se pressente borrasca lá fora, em que se ouve o vento agreste a soprar, em que se adivinham  nuvens cavalgantes e encasteladas cobrindo a abóbada por cima das nossas cabeças ... em que a chuva copiosa tamborila ou açoita a vidraça ...
Foi o caso desta noite, em que por cada momento consciente entre o sono e os sonhos que me acompanharam,  saboreei  a  doçura  do  estar  bem ... de  tudo  estar  mais  ou  menos  perfeito !...

Depois, cumpri a caminhada que me imponho  três vezes por semana, na procura de mais qualidade de vida, com a satisfação do dever cumprido.  Sim, porque não sendo eu uma pessoa que me reconheça disciplinada, sobretudo nesta área, conseguir manter um projecto, uma determinação e uma realização, sabe-me efectivamente a uma verdadeira e prazeirosa conquista.
Hoje, em itinerário alternativo à mata enlameada e intransitável pelas chuvas caídas, inaugurei satisfatoriamente o percurso que apelidei de "inverno" ...

O sol acabou espreitando pelo meio de algumas nuvens esparsas que viriam a adensar-se e a fazerem cara feia, agora ao fim do dia.
Almocei de prato na mão, sentada sobre a máquina de lavar roupa, junto à janela, saboreando a generosidade de uma luminosidade dourada, doce e envolvente, dos raios que me inundavam.
À minha frente, o casario desgovernado, que me permite olhar horizontes longínquos,  mais adivinhados do que alcançáveis, transportava-me ao sabor do sonho, na liberdade das gaivotas que por aqui preguiçosamente planavam.
Há quanto tempo eu não me oferecia este descompromisso de formalismos !... Há quanto tempo eu não me permitia esta coisa de poder ser como eu quisesse, sem demais preocupações, presenças ou obrigatoriedades !...
Bebido o cafezinho de fim de refeição, sem urgências ou afobações, esperava-me uma tarde ociosa sem programas determinados.  E poder fazer isto, aquilo  ou aqueloutro conforme me desse na telha, tinha um sabor abençoado.

Vim para o computador  mexer e remexer em pastas, documentos, fotografias arquivadas, testemunhos de eventos, momentos que o foram, registos que marcam inesquecíveis acontecimentos, indelevelmente guardados por esta ou aquela razão, mas que se pretende que perpetuem aquela fatia das nossas vidas.
São memórias inapagáveis, são formas de nos trazerem o passado ao presente, de uma forma tão vívida que parece que o vivemos outra vez.
Revi o vídeo do lançamento do meu livro "Silêncios" que fará em Maio, três anos decorridos.  Rever as pessoas, sentir toda aquela festa, toda aquela emoção, todo aquele "conto de fadas" de um dos dias mais felizes da minha vida, deixar-me de novo envolver naquele regaço de carinho e afecto, trouxe-me outra vez as lágrimas aos olhos.
Olhar as pessoas, ver os seus rostos na alegria com que me homenagearam, escutar as palavras proferidas na Biblioteca Piteira Santos ... "beber" Énya no seu "Only Time" que nunca se apagará do meu coração ... foram presentes bem acima do que eu alguma vez sonhara, do que eu alguma vez mereceria ...

E pronto ... anoiteceu entretanto.
O meu sábado foi um conforto de alma pejado de pequenos prazeres, soltos e leves, uma  verdadeira dádiva  que  me  concedi,  com  o  sabor  da  liberdade,  da  irreverência  e  da  plenitude  de simplesmente  ser  e  saber-me  mulher,  na  posse  das  minhas  vontades, opções  e  escolhas !...

Afinal, a vida também é feita destes pequenos e saborosos retalhos ... acredito !!!...

Anamar

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

" EM BALANÇO ... "




Dei por concluído mais um volume - repositório de tudo o que publico aqui  neste meu espaço pessoal - o correspondente ao ano agora findo, de 2019.
Desde que iniciei a escrita deste blogue no passado 2008, uma iniciativa que surgiu entre a curiosidade e a experimentação, já completei dezoito volumes em suporte de papel, que guardo religiosamente na prateleira da minha estante.
São testemunho vivo da concretização de um projecto pessoal, que vale o que vale, não tem nenhum tipo de pretensão ou convencimento, e que é simplesmente algo que ficará um dia quando eu partir. Será um legado meu que falará daquilo que eu sou, daquilo que foi o meu percurso, as minhas preocupações, as minhas dúvidas, as minhas conquistas e os meus desaires, os meus sentires ... alegrias, tristezas, o que foi capaz de me emocionar ... em suma, um retrato nu desta que eu sou.

Cada palavra, cada linha, cada texto que aqui foi registado, foi-o com o desassombro, com a independência que me concedo, com a liberdade que me permito, com a autenticidade que me desenha.
Cada sentimento expresso, foi-o por escorrência simples e natural da minha pele e do meu coração.  Sem censuras, sem barreiras, sem crivos ou filtros.  Sensata ou insensatamente ... prudente ou imprudentemente ... Nunca isso me coartou, preocupou ou limitou.
Tal como na vida em que nunca aceitei cangas, baias ou fronteiras, e simplesmente me assumo com a genuinidade  que me confere uma coerência e uma verdade que sempre busco e respeito, também aqui sou eu frente a mim mesma ... em espelho de lealdade e verdade, sem fraudes ou distorções.

Sempre escrevi o que a voz me ditava, nunca me obriguei ao socialmente adequado ou correcto, sempre ignorei o "ruído" exterior, fingi não perceber intencionalidades ou interesses.
Nada foi "trabalhado", retocado, travestido pelo parecer bem, pela aceitação, pela conveniência.

E só por isso valeu a pena !
Hoje leio-me, e ao ler-me reabro a estrada, espreito as bifurcações, sinto as hesitações das encruzilhadas ... percebo as dúvidas, as angústias das incertezas nesta arte de marear, tantas e tantas vezes em meio de tempestades alterosas ...
Hoje, reassumo os batimentos acelerados dos cansaços do caminho,  respiro de novo as pausas nas sombras de paz e água fresca, com que a vida ... com que as vidas alternam nos nossos percursos ...
Hoje, congratulo-me pelo crescimento que descortino, gratifico-me pela maturidade conquistada, aceito com bonomia e paz  as cicatrizes deixadas pelas horas menos felizes, enxugo as lágrimas inevitáveis escorridas pelos tempos ... aquieto o coração, vezes de mais escalavrado e sofrido ...
Hoje, ao ler-me, "vejo-me", "descubro-me", "orgulho-me" ... "reconheço-me" ...

E apesar dos pesares, não sou capaz de me zangar com esta existência de tropeços, quedas, desacertos e incompletudes, porque sei do esforço diário desenvolvido para o acerto, porque sei do desafio imposto para a superação, porque sei da luta permanente travada  para a não desistência, porque sei da coragem e da esperança que bebi às colheradas para não soçobrar no campo de batalha ...
Por tudo isto, dia a dia me agiganto, me respeito mais e mais e me admiro ... se tal me for permitido ...
Em jeito de balanço, direi apenas que esta "herança" que deixo, talvez seja a mais preciosa que poderia  deixar, porque é uma dádiva integral de mim, na globalidade física e espiritual da mulher que eu sou !...

