segunda-feira, 23 de julho de 2018

" VOANDO COM ELAS ..."



Pelas seis da manhã já aí andam.
Elas, as pegas rabudas, os melros, as rolas, as andorinhas ...
Mas são elas que me acordam.  As gaivotas.  Muitas, planantes, ao sabor do vento que aqui é muito, quase sempre.
Não se inquietam no bater de asas.  Deixam-se embalar no baile que se faz lá por cima.  E grasnam, em gritos estridentes de marinhagem.

Acordo e fico quieta.  Sorrio para dentro.

Acho que as gaivotas não pertencem bem a este cenário arrumadinho, de Natureza plastificada.
Sei que estou no Algarve e que o mar aqui é rei.  Aliás, vejo-o a cada esquina ou recanto. Azul intenso, rematando um céu sem mácula.  Ponteado a vezes, por uma ou outra vela branca ...
Sei que estou num condomínio para privilegiados, para uso turístico ou para consumo interno ... de quem pode, bem entendido.
E obviamente todo o contexto tem que ser perfeito ... e é-o, de facto !
Flores, muitas flores cuidadosamente tratadas, de todas as cores, rochas dispostas aparentemente ao acaso, que o não é, relva bem cuidada, árvores e trepadeiras multicores aqui e ali, com intencionalidade ... fazem deste espaço, como de muitos idênticos, oásis para utentes exigentes.
Aqui, claro, praticamente todos falam outras línguas.  Provêm de países não bafejados por este clima abençoado, esta envolvência pródiga e generosa, que é a nossa.
São ingleses e alemães na maioria, gente de uma estranja de névoas, de céus cinzentos e dias escuros.
Gente fria e distante, bem ao contrário deste sul de uma Europa namoradeira de África, que empresta calor, emoção e paixão ao sangue dos que aqui nasceram.

Como dizia, o mar está por perto.  É o coração desta terra, e é dono destes areais.
E  se  o  mar  está ao virar de cada esquina, é expectável  que  as  gaivotas  também  o  estejam ( ainda que eu não ache tão lógico assim ... )
A menos que elas, já mercenárias, sejam também pássaro decorativo para "camone" consumir  (rsrsrs ) ...
Porque, gaivota para mim, é pertença de escarpas, falésias, arribas selvagens.  É pertença de costa bravia, de areais desertos, de ondas que tripudiam, no incessante vai-vem, dos rochedos que massacram ...
Gaivota é pássaro de liberdade total e absoluta, de horizontes sem limites, pássaro de silêncios ... pássaro de maresias, de marulho suave ou agreste ... de solidão e memória ...

E por isso elas me levam ...

Libertam-me deste "caixilho civilizado", e conseguem transportar-me daqui para bem longe.  Lá, onde eu vejo tudo isto, onde eu sinto tudo isto ... onde a Natureza é talhada à séria ...

Junto de mim, Énya solta os acordes da música da sua Irlanda rude, inóspita e selvagem.  Uma Irlanda  de  costas  impiedosas,  abruptas,  açoitadas  por  mares  encrespados  e  alterosos ...
Costas  envoltas  na  magia do indomado, do autêntico, das  neblinas  cerradas  e  misteriosas ...
E lembro " A filha de Ryan", um filme de há muitos anos.  Icónico na sétima arte, inesquecível ... fantástico ...  Visto e revisto ... Arquivado, sempre ...

Será por tudo isto que me sinto nostálgica ?!...

Anamar

" NÃO ADIANTA ... "



A gente adona-se dos lugares, de acordo com o que neles vive.
Sempre digo "a minha casa", "a minha rua", "a minha janela" ... mas também digo "o meu mar", "a minha serra", "as minhas praias", "a minha gaivota" ... "os meus horizontes" ... só porque eles são "aqueles" que têm história minha.
Minha, do princípio ao fim.  Mesmo que já não tenham.  Estão lá, mais ou menos intocados, vertendo momentos pelos poros.
Afinal, tudo passa por emoções.  Emoções reais que vêm do domínio da pele, dos olhos, do coração ... e se fixam como numa película, na mente, para toda a vida.

E é só isto.  Simplesmente isto ... não mais !

O que verdadeiramente não foi emocionalmente nosso, nunca se tornará nossa propriedade de afecto.
Poderá ser excelente, extraordinário, maravilhoso.  Mas não "nosso" !

As emoções sufocantes, as vivências de tirar fôlego, os "coups de foudre" que nos cegam o discernimento, nos aceleram o coração e nos emudecem a voz, acontecem apenas algumas vezes na vida.  Vivem-se apenas em momentos predestinados.  Mágicos.  Privilegiados.
E esses momentos são aqueles que fixam os "nossos lugares" em nós.  Para sempre !
São códigos emocionais inalienáveis e intransmissíveis.
E são poucos.  Apenas alguns.  Contudo indeléveis, eternos, incomparáveis ... insubstituíveis !

E nada disto se explica.
Como quase tudo o que pertence ao domínio do subconsciente, do sentido, do vivido na alma, não adianta tentar alterar, ou acreditar que será diferente.

