terça-feira, 24 de junho de 2008

"AS CASAS DA MINHA VIDA"





"As casas tinham portas e janelas
As casas tinham braços
As casas balançavam-se por cima das vidas
e continuavam
As casas acendiam lareiras e fogões,
eram casas sempre acesas...
Acordavam e adormeciam sem relógio de pulso
As casas também envelheciam
As casas sobreviviam"...



Li isto algures, escrito por alguém que não eu...e a sua leitura lançou-me uma ponte com um dos meus "posts" anteriores.
Falava eu então, na "atracção" (afinal talvez explicável) por janelas e portas.
Janelas e portas são partes integrantes de casas e casas são parte integrante de gentes e gentes são parte integrante de vidas...e vida é qualquer coisa que me fascina, surpreende, deleita...
As "casas da minha vida"...umas com mais de mim que outras, umas com mais "alma" que outras...

A casa dos meus avós... sem dúvida, aquela, que pela perenidade na minha memória e coração é a mais emblemática, a mais carismática, a que conta mais do que eu fui!!
Passei já por várias casas...dividi-me em afectos e vivências por algumas outras...muitas, se calhar, achar-se-ia, levianamente, terem a "minha cara", como me dizem. Porque as desenhei, as decorei, as sonhei e as vivi...pensa-se que elas ganharam "alma"...mas não!...
Lá, no Alentejo profundo, naquela terra perdida na planície, é que ainda está (noutras mãos, é certo), mas ainda está, aquela que foi a casa da minha meninice e juventude; talvez, se calhar, à época mais feliz da minha vida teve essa casa privilégio de assistir e testemunhar e talvez também por isso, eu a associe ao "ninho" mais intimista, mais aconchegante, mais "berço" que alguma vez já tive.

Era um casarão...

Paredes de meio metro de espessura, caiadas de branco, muito branco, com a caliça por vezes a esboroar-se...chão de tijoleira de barro cozido, não tratado, lavado diariamente à escova; no Verão, para que a frescura de claustro conventual nos aquietasse a alma, da canícula dos mais de quarenta graus lá fora, era regada com salpicos de água, pela tardinha...
A lareira situava-se na cozinha enorme...e não era chamada de lareira, mas sim de "chaminé".
Na "chaminé", cabíamos lá dentro todos , em cadeiras baixinhas de fundo de buinho. Por cima de nós, as linguiças, os chouriços, os paios, dormiam e aguardavam, como peúgas num varal...
O corpo exterior da chaminé, sobre o telhado, tinha a arquitectura e a robustez das chaminés alentejanas...grande e sólida, também caiada de branco...era anualmente escolha das andorinhas, quando a Primavera se anunciava...
E depois, havia um poço no quintal, uma cisterna de água transparente exibindo rochas musgosas no fundo...e avencas, muitas avencas, que com a frescura da água, ornavam de verde as suas paredes.
Ele, ou melhor, as suas águas, eram o "frigorífico" para os "pirolitos" que nos encantavam às refeições. O meu avô "descia-os" num cesto e mergulhava-os permanentemente na água bem gelada, que os tornava ainda mais apetecíveis...
As janelas e as portas daquela casa logicamente não tinham persianas...(isso já é sinal de "modernice"). Tinham fortes portadas de madeira, por dentro, com postigos mais pequenos que podiam simplesmente manter-se com nesgas abertas para que a obscuridade se tornasse inimiga do calor e das moscas, que no Verão sempre procuram a frescura do interior...
Eram bordejadas com cercaduras azuis, o azul-cobalto do Alentejo, que, com o ocre dourado, fazem as cores da paleta da "minha terra"...
E havia uma mesa naquela casa...a "mesa da pedra", assim chamada, por ter um tampo em mármore branco. Era uma longa mesa, para longas refeições, de famílias, "famílias" mesmo...de muita gente, sem pressa, com todo o tempo do mundo, com todas as conversas do mundo, com todas as gargalhadas das famílias...famílias mesmo...
O tempo sempre parava, naqueles almoços...e corria bem mansamente ao ritmo daquelas terras e daquelas gentes.
Naquela mesa de pedra, à volta das favas salpicadas de coentros e boas saladas de alface "em juliana", ou da açorda de bacalhau com as fatias generosas do pão que todos sabemos, ou dos gaspachos refrescantes...sentavam-se as gerações todas; os avós, os pais, os tios que por ali tinham ficado...a garotada em regime de férias...

E agora falta falar apenas da "alma" daquela casa, que hoje, tenho a certeza, tinha a envergadura do regaço da minha avó. Era um colo tão grande, mas tão grande(por entre as dobras da saia preta comprida, do avental que nunca tirava e do lenço que lhe cobria o cabelo todo branco já...) era um colo tão generoso e tão quente, era um colo tão "ninho"...que parece que ainda hoje (eu, que não sou muito mais que catadora de sonhos ou viajante do imaginário), me sinto, como se nele estivesse outra vez, duma forma bem real, recolhida, debruçada, a repousar a cabeça e o coração...


Anamar

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