Anamar

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

" E A PRIMAVERA AINDA DEMORA A CHEGAR ... "




O ano começou há exactamente uma semana .  É um recém-nascido peremptório, teimoso e cheio de artimanhas.
Veio carregadinho de vontades imperativas, sem dar cavaco a ninguém.
Prometo que não vou falar daquelas frases "kitsch", tipo  "uma nova página a ser escrita",  " vêm aí 366 novas oportunidades ", "o tempo passa sozinho, mas és tu que viras a página" ... " meta para 2020 : ser feliz! " ... e bla bla bla ... tipo receitas do Pantagruel ...
Irrita-me o vazio de frases feitas e irrita-me a bonomia de mão passada pela cabeça ... deixa lá, vai ser melhor, não desistas dos sonhos, depois da tempestade vem a bonança ... basta acreditar ... e etc, etc, etc ...  Tudo lindinho, tudo fofo, tudo iluminado ... com os corações pseudo plenos de paz na Terra, amor e boa vontade !
Como se tudo fosse exactamente assim ... como se a vida, o tempo, a nossa existência fossem exactamente bombons  embrulhados  em pratas coloridas ...

Acho que estou gradualmente a perder a capacidade do sonho.  A capacidade do acreditar.  A capacidade da esperança.  E tudo isto é grave ... é mesmo muito grave !
A estrela do presépio não assomou por aqui.  Não  me ensinou caminhos,  e  o  meu "deserto" está mergulhado na profunda escuridão de todos os desertos, onde só o firmamento vive ponteado de fogachos longínquos, alguns  inexistentes, apagados e mortos ... à semelhança de muito, do tanto que inventamos.
A sua luz ficou lá atrás dos tempos e das eras ...

Entra ano, sai ano, correm horas, dias e meses, no desfiar implacável de amanheceres seguidos de ocasos.  Ilusoriamente acredita-se que tudo será privilegiadamente diferente, só porque  o  calendário ( essa invenção de mau gosto ), deixou pingar a sua última página ...

Um Inverno, agora generosamente solarengo, pintalgado de azuis e laranjas, enfeita-nos os dias, promete-nos alvoreceres auspiciosos.
Não faço intencionalmente previsões.  Não desenho metas ou pinto cenários, obviamente.
Vou só vivendo ... tão simplesmente.  Vazia ... ou melhor, esvaziada de ilusões.  Acho que essas, feneceram, tombaram quais folhas caducas, das árvores de finais felizes, que se despem impiedosamente, rumo ao sono retemperador e intimista da estação que vivemos.

E a Primavera que ainda demora a chegar ...

Anamar

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

" ESTA, SOU EU !... "






A tarde fechou cor de fogo, iluminando, como se de luz acesa se tratasse, todo o firmamento. Promete-se  continuação deste tempo bem favorável, depois de dias fortemente gravosos para muita gente, com inundações e cheias desgovernadas e ventos ciclónicos destruidores.

Mas hoje, a amenidade do dia e a doçura da claridade envolvente, tornou-o absolutamente fantástico ! Um dia "brutalmente" belo, vocábulo indistintamente aplicado, nos modismos da linguagem actual ...
Invenções que as pessoas usam ... expressões sobre cuja acuidade nos interrogamos ...
Mas nada disto é importante.  O que verdadeiramente me importou, foi poder saborear da minha caminhada em paz, num deleite absoluto, usufruindo-me no silêncio da mata.
É espantoso como lá, tanta coisa eu me falo, eu me interrogo, eu analiso, eu esclareço ... eu decido.  Isto, no silêncio total, apenas bordejado pelo trinado dos pássaros, que de galho em galho se mostram felizes e quase primaveris.
É de facto um tempo e um espaço de privilégio, indevassável  por gente, por ruídos, pelas coisas maçantes do dia a dia, que sempre ficam portões afora, da Quinta Nova de Queluz ...
As ideias aclaram-se-me, as dúvidas parecem dissipar-se, as soluções surgem-me com a logicidade de questões desembrulhadas subitamente de véus, que pareciam demasiado espessos ...
E eu por ali vou, conversando a meia voz e aconchegando-me com toda a maravilha que a Natureza nos disponibiliza.
As azedas atapetam e florescem tão cerradamente as encostas ao sol, que parecem musgos fofos no presépio do Natal.  As árvores de folha caduca, espreguiçam os ramos despidos em direcção ao céu, e têm uma beleza esfíngica sonolenta e mágica ...

Tenho um amigo, com quem aliás farei a passagem de 19 para 20, cuja vida está presa por fios ténues e quase invisíveis.  Padece há alguns anos de uma doença terminal muitíssimo grave.
Alentejano que é, com a força, a tenacidade e o querer que quase sempre nos povoa a alma e o corpo, nunca se entregou à sentença que lhe foi lida, rejubilando, quando a brincar dizia já ter ultrapassado há muito, o "prazo de validade" ...
Nos últimos tempos, a sua já muito acentuada debilidade agravou-se muito significativamente, e hoje, há poucos dias, foi totalmente desenganado, clinicamente falando, sendo que se mantém, apenas à custa de transfusões de sangue, face à comprovada ineficácia de toda a terapêutica desesperadamente tentada.
Dessa forma, procuram garantir-lhe paliativamente  ainda, o mínimo de resistência e sobrevivência.

Pelas veredas da mata, no meio de toda a exuberância de uma Natureza generosa e em visível renovação, não consegui alhear-me da situação do Vicente.
Químico como eu, um pouco mais velho, colega da velhinha Faculdade de Ciências da Politécnica, é uma pessoa pragmática, positiva, lutadora, bem disposta apesar de a vida não lhe ter sido muito favorável ...
Parece aceitar com alguma paz e conciliação, o que o futuro curto ou longo, lhe poderá oferecer ...
Pediu que a passagem do ano fosse em sua casa, rodeando-se de alguns, poucos amigos ... os amigos de toda a vida ... os amigos certos ...
Desconheço se o entende como uma espécie de despedida ...

Não sei o que vai dentro da sua cabeça e do seu coração.  O Vicente chegou à minha vida há muito pouco tempo, não mais que três anos ... através de outros companheiros comuns.
Não o conheço, portanto, em profundidade.  Tento apenas meter-me na sua pele.  E pergunto-me :  se fosse comigo, será que eu aceitaria com a bonomia que ele exibe, tudo aquilo que se perspectiva para o resto dos dias que lhe forem concedidos ?
Será que eu ia ter a placidez da aceitação e do desapego, com a paz e a tranquilidade possíveis ?
Será que eu não sucumbiria ao desespero, à raiva, à injustiça, à dor e à mágoa, por  me tirarem daqui à força, com a insensibilidade imposta da partida, com a indiferença de coisa decidida, sem que eu pudesse opinar nada em meu benefício, face à prepotência da morte ?
Será que eu aceitaria que a Natureza esmagadoramente bela, continuasse  igualmente  pujante e generosa, a enfeitar-se, a sorrir, a acender dias luminosos e doces , convidativos ao sonho, à esperança, à VIDA ... indiferente ao grão de poeira que de facto somos ?
É um acinte, um descaso, uma provocação, um absurdo ... termos que partir com tanto sol, tanto verde, tanta perfeição lá fora, à nossa volta !...