Passei por muitos sítios ao longo dos tempos.  Como seguramente toda a gente.
Pisei muito chão, olhei muito mar, escutei muitos pássaros.  Deslumbrei-me com nasceres e pores de sol, sorvi todos os cheiros possíveis, bebi todas as cores de todas as flores que estavam lá e mais aquelas que eu inventei.  Perdi-me na luz mansa do horizonte e embalei-me na aragem cálida perpassante.  Vi a transparência das águas, reflectida em olhos meus e guardei silêncios de palavras não ditas, porque não era preciso ...
Toquei pele, mergulhei em corpos escaldantes, rebolei-me na areia quente do destino ou sombreei-me na mata tão inexpugnável quanto a minha alma ...
E tudo isso foi vida.  Ou melhor ... apenas isso é que foi Vida !!!...

A gente adona-se dos lugares, como se adona dos momentos, das memórias, dos retalhos de tempo que conseguimos guardar.  Apenas quando, e só, o coração o determina !
Tudo o mais são parcelas de história, que tentamos rechear como a vida se nos oferece, que tentamos escrever o mais harmoniosamente que podemos ... quando podemos ...
Contudo, nunca com a singularidade do irrepetível, do único ... do verdadeiramente nosso ... do tactuado para sempre !!!

Anamar

domingo, 22 de julho de 2018

" EU "



Sou do desejo, a fogueira
que se acende sem dizer
Sou o raio que se incendeia
à revelia do querer ...
Sou uma cama desfeita
ainda quente de te amar ...
Acalmia ou tempestade
Sou um riacho ou sou mar
Sou a loucura de um sonho
sonhado na madrugada ...
A palavra que não disse ...
numa folha, desenhada
Sou centelha do prazer
que não ouso confessar ...
Sou vulcão que não sossega,
vontade que não se nega
e não cansa de buscar ...
Eu sou a força do vento
do que sopra, e soprará ...
Sou um gemido e um lamento,
guardo os segredos do tempo
que passou e que virá !
Sou o que fui e me fez
a vida, que já passou ...
Sou um sim e sou um não
Certeza ou contradição ...
Nem eu mesma sei quem sou !...

Anamar

quinta-feira, 12 de julho de 2018

" E TER, DEPOIS, MENINOS ... "



" O amor em Portugal continua a ser diferente.   Começou pelos sinos a tocar e um par que se ajoelhava e acabou por um anúncio no jornal e uma fotografia que se devolve ... "

" Antigamente, quando o amor sorria
e os vates o cantavam com talento,
tudo em volta de nós era poesia,
ternura e sentimento !
Os olhos das mulheres enamoradas
brilhavam como sóis,
os cardos eram rosas delicadas,
as águias rouxinóis,
o riso era cristal, a pele arminho
e a vida cor-de-rosa !
Os poetas em tardes outonais
não estavam lá com tretas
descobriam no cheiro dos currais
o aroma suave das violetas ;
a Lua era de prata,
as tranças d'ouro, os lábios de coral
e quatro pés de couve a verde mata
as áleas dum quintal ...
Como era bom, então, viver, amar
e unirem-se os destinos
quando bastava apenas p'ra casar
ouvir tocar os sinos,
por o joelho em terra aos pés do altar
e ter, depois, meninos ...

Mas hoje não arrulham pombas mansas,
nem se murmuram já palavras ternas ;
são outras as andanças
das práticas modernas
e como o Tempo volta a toda a hora
as costas ao passado,
aquele que hoje em dia se enamora
e quer mudar de estado
para seguir, enfim, p'la vida fora
até se reformar divorciado,
dispensa a frioleira
duma aliança d'ouro ou dum bragal,
não faz questão co'a flor de laranjeira,
põe de parte o que for cerimonial,
convivas mascarados,
passadeira e cortejo nupcial
com fatos alugados
que assentam muito mal
e chapéus com grinaldas de florinhas,
em troca dum anúncio no jornal
de quatro ou cinco linhas :
"  P'ra fins matrimoniais, sem mais rodeios,
um homem que não tem bens de raiz
pretende uma mulher com alguns meios,
que faça um lar feliz ;
uma mulher que entenda os seus anseios,
loura ou morena, de qualquer idade,
viuva ou separada, 
esteja ou não esteja em plena mocidade,
ou já recauchutada ... "

Diga o leitor agora, francamente,
com a sinceridade habitual,
se continua ou não a ser diferente
o Amor em Portugal ... "

                     V. M. S.



Estou a desfazer a casa dos meus pais.  Paulatinamente ... ao sabor da força e da coragem.

Afinal, foi casa de uma vida, carregada de histórias, de sombras e memórias.
Custo a mexer-me.  Quero e pareço não querer fechar definitivamente aquela porta, já que as janelas estão fechadas há largo tempo.
Tudo me tem passado pelas mãos.
Quando se desfaz uma casa, as coisas sabidas e impensadas nascem como cogumelos, das gavetas, das estantes, dos lugares que não frequentávamos.
Se nas nossas casas, isso acontece, imaginem em casas que não foram exactamente nossas ...

A minha mãe, num afã de afecto e saudosismo, tudo parece ter guardado :  o registo das minhas notas do colégio ao liceu ( e de outras colegas também, para ter bem a certeza, por comparação, que eu havia sido a melhor aluna da turma ... rsrsrs ) ... fotografias aos montes ( de caras conhecidas e de muitas outras que não identifico de nenhuma forma.  A maioria, a preto e branco ou a sépia, atestam bem a época a que respeitam.  Cavalheiros com bigodes façanhudos e respeitáveis, chapéus e raposas nos ombros de ignotas senhoras ... criancinhas com folhos e touquinhas ... ou completamente nuas, repousadas no cetim do fotógrafo de ocasião ... ), registos de actos públicos  como certidões, contratos, cartas de condução caducadíssimas, bordadinhos feitos por mim no colégio, mais tarde nos lavores femininos já no liceu ( logo eu que não fui dada a prendas domésticas !... ), rendas iniciadas e jamais acabadas ... quilos de cartões de felicitações por aniversários, Natal, Dia da Mãe ... pequenos riscos e desenhos feitos nos primeiros anos das netas, versinhos e pinturas feitos por mim e esquecidos em papéis velhos e rasgados, textos já então desabafados ... enfim ... um acervo interminável !

Eu própria, que sempre vivi muito sozinha naquela família curta, de pais velhos, sem autorização para grandes saídas e convívios, ocupava também os meus tempos livres, coleccionando religiosamente alguns tesourinhos da época : fotos dos meus ídolos do cinema e da canção, revistas femininas e ingénuas e recortes, muitos recortes de jornais e outras publicações, que reputava certamente como interessantes, por razões que hoje não descortino ! ( rsrsrs ).

É exactamente aqui que se prende o tema deste meu texto.

Entre toda a panóplia inimaginável e ternurenta, caíu-me nas mãos um pequeno recorte de jornal amarelecido, da década de sessenta.
Não tinha data precisa e está assinado por um, ou uma tal V.M.S.
Transcrevi-o e apu-lo a este post.

É incompreensível, coisa de extra-terrestre mesmo, para as gerações actuais, o seu teor.
As pessoas da minha geração entendê-lo-ão, certamente, e lembrarão que o mesmo respeita ainda assim,  já a dois períodos cronológicos distintos .
Ri-me ao lê-lo. O "naïf" do seu conteúdo, revelador de valores sociais, familiares, pessoais mesmo, bem característicos de tempos idos, é duma ternura imensa, duma ingenuidade quase infantil, que nos dias de hoje, lembra uma historinha inverosímil ...
Pela curiosidade e por se tratar de um apontamento literário praticamente humorístico, resolvi trazê-lo a té aqui.

Pergunto-me então, o que escreveria hoje ( certamente escandalizado até à medula ), o ou a  V.M.S. se pudesse deitar um olhar sobre a actualidade, e sobre as formas como se vive nas sociedades actuais, à luz dos costumes, das revoluções sociais, tecnológicas e todas as outras nossas conhecidas e com as quais já nem pestanejamos ... o famigerado " amor em Portugal " ?!...



Anamar

domingo, 1 de julho de 2018

" FIM DE FESTA "...



Detesto despedidas, partidas, portas fechadas, janelas cerradas ...

E hoje é véspera de partida.
O Príncipe ficará exactamente como é e será, ao longo das eras : selvagem, doce, estonteante na beleza com que se veste, emocionante na simplicidade com que acolhe.
Os rochedos de basalto duro, apenas se irão desgastar mais e mais, e novos retoques na orografia surgirão, no preenchimento das faltas.
As areias continuarão dançando, vergadas ao sabor das marés ... para cá e para lá, incessantes ...
A floresta morre e renasce.  Por cada dia, novas flores, novos frutos, novas árvores nascerão e morrerão sob um sol de equador que mais acarinha, que castiga.
Os coqueiros da beira da praia, como anciãos cansados, dobram-se lentamente, até beijarem as águas.  E um dia, desistentes, irão com elas mundo fora, contar histórias para o outro lado da Terra !
Os pássaros também cumprirão os seus desígnios.  Sem dúvidas ou perguntas.  Apenas, cumprindo-os.  Ano após ano, enquanto for ...
O mar será manso ou encrespado.  Continuará azul, verde ou prateado, consoante o céu se adorne e as nuvens viajantes ou adormecidas, o determinem ...
O sol fará as negaças de um amante que ora se dá, ora se ausenta, sempre embevecido ... e a chuva tropical, quente e forte, abençoará a terra úbere e parideira ... E sempre será certa, quando a gravana passar ...
As luas que se sucedem, tornarão em dia as noites silenciosas e escuras, onde o ponteado estelar é um bordado de pé de flor, a desenhar os céus ...
As crianças crescerão, mas continuarão a sorrir.  E novos meninos encherão os terreiros, sob o coqueiral e no chapinhar dos charcos.
E estarão descalços, rotos, sujos e ranhosos ... mas continuarão com alma de meninos ...

Vou partir.
Amanhã, o Príncipe ficará para trás ... na cauda do avião de hélice que me vai levar,  na esteira do barco da saudade já, que deixarei no mar ...