Entretanto as últimas horas de 2019 estão a esgotar-se.  E essa ampulheta que esvazia, angustia-me, ainda que eu queira  fazer de conta que tudo não passa de um ardil criado pelos humanos para balizar, fatiar, segmentar esse monstro a que chamamos tempo ...
Como se não fosse tudo infinitamente mais simples se desconhecêssemos essa  famigerada contagem !...
Não nos preocuparíamos se passou mais uma semana, um mês ... um ano ...  Se estamos nesta ou naquela idade ... se se aproxima expectavelmente o fim da linha ou não ... se teremos ou não, teoricamente, ainda muita estrada por andar ...
Seríamos como os animais, como as plantas, que apenas aceitam e vivem ...
Recebem cada dia que desponta, percebem os Verões, os Invernos, os ciclos biológicos ... o desenrolar puro e simples dos destinos ... assim, simplesmente ...
Sobrevivem apenas, com a felicidade de existirem e de se continuarem ... não mais !...

Estou atontada, como percebem.  Rir-se-ão por certo, de tanta inconsequência e patetice.  Nos últimos tempos, desatei a ver a vida com uma carga que considero mais realista, contudo mais negativa, que me torna ansiosa, que me faz pensar, que me tirou a despreocupação defendida, do "carpe diem", correcto e assertivo, que as pessoas perseguem.
Devem estar certas, seguramente.  Eu percebo claramente que estão certas, e que é estupidamente martirizante, ver as coisas de outra forma ... Para quê ?...  Mas ...

FELIZ 2020  para os meus leitores, com ou sem rosto !
Sempre grata, prometo ir continuando por aqui, com todas as minhas inquietações, dúvidas, realizações, alegrias e tristezas !!!  Afinal, ESTA sou eu !




Anamar

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

" DESABAFOS / INTERROGAÇÕES INCONFESSÁVEIS ... "




Eu sabia que seria exactamente assim.  Sempre o soube.

É o segundo Natal em que a ausência da minha mãe deixou vazio um lugar naquela sala.
Verdade seja que nos últimos anos ela já não queria estar.  Era-lhe penoso ser subtraída ao aconchego da sua cama àquelas horas.  Mas nós sabíamos que ela estava lá.  E o beijinho de noite tranquila, dado antes da Consoada, aquecia-lhe ... aquecia-nos o coração !
Agora tudo é diferente.  Ela paira por ali, quase sempre ela paira por aqui, na presença que eu sinto, nos sinais que me vai deixando, nas conversas em surdina que mantemos ... Mas só ...
Trocar ideias com ela, como eu preciso ... nada !
Acho que nunca pensamos à séria que a nossa mãe nos fará tanta falta.
Enquanto é real nas nossas vidas, nem percebemos como aquela figura discreta, às vezes exigente, às vezes controladora, às vezes chata ... é de facto, determinante.  Não realizamos da importância dos conselhos, dos palpites, das sugestões ... às vezes dos reparos, dos remoques, das "abelhudices" contra as quais nos insurgimos com tanta frequência ...
"Mas que coisa ... a minha mãe acha que o tempo não passou e que a minha vida é a sua ... os meus interesses também !" - tantas vezes o pensei ... tantas vezes o disse ...

Hoje, estou mais "perto" dela, do que das gerações descendentes.

Na forma de pensarem e de se posicionarem na vida, as minhas filhas começam a ficar a anos-luz das minhas convicções, da minha forma de vida, dos meus padrões, daquilo que defendo, que valorizo e aprecio ...
Começo a perceber que as suas "unidades de medida" do tempo e do espaço, são outra onda.
Começo claramente a perceber que os seus ritmos, as suas referências, os seus valores e interesses, as suas capacidades face à vida, são outro departamento.
E sei exactamente que não entendem e não aceitam, a falta de "desembaraço", a lentidão às vezes, o "emperramento" mental, que pensam que nós, os pais, nunca deveríamos ter.
Sei exactamente da sua impaciência e falta de disponibilidade, para ouvir e " dar tempo a quem precisa ".
Começo a perceber a discrepância das nossas linguagens, a ininteligibilidade dos seus mundos, o meu afastamento ao seu universo.

Que dizer então dos que ocupam um degrau adiante ??

Em relação a esses, começo a virar um " ET".  Qualquer dia ( se não já, começam a olhar-me como uma figura meio dinossáurica e fóssil ... ).
Não entendo, e custo muito, mesmo muito a aceitar a tolerância e a permissividade dos pais de hoje, em relação a muitas formas de ser e estar, dos filhos.
Não entendo os modismos aos quais se adere, porque são isso mesmo ... modismos.
Não entendo que haja quatro pessoas numa sala, onde teoricamente se deveria vivenciar o convívio da Consoada, aproveitando os raros momentos em que a vida permite a partilha entre as diversas gerações, e estas estejam fixadas nos monitores dos telemóveis ...
Não entendo que os amigos dos pais sejam tratados por "tios" e "tias" ... Irrita-me solenemente esse tão generalizado preceito ...
Não encaixo ter uma neta, na idade tonta dos quinze anos, que tenha feito um "alisamento" do cabelo ... só porque não apreciava a escassa ondulação do mesmo ...
E do meu ponto de vista, sem que sequer tenha merecido alcançar esse desiderato, uma vez que o seu rendimento escolar deixou muito a desejar neste primeiro período lectivo.
No meu tempo, este tipo de compensações e "miminhos" ( por serem supérfluos e dispensáveis ), tinham-se ou não, como prémios de merecimento ou estímulo ...
Custo a engolir linhas estapafúrdias "vanguarda" ou "alternativas" no vestuário, com a cor preta a dominar as roupas jovens e as botas de tropa, inestéticas, pesadonas e pouco femininas, a completar o "boneco" ... Isto, revendo os conceitos de vestuário que, ao longo dos tempos, desde sempre foram mais ou menos clássicos, nas respectivas educações ...

Não ignoro  que o vestuário que exibimos é uma questão cultural e social, uma forma de integração ou de rejeição dos arquétipos que a sociedade impõe.
Nomeadamente os jovens, particularmente os adolescentes numa fase da vida de contestação e desafio, em que buscam uma qualquer identificação e um lugar no mundo que habitam, procuram afirmar-se com códigos de vestuário que os assimilem e integrem no grupo de referência.
Daí as correntes diversas que se caracterizam e pautam pelos diferentes padrões ideológicos seguidos.
Apenas acho que maioritariamente, se estabelecem posturas de "carneirada", aleatórias e despersonalizadas, sem nenhuma consciencialização da escolha ou opção assumidas, reféns das tendências e das modas, simplesmente.

Enfim ... dou  por  mim,  e  odeio  fazê-lo,  a  proferir  uma  frase  que  me  arrepia : " no  meu  tempo ... "
Oh Deus ... será que estou mesmo com a intolerância, a rabugice, a mumificação das "relíquias" museológicas ???!!!
Será que estou a ficar estratificada nos tempos em que vivo, empedernida, sem adaptabilidade e sem abertura ?!
Será que estou a auto-marginalizar-me das vivências do hoje, porque me sinto distante, incómoda, dispensável, estranha ao que me rodeia ... sem "espaço" ou lugar ??

Preocupante, sem dúvida !

De tudo isto eu falaria com a minha mãe.  Todas estas minhas inquietações ela entenderia ...

Acho que nunca pensamos à séria que a nossa mãe, um dia, nos faria tanta falta !...

Anamar

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

" QUANDO NÃO TEM MAIS JEITO ... "



Ontem, aquela noite determinada.  Aquele 24 de Dezembro de que não dá para fugir.
A tradição, o hábito, o institucionalizado, mas sobretudo o convencionado, ditam que as famílias se sentem em torno de uma mesa entupida de vitualhas, entre os doces e os salgados, e tentem estar unidas e de bem, pelo menos uma vez no ano ...
Umas vezes dá, outras, nem por isso !