Detesto despedidas, partidas, portas fechadas, janelas cerradas ...
Não sei se algum dia volto.  A vida, crepuscular, poderá ou não permiti-lo.
Mas os pores de sol que bebi por cada dia que o vi deitar lá longe na linha do horizonte, rendida à magia e ao fascínio de uma África genuína, pura e autêntica ...
As carícias a que rendi o meu corpo nu, nas águas quentes, doces e mansas, como nos braços do homem que é só nosso e a quem nos entregamos na volúpia do abandono...
Os cheiros  fortes, penetrantes e únicos que devassam e  grudam na pele, no corpo inteiro e na alma ...

Todos esses  ficarão para sempre na caixinha das emoções, no recôndito de mim mesma, em mim tactuados com as cores e o sal desta terra única !
Ficarão afinal,  na eternidade da curta e precária temporalidade humana !!!



Anamar

quinta-feira, 28 de junho de 2018

" CRÓNICAS DE VIAGEM - OS PUTOS "




Os putos do Príncipe são putos, simplesmente ... crianças iguais e  diferentes de tantas outras de qualquer lugar do mundo.

Os meninos do Príncipe têm uma ingenuidade absoluta no olhar, uma alegria imperturbável presente, uma dádiva esbanjada para com todo  e qualquer um que chega, de longe, e lhes dispensa uma atenção.
Interrompem então a brincadeira que se faz na terra batida, na beira da areia, na sombra das árvores.
Um pneu velho, uma tábua com rolamentos, de carrinho improvisada, um nada qualquer que vira tudo na cabeça de meninos que não têm brinquedos, faz uma festa.
Rotos, sujos, descalços, ranhosos, os meninos brincam simplesmente com eles mesmos.
E riem, riem muito !
Os rostos são do chocolate da terra, e a alvura dos dentes, lembrando a rebentação das marés, ilumina-os no riso rasgado.

São muitos.  São bandos de pássaros livres a voejar ...
Todos são irmãos, primos, ali nascidos, ali partilhados para toda a vida.
Juntos esfolam os joelhos, juntos dividem o pedaço de pão ou da guloseima quando calha.
Juntos olham os irmãos menores, enquanto as mães lavam nos charcos, e juntos carregam à cabeça vasilhas de água, desde a fonte onde ainda não secou, para as precisões da casa.
Acima do que podem.  Acima do razoável.  Como gente grande.  Como gente adulta.
E juntos irão para a escola, pelas manhãs ... já limpos e asseados !

Adoram fotos.  Uma e outra, e mais outra, numa alegria esfuziante e incansável.
E os rostos acendem-se e  gargalham  incrédulos,  quando  se vêem  no registo  das  máquinas ...

As crianças do Príncipe pedem lápis, cadernos, borrachas ... como quem pede tesouros.

Não têm nada ... e não sabem que têm tudo !!!...




Anamar

" CRÓNICAS DE VIAGEM - IMERSÃO "




Conhece-se bem o pessoal recém-chegado à Ilha.

A euforia do primeiro "encontro" ao vivo, pela manhã do dia da chegada, salta nos rostos, nos risos fáceis, nas gargalhadas que reflectem a boa disposição de quem se depara com uma surpreendente maravilha.
As fotografias multiplicam-se nas câmaras, nos telemóveis, numa urgência de disparar pelo mundo de cada um, o espanto da novidade : "acabámos de pisar o Paraíso " !...
Cada canto é um pormenor singular, cada flor, cada recorte da paisagem, cada nesga de céu ou de mar, espreitada mais daqui ou dali, é sempre nova e dará lugar a um registo notável .
E corre-se o risco de o fotografar dez vezes, cem vezes ... que sempre será a primeira vez !...

E é como uma primeira vez que se arquiva nos olhos, no coração e na alma.
Porque o que fica na memória da máquina não tem nada a ver, por perfeito que seja, com o que fica na mente humana para todo o sempre !
Nós gravamos imagem, cor, luz, brilho ... som, claro ...  movimento também, como as máquinas mais sofisticadas o fazem, com fidelidade e perfeição ...
Mas gravamos algo único e particular, que o Homem ainda não conseguiu atribuir a um qualquer aparelho por si construído, por mais apurada que seja a sua tecnologia ... a emoção, o sentimento, aquela coisa singular que nos põe um agradável nó na garganta ou um doce aperto no peito, que nos deixa mudos, a sorrir, ou com as lágrimas em descomando, quando experimentamos uma silente gratidão face à magnânima generosidade com que a transcendência da Natureza e da Vida nos brinda ...
A capacidade da surpresa, do êxtase, do emaravilhamento, só o rosto humano deixa transparecer, só o coração humano é capaz de sentir, só a mente humana é capaz de arquivar !...

E  este  será sempre assim o primeiro dia da abordagem de qualquer um que chega ao Príncipe, juraria !

Depois ... bom, depois é uma doce imersão, calma, quente, silenciosa e muda que rola, que nos toma, que nos envolve e nos confere esta leveza modorrenta, como a melopeia das ondas a espreguiçarem-se pelas areias, ou como o planar das aves lá no alto, vigilantes à sua Ilha.
Depois, é simplesmente a "curtição" de um sonho impressivo e inesquecível, como néctar saboroso que vai descendo sem pressas e nos imerge mais e mais, conferindo-nos uma plenitude que nos vai tirando a vontade de um dia vir a despertar !!!

Anamar

" CRÓNICAS DE VIAGEM - DIA ZERO "


" É  sempre muito bom ir !
Voltar tem sentir, cor e cheiro !... "


O meu sonho de que vos falei, concretizou-se.
Regressei do Príncipe há pouco mais de vinte e quatro horas.  E de lá, onde escrevi estas Crónicas de Viagem, trouxe estes textos que partilho aqui neste meu canto.
Espero que os apreciem.


" DIA  ZERO "





Voando a muitos mil pés de altitude, sobre um céu que não é de "carneirinhos" mas de nuvens densas e compactas, rumo a S. Tomé - Ilha do Príncipe.
As nuvens são claras em castelo prontas a farófias,  e o avião fura-as, penetra-as e desce, desce sobre uma floresta cerrada que já se divisa lá em baixo, cobrindo todo o recorte da costa de mar azul.

O fascínio, o deslumbre, o êxtase, esses serão para depois, quando os pés assentarem naquele solo que não possui um espaço que seja, sem vegetação.
São os caroceiros, as ocas, as colmas, as bananeiras ( cerca de nove espécies diferentes ) moandis, eletrineiras, jaqueiras, fruteiras, cajamangas, maracujás gigantes, papaieiras, e tantas outras cujos nomes não retive, não perguntei, ou não me disseram ...
São a pimenta-rosa, a baunilha, as árvores estranguladoras que se adonam de outras, num parasitismo que as mata, os fetos arbóreos, a matabala, o inhame, a mandioca e um sem número de outras espécies a perder-se  a conta ...
E  claro,  os ex-libris da ilha ... os cafezeiros e os cacaueiros, que a tornaram famosa pelos extraordinários  café e cacau, explorados desde o tempo da escravatura, nas roças, agora cooperativas de agricultores, e exportados para o exterior.   
São as flores, muitas flores, em profusão, das orquídeas aos hibiscos, mergulhados na mata de palmeiras e coqueiros.  São as maravilhosas  (e  cartão de visita da ilha )  rosas de porcelana, inconfundíveis e únicas ! 
Em suma, uma pequena Amazónia secular, milenar, mergulhada na história dos tempos, verde, totalmente verde, onde a água abunda, o calor é complacente e a Natureza generosa !
A semente cai no chão e renasce ... no eterno milagre da vida !...

E o mar que mistura os tons de azul aos verdes também, ao turquesa cristalino ... da prata ao branco da espuma batida, bordeja esta indescritível terra, ora adormecido na modorra da quietude, ora acordado do sono e agitado ...
Os pássaros, mais do que se verem no emaranhado da ramagem, escutam-se, ouvem-se nos trinados dos ninhos no coqueiral, rasando as águas em busca de peixe, na beira das marés, na rebentação no areal ...

A brisa corre solta e leve, tão leve e solta quanto o espírito e a alegria das gentes, nestes rostos chocolate que sempre nos sorriem e recebem. "Leve leve" é o lema repetido, numa terra também apelidada de "esquece o stress" ...
O sol põe-se em cada dia por entremeio da folhagem recortada, lá longe, no horizonte que se veste de fogo, com as cores inenarráveis de África, sobre aquele marzão que torna esta insularidade, sem dúvida, uma bênção dos deuses.

A Ilha do Príncipe não se descreve.  A sua "fotografia" não tem atributos que lhe sejam fiéis e justos no vocabulário humano.  Uma só palavra, vedada aos Homens mas adivinhada por estes, lhe assentará na perfeição, ao tentar descrevê-la : se existe " paraíso ", aqui franqueamos a sua entrada !!!

Anamar

domingo, 17 de junho de 2018

" SONHO ANTIGO "




O Príncipe foi um sonho antigo.
Há quatro anos fui até ao equador, atravessando-o com um pé em cada hemisfério, na minha visita pela primeira vez a S.Tomé e ao Ilhéu das Rolas.  O Príncipe ficou então adiado até melhores dias.
Agora irá concretizar-se, penso.

África é algo muito especial para mim. É um continente mítico e místico que não tem nenhum outro que se lhe iguale. As cores são únicas, os cheiros são inolvidáveis, os sons inesquecíveis ... os silêncios, também ...
Os povos são muito particulares, na sua simplicidade, na sua alegria, na humildade com que aceitam a vida ... aquela vida tão precária que detêm, aquele tão pouco que é a existência que lhes coube ...
Têm a terra com toda a exuberância com que a natureza a prodigaliza, têm aquele mar, aquele céu, aqueles ritmos com que se embalam, têm o vento que corre pelos coqueirais, os cantos indivisos das aves, as cores dos insectos, a melopeia das ondas nos areais ... tudo gratuito, tudo oferecido generosamente ... e não mais !

Mas parece chegar-lhes ...  Não exigem, não entristecem, não se entediam ... não mostram cansaço, dúvida ou ansiedade ...  Têm exactamente o que precisam, e encaram os seus dias de uma forma "leve leve"... slogan que lhes caracteriza a forma de ser.

Assim era Angola, assim foi Zanzibar,  assim foram as Maurícias ... assim foi S.Tomé ...
África é um continente mãe, a matriz da vida neste nosso planeta, acredito.  Ali tudo parece ter começado, ali, a infinitude dos horizontes em fogo, nos pores-de-sol que não existem em mais nenhum lugar do mundo, garante a renovação eterna da vida, esmaga a ousada prosápia humana, mostra  mesmo aos mais atrevidos, a insignificância daquilo que efectivamente somos ...
Recua-nos com toda a obrigatoriedade, à genuinidade da nossa origem !...