A "família", essa instituição algo abstracta, definida como as pessoas do nosso sangue a que se juntam "artificialmente" extensões, fruto da vida e dos destinos, é cada vez mais, de facto, nos dias de hoje, uma entidade abstracta, distante, impessoal e frequentemente, penalizante.
Está "escrito" que valores como o amor, a cumplicidade, a aceitação, a tolerância, a compreensão, a união, o bem querer, entre outros, sejam, ao longo dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, pedras basilares estruturantes, verdadeiros pilares e alicerces duma família, laços que deveriam ser inexpugnáveis.

Como em tudo na vida, a teoria livresca, normalmente desmorona face à prática no terreno.
E se, de alguma forma  norteámos as nossas realidades familiares nestes arquétipos, e conseguimos com razoável sucesso monitorizar o andamento do nosso "barco" durante determinadas fases da vida, com o avanço dos anos, com as vicissitudes atravessadas ( excepto em honrosas excepções que admito ), normalmente esses "projectos" familiares mais sonhados do que realizáveis, tornam-se verdadeiros e dolorosos falhanços.
Famílias que se desmantelam pelas mais variadas razões, opções de vida novas e diferentes, face às células inicialmente estabelecidas, afastamento físico dos seus elementos, motivado pelos diversos  percursos individuais escolhidos, incompreensões e intolerâncias que não conseguem deixar-se sobrepor pelos valores que na realidade deveriam imperar entre pessoas do mesmo sangue, como o afecto e o amor ... conduzem as realidades familiares a disfuncionalidades  frustrantes e dolorosas.

As pessoas desconhecem-se.  A sua forma de ver a vida, os reais interesses e valores que têm significância para cada um, os seus posicionamentos na sociedade, e mesmo nas respectivas e posteriores realidades familiares constituídas,  são tão díspares, tão abissalmente distintos, tão estranhamente distantes e indiferentes, que não conseguimos descortinar onde é que por ali existiu alguma vez um tronco comum.
As pessoas estão de costas viradas, têm linguagens desconhecidas, comunicações colapsadas, silêncios inultrapassáveis entre si, verdades absolutas e inflexibilidades inaceitáveis.  Há mágoas, ofensas, animosidades, desunião ... indiferenças atrozes e implacáveis ... diferenças ...
Não há relativização de nada, cerrando-se cada um na sua verdade e intolerância, como mulas empacadas, incapazes de um gesto de cordialidade ou aproximação.   E muitas vezes sem que se perceba sequer o porquê !...

E aqueles que são pais e mães, irmãos e irmãs, avós e netos, ficam tão distantes física e emocionalmente, tão "transparentes" e descartáveis ... tão dispensáveis uns para os outros, acredito ... que o sangue ... o tal sangue que corre no tronco comum, queira-se ou não, já não opera milagres !
A desvalorização e deterioração dos laços é notória e total.
E à semelhança do mundo, é  cada um em si e de "per si" ... ainda que na noite de Natal, o tal 24 de cada Dezembro, a mesa das vitualhas entupida de doces e salgados tente, ingloriamente,  fazer a magia da aproximação, da cumplicidade e do amor !!!...

Anamar

domingo, 22 de dezembro de 2019

" NEM SÓ OS PÁSSAROS ... "



Só os pássaros passam as redes das escolas desertas, onde os risos soltos das crianças não ecoam, neste período de silêncios escolares ...
As portas estão cerradas, as relvas desabitadas e os bancos das merendas sozinhos e tristes ...
Os pássaros, nos seus voos de liberdade sempre passam fronteiras, sempre vencem distâncias e vão além dos muros. 
As folhas dos Outonos que já foram, atapetam de ocres queimados o chão molhado das chuvas persistentes.  As azedas, as macelas e outras vivazes, festejam em explosão de alegria os verdes das alcatifas com que a Natureza  forrou as terras sedentas ainda há pouco.  As águas derramadas dos céus encastelados foram bênção prazeirosa e potenciadora da floração das espécies de Inverno.

Na mata também só há silêncios.  Os habitantes não se vêem.   Só se ouvem.  Continuam a saltar por entre os galhos.  Abrigam-se da intempérie nas árvores de folha perene.  Lá terão os ninhos, por certo.
A Natureza despiu-se.  Só os musgos e os líquenes trepam os troncos, enquanto que os cogumelos selvagens ponteiam o chão, e as primeiras bagas começam a despontar ...
A solidão ... uma solidão, um abandono e um desconforto parecem pairar, e ombreiam com o meu sentir.  Os silêncios estão-me por dentro e por fora, como se a alma e o corpo iniciassem uma hibernação providencial ...

E há uma paz.  Só a busca daquela paz me leva para os caminhos enlameados.  Me leva para as veredas desertas, na certeza de que nem vivalma anda por ali.  As pessoas fogem  do cinzento, das sombras, da escuridão mesmo, que fecha os dias antes de tempo.  As pessoas fogem do silêncio ... do que parece ausência de vida ...
Eu, não.  Eu vou por lá ganhar um banho de tranquilidade, de equilíbrio, de contemplação, como se fosse uma purga da civilização que se impõe.  Como se fosse uma fuga ao que deve sentir-se e viver-se agora ... ainda que se não sinta ... Só porque é Dezembro, só porque é Natal ... e outro ano tudinho novo a escrever-se, abre o livro ...
Eu vou por lá beber, respirar, empanturrar-me de Natureza ... porque é a única fiável, certa e segura que me envolve.  A única perfeição que nos coexiste, neste minúsculo ponto do Universo ...
E o conforto que experimento não se descreve.  É uma masturbação infinita na alma, e uma faxina retemperadora no coração !

Acho que estou a tornar-me eremita.  O ser humano cansa-me mais e mais.  A capacidade de emaravilhamento, de sonho, de identificação, de plenitude, de êxtase ... neste momento só a encontro no diálogo que estabeleço com os seres irracionais que me cercam. 
Sinto-me feliz e em paz com a ternura dos gatos que vivem comigo.  Sinto-me preenchida e leve, quando persigo o voo das gaivotas frente à minha janela.  Respiro até ao âmago de mim mesma, no cimo de um penhasco, no alto de uma falésia.  Converso com os ouriços dos castanheiros, e silencio ao escutar os avanços e os recuos das marés, nos areais açoitados pelas ondas alterosas ...
Escuto a brisa leve que perpassa, e respeito a força dos vendavais que ordenam ...
Fascino-me com os acordes da música que toca dolente aqui ao meu lado, com a doçura da tarde que se pôs ...
E aí sim ... sinto-me um pouco feliz !...

"Só os pássaros passam as redes das escolas desertas, onde os risos soltos das crianças não ecoam, neste período de silêncios escolares ..."

O meu pensamento livre  voa com eles  além das redes, além dos muros e das paredes, além das convenções, do certo e do errado,  das memórias, da nostalgia que me toma ... numa troca muda de palavras com o silêncio do meu quarto !...



Anamar

sábado, 21 de dezembro de 2019

" NA HORA DO LOBO "




Verdade que depois da tempestade, chegará a bonança.
Temos vivido dias complicados em termos atmosféricos, em que depressões sucessivas com as consequências inerentes, têm violentado o país com ventos fortíssimos e cheias destruidoras que deixam populações, culturas e habitações em situações bem precárias.
Somos um país pequeno, de poucos recursos, e como tal, qualquer situação mais gravosa logo deixa marcas notórias de devastação e dor ...