Vou numa ânsia de mergulho.  Um mergulho nas águas cálidas e transparentes, mas também um mergulho na terra e nas gentes.
Busco um reencontro com os meus silêncios de alma.
Procuro beber até ao âmago todas as emoções da voz da terra.  Procuro escutar até às profundezas os recados da voz da mata.  Procuro encontrar o sentido do vai-vem da maré, nas franjas largadas nas areias e nas margens ... Procuro gravar em mim, o riso solto da criançada, a luz que emana dos rostos doces  e tímidos das mulheres que lavam debruçadas sobre os charcos ... Os filhos envolvidos nos panos coloridos,  já dormem, no sobe e desce dos corpos ...

Vou numa ânsia de renovação.  Num recarregar do coração e da mente ... que urge.
Vou, também eu, humildemente, não como protagonista de nada, mas com as mãos bem abertas, o espírito sequioso e desarmado, numa espécie de regresso ao que de mais puro, autêntico e esperançoso, eu tenha dentro de mim ... numa catarse primordial e  silenciosa ...
Vou, inevitavelmente e tão só,  SENTIR África !...

Anamar

quinta-feira, 14 de junho de 2018

" TINHA QUE SER ... "




As minhas "miúdas" aniversariam no próximo 15 de Junho, sexta-feira !  Mania das mulheres sempre terem destas originalidades ... 
Com tantos dias do ano, espaçadas de treze anos, entenderam que o 15 de Junho seria delas !  Excentricidades femininas ... eu diria !...
Significa isto, que enquanto que a Vitória completa os seus catorze anos ( à beirinha de entrar numa idade mais responsável, séria e complicada da vida ... acho ), a Teresa inicia-se nestas andanças de apagar velas, ou vela ... mais propriamente... coisa que ainda não domina.

Desta forma, as minhas duas netas resolveram complicar-nos um pouco mais a vida, porque se uma já quase quer ir à discoteca, ter o jantar com os amigos, numa incipiente abordagem nocturna ... a outra, tem a noite como imprópria para qualquer evento ou comemoração, nem que seja apagar a sua própria vela, porque essas horas se coadunam mais, para chupeta na boca, rabugice de sono e ó-ó na almejada caminha.

Assim, a logística destas coisas fica quase irresolúvel !

Juntar as comemorações, juntando a família e os amigos, seria uma ideia.  Contudo, vem a revelar-se como um feito épico... uma impossibilidade inultrapassável.
Para ajudar à festa, uma vive separada da outra pelo Tejo de permeio.  Margem norte, margem sul, com todo aquele  "emocionante", rápido e fácil acesso à ponte, que todos conhecemos, com dificuldade acrescida ao fim de semana ... e com dificuldade mais acrescida ainda, neste tempo beirando o Verão, com o pessoal sedento de praia, mergulhado que tem estado há tempo de mais, na metereologia desanimadora e pouco generosa  que se tem feito sentir ...

Por isso, nesta minha família de meia dúzia de "gatos pingados", tudo parece tornar-se sempre, gozadoramente provocador e difícil.... se não, mesmo impossível !
Discute-se  ( parece-me que sem qualquer sucesso ), o "onde", o "quando", o "como" fazer para congregar interesses, conciliar vontades, enfim levar a bom porto o que efectivamente seria engraçado entre as primas ... poderem, desde já e vida fora, vivenciar em partilha com todos nós, a comemoração dos seus nascimentos.

Não sei se é o ser humano que é difícil de ajeitar, se aqui se trata sumariamente da confirmação de que não há de facto, coincidências ...  É  que, com mães complicadas na forma como encaram as coisas, duma maneira sempre espartilhada,  musculada e irredutível, cada uma na sua "intocável" óptica, sem lugar a contemporizações, sem corações p'ra grandes cedências e acertos  entre si, ou as raparigas um dia tomam conta da coisa, ou destas "moitas" não sairá "coelho" ... estou em crer !
É muito cedo para isso, mas penso que a "décalage" temporal entre elas, não irá mesmo viabilizar o alcance desse desiderato, haja em vista que quando a Teresa tiver a idade que agora a Vitória tem, já esta provavelmente é mãe de filhos ...
Isto sou eu, a pensar !... ( rsrsrs )

Assim, estamos de novo encalhados num beco aparentemente sem escapatória.  E se vislumbrámos, lá longe, uma luzinha  promissora  por entre as nuvens encasteladas que por aqui persistem em passar, o que nos animou o coração e encheu a alma de auspiciosa esperança, logo o negrume do céu volta a descer e a envolver a nossa realidade, impedindo a concretização do que seria um passo importante na vida de todos nós : a aproximação das "margens" ...

Portanto, estou em crer que ainda não são as minhas "miúdas", desta feita, a conseguirem  pegar a ponta do novelo para o desemaranhar, a conseguirem colocar bom senso na cabeça dos adultos, a conseguirem tornar uma "família" numa família de verdade !!!...
E é pena !