Mas hoje, pese embora não tenhamos uma melhoria certa e segura, a chuva deu tréguas, o céu de chumbo pesado de borrasca  passou a um cinza menos agressivo, e há pouco, um sol muito mas muito tímido, espreitou e garantiu aos mais cépticos, que por cima das nuvens ele está lá ... sempre está lá !

Aqui da minha janela, frente à mesa onde escrevo, olho o horizonte lá longe, vejo o plátano despido aos meus pés, verifico que a folhagem das árvores que ainda a detêm, pouco mexe ... e escuto e sigo o rumo de algumas gaivotas que se bamboleiam na aragem que sopra lá fora.
O seu grasnido e o voo errante, sempre me deixam nostálgica.  Lembro os tempos da "minha" gaivota, quando ela me trazia novas dos areais distantes, e o cheiro da maresia e da caruma da Serra ...
Hoje, acho que até mesmo a "minha" gaivota foi à vida dela ... porque eu deixei de ter olhos para a contemplar e ouvidos e voz para com ela cumpliciar ...
Acho que essa ingenuidade contemplativa e onírica, ponteou apenas uma época da minha vida ... não mais !

Esta quadra calendarizada ... não canso de referir, porque não canso de sentir ... é muito complicada para a minha cabeça .   Sei que como eu, muitas pessoas se sentem, se possível, com uma solidão instalada e acrescida.  Sei que como eu, muita gente faz balanços de vida, pega no deve e haver que ela lhe estendeu ao longo do ano que se apresta a terminar, e muitas vezes, objectivamente se sente como barquinho de papel em riacho alteroso.
Questionamos mais e mais a razão da existência, reflectimos sobre o insucesso e a ineficácia da  perseguição falhada a objectivos  não alcançados ( apesar do denodo e da aposta tantas vezes investidos ), "crucificamo-nos" pela incapacidade sentida e frustrante no leme do barco, deixamo-nos invadir por saudades ( de pessoas, de lugares, de tempos, da nossa juventude ... de nós mesmos, e daqueles que um dia fomos ... ) ...
E enfim, este tipo de pensamentos perseguidores, despoletadores de vazios e mágoas, em nada contribuem para que nos sintamos felizes !

Entretanto, há poucos dias  Patxi Andión, o cantautor mais português de Espanha, sociólogo, actor e escritor, um lutador acérrimo contra o fascismo de Franco,  morreu estupidamente num acidente rodoviário, aos setenta e dois anos.
Foi para a minha geração, seguramente, uma referência cultural ecléctica, no panorama artístico internacional, em que se posicionou fundamentalmente como interventor social e político,  homem de esquerda que era.
Descomprometido e coerente, sempre assumiu, quer na sua terra ( um madrilenho com raízes bascas ), quer no exterior, nomeadamente em Portugal  onde actuou regularmente ao longo de cinquenta anos, o rosto da resistência anti fascista, da denúncia e da defesa contra as injustiças e arbitrariedades sociais, e bem assim das grandes causas e desafios, que se colocam ao homem do século XXI.
A sua voz rouca inconfundível, deixava passar mensagens de justiça, solidariedade e esperança.
Em 2013, o tema " Palavras ", intimista, particularmente doce e sensível, falava-me de algo que de alguma forma, eu experienciara anos atrás.

Hoje, Patxi Andión tinha em mãos a continuação de um trabalho em dois álbuns, a finalizar em finais de 2020 com o álbum "Profecias",  tendo o primeiro sido lançado em 2018 com o nome de "La hora Lobicán".
A "hora Lobicán" é uma expressão muito usada pelos "viejos", nas Astúrias e na Galiza, referindo aquela hora do dia, o lusco-fusco, aqueles momentos do amanhecer e do anoitecer, em que há uma indefinição entre a imagem do lobo e do cão. Em que há um confusionismo entre o que se vê e o que realmente é, como se "nieblas" espessas se abatessem e turvassem a nossa vista ...

" La hora lobicán, que decian los viejos.  Confunde al lobo en can y al perro en lobo.  Y todo pude ser sin que se vea nada.  Suspenso cautelar de todas las miradas.  La hora lobicán es hora y humo.  Humo para esconder y hora en punto que se dispone a ser, otra vez más, un nuevo amanecer ou atardecer secreto ... "  -  estas as primeiras estrofes do poema.

É como se se diluísse ou dissipasse a resolução visual das coisas.
Transpondo esta simbologia metafórica para a realidade da vida do Homem nos tempos actuais, pretende chamar-se a atenção para a mistificação das verdades, das realidades, das certezas.  De repente, tudo o que parece não é exactamente assim, havendo uma camuflagem perfeita, intencional, manipuladora do que está frente aos nossos olhos.
É manifestamente  um trabalho de índole social e política, que desmistifica a fluidez, a incerteza, a desvalorização e a insegurança da sociedade onde  hoje se vive.
Desmistifica, em suma, os valores de uma sociedade, que por valores reais já pouco se norteia !...
Uma sociedade "líquida" e escorrente, como actualmente se denomina ...
 





Anamar

sábado, 14 de dezembro de 2019

" O ANTI - NATAL "






Estamos na "tal" época ...
Se pudesse, emigrava.  Se pudesse, fechava a toca e hibernava.  Se pudesse, fazia-me de morta ...

Ontem tivemos a última sessão de 2019 do Clube de Leitura que integro.  Uma reunião mensal em torno de um livro, de uma mesa de vitualhas, de conversa jogada fora, mais ou menos oportuna, com maior ou menor interesse, em torno da obra, com ou sem autor presente.
Ontem o tema não se debruçava sobre nenhum enredo publicado.  Acordara-se que cada participante levaria algo sobre a quadra que atravessamos.  Algo seu, ou algo de outrém, que escolhera a propósito.
Em torno do Bolo Rei, Bolo Rainha, Tronco de Natal e azevias, cada um a seu gosto, compartilhou a escolha feita.
Nenhuma pachorra me acometera.  Para rabiscar qualquer coisa ... poema, texto ... sei lá !
Escolhi Gedeão, químico como eu, homem de ciências ... mente aberta e racional.  "Dia de Natal" ... o poema.

Mais do que amorfa, irritado é o meu estado de espírito.  Cansada de tanta ficção, hipocrisia, desencontro ... Saturada de tanto faz de conta, de tanta performance barata, que de original nada já tem.  Farta de ter que tomar o barco sem nenhum resquício de vontade, sem nenhum sopro de vento adjuvante, só porque a onda alterosa avança e leva tudo adiante, sem que consigamos escapar ao despautério.

Não me venham com a teoria familiar, do encontro, da partilha, da vivência romântica de corações em uníssono.
Não me venham obrigar a achar que só porque nascemos do mesmo tronco comum, herdámos a felicidade suprema de falarmos as mesmas linguagens, herdámos a tolerância do reencontro nas diferenças, a aceitação das divergências em cada um, na vivência da paz...
Não me venham com tretas, porque o meu tempo de ingenuidade já passou há muito, e as dores da vida, há muito também, me retiraram a bonomia do presépio de Belém.
Natais desses, santificados e sob medida, só terei tido na primeira infância.  E ainda assim, porque me concedo o benefício da dúvida, na análise de cada lembrança remota que me deixaram.  Talvez não tenha sido exactamente dessa forma, a versão doce, colorida e aconchegante que a memória já difusa pelos anos, me traz ...

Hoje, rumaria à Lapónia, com ou sem auroras boreais, para pular no calendário os dias necessários a apagarem-me no peito as mágoas, as lembranças doídas, as ofensas, as saudades, o cansaço e esta violentação que me sinto, de ter que fazer de conta que a alegria, a concórdia e a felicidade que advêm de teorias irreais, como se genéticas fossem, nos caem obrigatoriamente no prato, juntamente com as filhós, o arroz doce e as rabanadas.
Porque todos reconheceremos que tudo isso não passa de um tremendo e intencional sofisma ...
só porque Dezembro traz inevitavelmente consigo esta travessia no deserto, de que não conseguimos escapar !
Parece haver uma concertação do tipo: é Natal, ficamos todos bonzinhos e vamos brincar de sermos felizes !...

A minha cota de tolerância decresce inversamente ao avanço dos tempos e das vidas, com a confrontação face às vissicitudes progressivas do dia a dia, com o desencanto expectável perante tudo o que já nem surpresa constitui, dos posicionamentos, atitudes, indiferenças e distanciamentos de quem, nataliciamente falando, não seria suposto ...
À semelhança de todos os artefactos da época, também os meus sentimentos e emoções, jazem mudos, aferrolhados no armário, há já demasiados anos ...
É assim uma espécie de pirraça ou contestação que faço ao determinismo dos tempos ...

Entretanto, tento ser objectiva, fria e pragmática.  Entretanto, tento varrer para debaixo do tapete, as penalizações, as culpabilidades, as inseguranças, as dúvidas e aquela maldita tendência de achar que algures na vida, seguramente errei ... e muito.
Esquecendo que afinal, todos não somos mais que erráticos humanos, tentando acertos, à custa de insucessos !...

Bom ... exorcizar os fantasmas  impõe-se, nesta recta final de trezentos e sessenta e cinco dias que, inevitável e castigadoramente, exige balanços ... sempre exige balanços.
Para que, pelo menos interiormente, alguma paz nos invada e consigamos rumar, mais ou menos incólumes, a mais um ano que aguarda ao virar da esquina, a sua entrada triunfal !...


" Dia de Natal "

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

António Gedeão

Anamar

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

" BOM DIA VIETNAME "




O melhor de uma viagem, dizem, é o regresso a casa !
Concordo, concordei totalmente desta feita, em que duas semanas me afastaram aqui do nosso torrão à beira mar plantado.  Foi uma viagem sem dúvida espectacular, até porque fora eu que a havia elegido, mas muito exigente e consequentemente cansativa.
O oriente uma vez mais me acolheu, pois a filosofia e as histórias de vida daquelas gentes, sempre me são fascinantes e apelativas.
Já por lá andei em muitos destinos, e em todos eles, a alegria, o desapego, a inexigência, a bonomia com vidas quase sempre precárias e sofridas, maravilham-me.
Efectivamente, o oriente nada tem a ver com os princípios e os valores que no ocidente norteiam as nossas existências.

O sol desperta muito cedo e adormece igualmente cedo, pelo que, na tentativa de se rentabilizar o tempo, a "alvorada" frequentemente ocorria entre as 5 e as 6 da manhã.  Dia após dia.  Sem pausas além das utilizadas para as refeições, sempre em locais e restaurantes espectaculares, foi um "non stop" permanente.
A Península da Indochina é constituída no sentido estrito, por três países absolutamente particulares, paisagística, social e historicamente falando : Vietname, Laos e Camboja.
Três países sofridos, com marcas recentes e indeléveis de tempos injustamente carrascos.  Mais injustos ainda, se pensarmos não ter sido este conflito na realidade, mais do que um ajuste de contas entre os dois monstros políticos, Estados Unidos e Rússia, que mediam forças como sabemos, na chamada Guerra Fria, entre 55 e 75 do século passado.
As marcas da guerra, conhecida como a Guerra do Vietname, que massacrou de igual forma os países vizinhos que serviram de corredor de acesso aos bombardeamentos americanos, existem física e psicologicamente bem visíveis num país que só teve a sua reunificação entre o norte e o sul, em 1975, graças a um político e mentor venerado acima de tudo, na nação - Ho Chi Minh, cujo nome renomeou a antiga Saigão.

Sob o domínio chinês cerca de mil anos, onde bebeu os ensinamentos de Confúcio, pensador e filósofo cujos valores persistem na sociedade vietnamita até hoje, posteriormente sob o colonialismo francês, cujas marcas se reflectem notoriamente  na traça de muitos e muitos edifícios, é, religiosamente um país com uma predominância budista, embora 80 % da população se diga ateia.
A taxa de analfabetismo é muito elevada, as condições sociais muito precárias, com zonas do país onde a emigração, se permitida pelo estado, é a única saída que se configura como meio de sobrevivência.
Não esqueçamos o triste acontecimento recente, em Londres, com a morte de 39 vietnamitas num camião cisterna, que viajavam clandestinamente, em busca de uma chance.  Norteava-os a possível ajuda à família que ficara para trás.
O vietnamita coloca a família sempre à frente das suas opções pessoais.
Os mais jovens residem na casa paterna, e assumem a responsabilidade de cuidadores dos seus progenitores.
Politicamente o país diz-se socialista, e o partido comunista lidera exclusivamente, a esfera política.  É um partido único, com uma assembleia de "cartas marcadas".  Nas eleições pseudo-livres, rodam as cadeiras, previamente escolhidas pelos órgãos superiores do Partido.
A corrupção, os compadrios e os interesses particulares, estão instalados infelizmente.

A aposta na educação dos jovens, em regime espartano com grau de exigência elevada e dura, é uma medida positiva valorizada pelo estado.
Saigão, como quase todas as cidades vietnamitas tem uma super população.  11 milhões de habitantes, numa cidade que parece não dormir.
7 milhões de motos nas ruas, principal meio de locomoção adoptado, desenham um verdadeiro postal turístico  muito particular da vida daquele povo.  Nas motos tudo se transporta.  Desde famílias com quatro pessoas, a toda a panóplia de materiais, em verdadeira ginástica acrobática.
As máscaras cobrem a cara da maioria dos utentes, já que por um lado a poluição é absurda e por outro, a preocupação estética com a preservação da brancura da pele, determina a sua utilização.
O trânsito é caótico, sem regras ou sinais a respeitarem-se.  É caricato o movimento sem rei nem roque, onde passa quem primeiro chega, seja da direita ou da esquerda.
Buzina-se permanentemente, ninguém discute com ninguém.  Há uma bonomia e um respeito muito próprios na condução.  E, não assisti a um único acidente ou colisão !!!
As crianças não usam capacetes.  Quase sempre se posicionam entre as pernas do condutor, em pé, agarradas ao volante da mota.  É vulgar que uma outra, mais velhinha, circule ainda atrás, ou mesmo "ensandwichada" entre os adultos !
A passagem dos peões, na travessia das ruas, afigura-se um "suicídio" para os ocidentais, e a regra é avançar sem hesitações sempre em frente, na certeza de que seremos contornados pelos milhares de veículos ... ahahah
Fechar os olhos e seguir adiante, deverá ser a "regra" a observar ! ahahah

Enfim ... miríades de coisas eu poderia abordar, contar, e ilustrar mesmo ... com algumas das 2800 fotografias que tirei ... 😃😃😃
Estou a prepará-las, antes de as guardar ou exibir para os amigos.
Oportunamente talvez coloque algumas por aqui.