Talvez um dia possam vir a perceber, a importância de certas coisas na vida !...








Anamar

quinta-feira, 7 de junho de 2018

" SILÊNCIO "




O meu pai faria 116 anos há dois dias atrás.   5 de Junho de 1902, o dia "escolhido" para que viesse ver como isto seria por aqui ...
Viveu noventa anos, teve dois casamentos e dois filhos.  Um de cada ligação.
A segunda, sou eu.  O primeiro, um rapaz com mais dezassete anos que eu, nunca privou da minha companhia, já que adoeceu grave e irreversivelmente, o que levou à sua institucionalização num centro médico adequado à sua enfermidade, exactamente doze dias antes de eu nascer.
Lá se encontra até hoje !

O meu pai, já aqui o referi em textos escritos a propósito, foi alguém que eu amei e respeitei ... muito ... Outra coisa seria impensável de acordo com os valores afectivos familiares vigentes, mas sobretudo, porque ao longo da sua longa vida fez por isso, tendo-a norteado, creio, para me criar da forma mais favorável possível ( até porque, digamos,  havia "perdido" o primeiro filho ).
Tendo eu nascido quando ele já tinha quarenta e oito anos, sempre me tratou mais de acordo com o estatuto de avô, do que de pai .
Era desvelado, exageradamente cuidadoso, protector, carinhoso, tendo por mim aquele amor de "pai com açúcar" que os avós detêm ...
Toda a sua vida se direccionou para que a família mínima que nós três éramos, não passasse dificuldades ou problemas acrescidos.

Sendo viajante de uma firma de ferragens de que também era sócio, passava a maior parte do tempo fora de casa e apenas aos fins de semana, ou de quinze em quinze dias, regressava.
Tudo dependia da zona do país onde se encontrava ... se perto ou longe ...  Na altura, vivíamos em Évora, não possuíamos carro próprio, a empresa também lho não distribuíra, já que não havia nunca tirado a carta para o efeito.
Os transportes eram precários à época, e tudo era consequentemente mais difícil.
De comboio a vapor, de automotora, camioneta "da carreira", carruagem ... ou mesmo de burro nos tempos mais recuados ( sempre ouvi dizer ), o meu pai viajou ...
Quando, ir ali ao lado, era coisa de meios dias ...

Uma vida dura, pouco compensada, esforçada e incerta, tornou-o uma pessoa silenciosa.
Com sete anos era marçano de armazém, no Alentejo profundo. Fazia "recados" que lhe pagavam com uma côdea de pão dormido.
Ser o mais velho de cinco irmãos, remeteu-o ao encargo pesado e difícil de se tornar uma espécie de chefe de família, por incumprimento do próprio pai ...
A morte da primeira mulher poucos anos após o casamento e sem que praticamente tivessem coabitado, por doença pulmonar grave desta, que motivou um permanente internamento ... a precoce viuvez com a instabilidade de  ter um bébé a cargo, criado de "andas para bolandas" ... a posterior doença do filho ... tornaram-no amargurado e azedo.  As alegrias, poucas, fizeram dele uma pessoa aparentemente dura, sem que o fosse, pragmática, distante ... como que insensível ... sem sonhos.
Não o era. Apenas não sabia exteriorizar muito mais.
Poderia afirmar sem erro, que o esteio da sua vida foi a minha existência.  Foi poder viver para me / nos proporcionar tudo o que não teve ... vida boa, educação, um futuro condigno.
A sua alegria foi poder assistir à realização do seu desiderato.

Vieram as netas, já então estava reformado.
E agora, com elas, a alegria de um "renascimento".  Agora sim, na vivência do seu real estatuto de avô !

Costumo dizer que o meu pai me atravessou a vida sem se me dar a conhecer.  Sem me falar  das angústias que teria, das mágoas que suportava, dos sonhos que talvez tivesse, do que o atormentava no coração, das suas dúvidas, ansiedades e desejos.
Não lhe lembro o riso ... nunca.  Mas também não lhe lembro as lágrimas que talvez reprimisse ...
Lembro-lhe o carinho ... sempre.  A ternura infinita ...
Foi uma figura silente, que de mansinho, como brisa de fim de tarde, me ecoa até hoje na memória, na alma e na caixinha, aqui bem no meio do meu peito !...

O meu pai teria feito 116 anos há dois dias atrás ...
Entreguei-o à terra, para terminar o seu caminho ... para cumprir o seu desígnio último, nesta morada, para fazer a derradeira e definitiva viagem ... ele, que não foi mais que um caminheiro do destino ... um viajante dos sonhos !...

Anamar

terça-feira, 5 de junho de 2018

" A PASSAGEM "



E há um "portão" que se abre para o oceano ... Uma espécie de cancela que os rochedos definiram, como se de uma porta de entrada se tratasse.
Quem calcorreia a encosta norte da Aguda, serpenteando entre meio de vegetação rasteira brava e bela, chorões, carrasquinhos, urzes e margaridas selvagens, descobre a meio caminho, naquela vereda de pé posto, uma espécie de mensagem sussurrada.  Aquele encontro místico, inesperado, construído pela Natureza, parece querer determinar uma aproximação mítica, mágica e solene, entre o Homem, o Sol, a Lua e o Oceano ... como se um templo ali se tivesse erguido.
Aquela "porta", para mim que a vi e a escolhi, teve o simbolismo inevitável e único, de um ritual de "passagem" !