Efectivamente, uma viagem é sem dúvida um investimento cultural, pessoal e humano inexcedível.  É um ganho e um valor acrescentado que guardamos na alma para toda a vida.  São vivências que não se relatam, não se transmitem ... apenas se sentem e vivem !!!






NOTA :  Retirei este vídeo do Youtube a fim de ilustrar exactamente o que ocorre nas ruas das cidades vietnamitas, seja Hanói, seja Ho Chi Minh, antiga Saigão, visto que o Blogger não me permite postar os meus próprios vídeos.  Penso que os mesmos deveriam ser colocados primeiramente no Youtube, mas isso eu não sei !
Anamar

sábado, 9 de novembro de 2019

" VOU "




Mais um Novembro no calendário.
Nasci nele e no entanto é um mês que me atormenta um pouco.  Transmite-me um misto de emoções difíceis de descrever.  Vira-me p'ra dentro de mim mesma, recolhe-me às cinco da tarde, como o dia que se encerra ...
E fala-me, fala-me de tempo e de passados.  Que coisa chata !
Novembro tem datas e memórias que saltam da profundidade do existir e escarafuncham-me a alma. Ainda que eu não queira.
Plantam-se-me na cabeceira como um vaso de cardos a atormentarem-me o sono.
Como uma mosca impertinente e invasiva, Novembro não respeita o aqui e o agora. Sendo que o aqui e o agora é o que vem depois do existir, em tempos que foram meus ...
Agora tudo parece demasiado impessoal e distante ...
Há escorrências do coração que não se estancam.  E quando nos pensamos apaziguados ... não é nada disso.
Novembro tem datas demais !
Novembro  tem  as  saudades  que  tombam, tantas  como  as  folhas  do  Outono  que  o aninham ...

E vou embora.  De novo vou buscar lá fora, longe das rotinas das coisas e das pessoas, num anonimato ou clandestinidade cómodos, uma tranquilidade e um distanciamento que os lugares e as memórias me não permitem por aqui.
Esta demarcação temporal dos anos, neste corrupio vertiginoso sem parança, lembra-me a cada momento da efemeridade da condição humana.  A celeridade com que os meses nos desfilam no calendário, a precariedade de certezas e seguranças, fazem-nos sentir a cada momento, com uma fragilidade sem tamanho, como se caminhássemos em arame sem rede protectora.
E a passagem dos anos, e as limitações que acarretam em termos de saúde física e mental, consciencializam-nos para a certeza de que os prazos de validade se nos escoam por entre os dedos, e  de que estamos mesmo a cumprir simplesmente um ritual de passagem ...

Vou p'ra outro mundo, outras civilizações, outras gentes e outros costumes.  Vou lá para os lados onde o sol nasce, onde os cheiros dos trópicos e o calor de dias com outras cores, nos afagam a alma.
Vou para uma terra com palavras que não conheço, com sabores que desconheço e com um desapego e uma espiritualidade que sempre me tocam.
Vou buscar silêncios ... talvez.  Vou buscar ecos nesses silêncios.  Vou ao encontro da genuinidade dentro da simplicidade.
Vou recarregar a alma, no conforto do reencontro comigo mesma, imergindo em multidões de seres.
Vou olhar as cores, beber a brisa adocicada das terras quentes, afundar a alma no azul transparente de águas mansas e escutar os sons.
Vou ... porque há tanto mundo a conhecer por aí ... e eu só tenho uma vida.  Uma vida curta, mas uma ânsia desmedida !...
Vou ... talvez simplesmente, em busca de mim mesma !...

Anamar

domingo, 3 de novembro de 2019

" A LENDA DE SANTO ANDRÉ "



É Dia de Todos os Santos.  Todos menos um ... dizia a minha mãe.

A minha mãe dizia muitas coisas.  Aliás, costumava dizer : " Vocês um dia vão lembrar-se muito de mim, por causa destas coisas que eu digo ..."
Não as registei. Achava que a memória não iria atraiçoar-me nunca, e que de todas eu lembraria.  Eram histórias, ditados, vivências passadas ao longo dos tempos.  Era um repositório da sua sabedoria de velha, mulher simples, que contava como era, o que era ...
Eram histórias de vida, da sua vida, mas também das tradições e da cultura do povo a que pertencia, lá, no Alentejo interior ...

Mas o tempo ... sempre o tempo se encarrega de contrariar o que tomamos como certo e seguro.  E se de algumas histórias, narrativas, frases, memórias repetidamente lembradas, eu ainda recordo, muitas delas perderam-se numa espécie de túnel de nevoeiro que atrás de mim mostra o poder do esquecimento.  E lamento-o profundamente, pois dou comigo a citá-la constantemente, tal como vaticinou.

O dia que hoje se comemora, o feriado que hoje se vive, festeja um evento religioso mas também pagão, que atravessa culturas, épocas e credos.
É vivenciado pelos cristãos, sejam católicos, ortodoxos, anglicanos ou luteranos.  É uma festa celebrada em honra de todos os santos e mártires, conhecidos e desconhecidos, perseguidos pela sua fé, conceito que se alarga aos que entregaram toda a sua vida a Deus, fazendo da mesma, uma oração, testemunho e fé na paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
A comemoração regular deste dia remonta ao ano de 609 ou 610 d.C. com o Papa Bonifácio VII, para recordar todos os cristãos que tinham sido perseguidos e mortos pelos romanos, nos primeiros anos da Igreja Católica.
Em 731-741 o Papa Gregório III dedicou uma capela, em Roma, a Todos os Santos, todas as pessoas que haviam vivido uma existência pia, de acordo com o Evangelho, e ordenou que eles fossem homenageados no primeiro dia de Novembro.

O 1º de Novembro já era marcado em algumas culturas por festas dedicadas ao início do Inverno, época em que a natureza morre. Por toda a simbologia que associa a morte à fertilidade que nessa altura inexiste nos campos, seria naturalmente neste período do ano que se centraria a simbologia ligada à morte, seja o Dia de Todos os Santos, seja o dia seguinte, o Dia de Finados.

Na cultura Celta celebrava-se o Samhain, festividade pagã de que pouco se sabe, a não ser que se centrava exactamente na ideia de morte associada ao rito agrário.  Começava o Inverno, morria a natureza, até que de Abril para Maio, a natureza ressurgisse na sua capacidade geradora de vida.
Era, por assim dizer, o fim e o início de um Ano Novo.
Os mitos Celtas giram em torno do que acontece na Natureza.  O Inverno, a Primavera, o Verão e o Outono, associam-se intimamente ao seu nascimento, crescimento, decadência e morte.
A noite de 31 de Outubro, vivida como o Halloween, dia das Bruxas e das entidades do Além, representa um rito de transição entre a Vida e a Morte, em que se acredita que é esbatida a distância entre os dois mundos, e em que existe uma aproximação sentida, entre nós e os que já partiram .

Dias antes do Dia de Todos os Santos, já a frase da minha mãe sobre a festividade, me martelava a cabeça.  "Todos os Santos menos um, que chegara atrasado ?!... "
Cheguei a falar disto a pessoas amigas, que nunca tal haviam escutado ...
Atrasado onde ? Porquê ? Que Santo ?...
Por que não apontei os contornos desta lenda, ou tradição popular ( que acaba virando "lei", como sabemos ) ?

E, pode parecer estranho ou ridículo, mas sentia-me angustiada por não lembrar  de nenhum modo, a descodificação deste quebra-cabeças.  Não por ele, em si mesmo ( que não deixava de achar curioso, contudo ), mas pela percepção clara da implacabilidade do tempo e da forma como ele apaga as memórias, turva os trilhos e larga uma poalha de neblina sobre as pessoas, as vidas, e as histórias ...
Já fora à Net vezes sem conta, tentando que o Google em alguma busca mais feliz, me respondesse ...
Em vão.  Totalmente em vão.
Muita informação histórica, religiosa e pagã ... mas, infrutífera face à minha pueril questão...

Na noite de Halloween, já deitada na cama e em silêncio no meu quarto, voltei a "encompridar" o pensamento e a lembrança, até onde o cérebro mo permitia, espremendo o mais possível os retalhos de todas as partilhas que ao longo da existência mantive com a minha mãe, de quem sempre estive muito próxima, filha única que fui ...
Voltei à Net sem expectativa, e ... levei, absolutamente, um soco no estômago ...
Incrível ... ali, bem na minha frente, no monitor mínimo do telemóvel, como um recado generosamente dado,  a história da lenda do Dia 1 de Novembro, era contada ...

Santo André, irmão mais velho de Simão ( chamado posteriormente de Pedro, por Jesus ), filho do pescador Jonas, também ele um humilde pescador da  cidade de Betsaida às margens do Mar da Galiléia, que viria a ser discípulo de João Baptista, e que se tornou hierarquicamente o segundo discípulo, dos doze Apóstolos que seguiram o Mestre ao longo da vida, nascera com uma malformação : era coxo.
Conta a lenda, e o povo repete-a de geração em geração, que no dia 1 de Novembro todos os Santos haviam sido convocados para uma festa.  E todos compareceram ... Todos menos um, que por ser coxo não conseguiu chegar atempadamente ao evento.  Era ele Santo André.
Santo André só chegaria no último dia do mês, dia que a Liturgia Cristã lhe dedica no calendário religioso, até hoje.  E por isso, 30 de Novembro é dia de Santo André, coxo de um pé !
Mais diz a tradição, que o tempo atmosférico que se fizer sentir no Dia de Todos os Santos, se repetirá no último dia de Novembro.

Dei por mim a sorrir.
Tenho a certeza que a minha mãe, donde estivesse,  veio dar-me uma mãozinha  e contar-me de novo a história, ao ouvido, com aquele seu ar maroto ... "Eu não te disse que um dia, ias lembrar muito as minhas "doçuras e travessuras" ?..."

Ainda a vi a encostar-me a porta do quarto ...


Anamar

Nota : Este post tem um atraso de dois dias, como se perceberá do texto.
           Foi utilizada informação baseada em estudos do Professor Paulo Mendes Pinto,
           coordenador da área de Ciências das Religiões, da Universidade Lusófona.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

" EM OUTONO DE ALMA "




A hora mudou seguindo esta determinação peregrina que obriga ao reajuste biológico de cada um.  Simultaneamente o tempo atmosférico aproveitou p'ra virar, e assim, cinco da tarde a escuridão aproxima-se a passos largos.
Tem chovido alguma coisa ... migalhas para o que as nossas reservas carecem ... e a abóboda cinzenta e espessa vista aqui do meu "posto observatório" de sempre, é desconfortante e triste.
É uma verdadeira tarde de Outono, aquela com que o dia escolheu para encerrar.
Entretanto, à tangente, fiz a minha caminhada sem que me molhasse.  Umas borrifadelas ainda ameaçaram chegar a vias de facto, mas depois retrocederam.
A mata estava estranhamente silenciosa.  Ausência de utentes e ausência de sinais de vida.  Parecia que por ali reinava um sono reconfortante.  As tonalidades que a pintam neste momento, têm predominantemente a doçura quente das cores da época.  Cores de recolhimento, introspecção e paz.
Os vermelhos, os laranjas e os amarelos  no meio de verdes algo desbotados, proliferam pelas veredas solitárias.  As  árvores despem-se ao sabor da aragem que perpassa, enquanto que os musgos já lhes trepam os troncos.

Eu estou em modo de hibernação ... batimentos lentos e suaves, emoções controladas, entusiasmos e motivações em banho-maria, deslumbramentos ... já eram, correrias e afobações ... não estou nessa !
Olho à volta e, sinceramente, pouca coisa me acelera as pulsações, pouca coisa me acelera o passo e motiva, pouca coisa me espevita a alma ...
Hibernação no seu todo !  Só não durmo como o urso pardo, os esquilos, os morcegos e as marmotas, entre muitos mais.  E há momentos em que verdadeiramente o lamento.
Estou numa espécie de ressaca de vida.  Isolo-me muito, disponho de pouca paciência e também não encontro no dia a dia, nada que justifique eu precisar despender mais.
Até mesmo acontecimentos que me projectavam o humor e a boa disposição aos píncaros, têm neste momento pouco efeito, como uma droga terapêutica a que o organismo já se tivesse habituado faz tempo ...
A vida que se foi fazendo com uma estabilidade precisa até há anos atrás, com certezas e concretizações nos limites espectáveis e previsíveis, de repente ( a mim parece-me mesmo de repente ), deu uma cambalhota insuspeita e inimaginável.
Muitos amigos em situações débeis em termos de saúde e de qualidade de vida, vivem realidades escuras, esgotantes e desinteressantes.
Grandes inseguranças e incertezas assombram e atormentam os dias.  Parece que só se ouve falar em desgraças, em dificuldades, em desencantos e em cansaços arrastados, sem soluções à vista.
Parece que espreito para um mar de náufragos ... cada um esbracejando e esfalfando-se para alcançar uma bóia salvadora ...

Sei que não sou uma optimista por excelência.  Bem ao contrário, sou aquela que quase sempre vê o copo meio vazio ... mas a análise que supra-citei, pouco tem do meu negativismo genético ou inato.
É simplesmente uma observação bem real e concreta.
E por isso, como claras que desandaram do ponto, assim sinto a vida escorregadia, pouco tranquila e fiável. Cinzenta e cansativa.
A incerteza de um amanhã que não se garante, é uma desestabilização interior.
Esbarra-se contínua e sistematicamente em dificuldades, tropeços e inacessibilidades.  A resiliência de cada um, atravessa provas de fogo e testa-se por cada dia.
Sendo que, porque os anos passam, e com eles a condição humana se deteriora, tudo o que enfrentamos carece de um esforço e de uma frescura acrescidos, que já não detemos na sua plenitude ...
E os "sempre em pé" são cada vez mais figuras míticas nesta nossa realidade ... espécies cada vez mais em vias de extinção !...

Enfim ... vive-se por cada dia, ainda que cada dia se envolva nas "nieblas" de que algumas vezes falo, sem visualização de grandes horizontes ou amanhãs auspiciosos ...

E pronto ... não consigo escrever nada melhorzinho.  Se o fizesse, estaria a falsear as minhas emoções, a trair os meus estados de espírito ... quiçá as minhas convicções.
Talvez esta saturação languinhenta do tempo escorrente, melhore daqui a alguns dias ...
Afinal a intensidade de uma dor sempre amaina milagrosamente, no efeito de um Ben-u-ron ... ainda que se saiba ser ele apenas analgésico e não um curativo da causa ...






Anamar