Afinal, a sul, mas perto, na Foz do Rio Maçãs, se encontra sonolento o Santuário Romano, recém descoberto, de homenagem a estas três divindades, o Templo Romano  "Soli et Lunae".
Crê-se que o mesmo foi erguido em honra do Sol, da Lua e do Oceano, pelos romanos e posteriormente utilizado pelos muçulmanos ... de acordo com os vestígios arqueológicos recentemente identificados e estudados por quem de direito.
Mais tarde, foi ainda ponto de vigia à Barra do Rio Maçãs, que era navegável até Colares.
Enquadra-se ele na mística, vastamente patenteada em todo o lado, pelas terras de Sintra.
Era este Santuário, local de ritos e de culto, numa consagração ao "sol eterno e à lua".
Foi preito de homenagem e respeito  do Homem para com a Natureza e os seus supremos elementos.
Reflecte a pequenez, a humildade e a insignificância face ao Universo. E a sua relação enquanto ser terreno e espiritual.

Este Santuário, é mais uma pegada romana,  ( 27 anos  a. C  ) à semelhança de tantas outras que povoam o território de Cinthya, pejado de mistérios, simbologia e divindades.
As suas primeiras referências remontam ao Séc. XVI, no tempo de D.Manuel I .
Posteriormente acreditou  tratar-se de uma lenda, e só em 2008 veio a ser correctamente localizado, tendo sido então iniciadas as buscas arqueológicas  em 2011, pelas mão do Arqueólogo Cardim Ribeiro, que integra o elenco de especialistas do Museu Arqueológico de S. Miguel de Odrinhas.

Ainda na Praia das Maçãs  ( Outeiro das Mós ) existe o Tholos, conjunto sepulcral da época do Neolítico e da Idade do Cobre nacional.
De uma campa colectiva  acredita tratar-se.  Um sarcófago, lembrando local de vida e morte, sob o mar de areia e chorões que cobre as dunas !...

A própria Vila de Sintra se fixou no chamado Monte Sagrado, e nela e à sua volta, se dá conta também de locais de cultos célticos e turdestanos.
A serra exerce um inolvidável e eterno fascínio sobre os humanos.  Nela, em noites de lua cheia, continuam a realizar-se rituais mais ou menos desconhecidos e secretos, e a sua sacralização  lunar, é uma tónica ... mesmo para o Homem de hoje ...
O Monte da Lua, com os seus  duendes, os elfos, os titãs, as ninfas e as deusas mitológicas, as gárgulas monstruosas, os tritões e os cavalos de vento que nasciam de éguas fecundadas pelo ar fértil da montanha, continuam a ocupar o imaginário colectivo, rico e fascinante !...

Por tudo isto, e por muito mais ... o que digo e o que calo,  o que racionalizo e o que me preenche o espírito e a alma ... escolhi Sintra, lá longe, entre o "sol eterno" e a lua, com o oceano em leito de repouso infinitamente doce, para a "passagem" ... como um navio a navegar na noite, na minha longa viagem !...


Anamar

domingo, 3 de junho de 2018

" CAPÍTULO ENCERRADO "






Hoje restituí a quem de direito, o que por direito lhe pertencia ...
Os meus pais voltaram ao pó, recolheram-se à terra, misturaram-se com a Natureza que um dia lhes deu a vida !
Os dois juntos, que o foram no bem e no mal, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença ... todos os dias das suas vidas ...
Ali, no meio dos carrasquinhos, das urzes e das estevas, de tudo quanto não pede para nascer ...
Ali, no silêncio das falésias batidas pela brisa que vira vento em dias agrestes, que vira ventania em dias de tempestade ...
E os raios iluminarão as madrugadas quando o trovão ecoar na arriba.
A lua seguirá  o sol.  E quando for plena, acordará as pedras, e as estações irão repetir-se ... e a vida morre e renasce ...
Ali, onde o mar brame lá bem em baixo, aos seus pés ...
E todos os dias as marés subirão para depois descerem. E a chuva miúda lhes sossegará a alma.  Agora, uma só.  Indivisível
Onde os azuis dos céus e das águas se confundem em dias de bonança, e em que o sol bafeja a terra, desde o horizonte onde adormece por cada dia ... até à eternidade ...
Ali, onde as aves devaneiam e as gaivotas e os corvos marinhos apanham os golpes de aragem para ir e vir sobre a imensidão ...
Ali, a noite é de breu e o mar, um espelho de prata.  Nos céus as estrelas poalham.  Vénus fecha o crepúsculo e a Polar orienta na escuridão.  Só as nuvens passam em viagem ...

ali os deixei ...

Não sem antes lhes pedir que me perdoassem, por parecer abandoná-los ... Embora eu saiba que ali mesmo, já eles limpavam as minhas lágrimas ...
Não sem antes lhes prometer companhia, quando a hora chegar e a morada me chame ...
Não sem antes lhes agradecer por tudo ... e o tudo foi tudo mesmo, sem tamanho ou limite ...
Não sem antes lhes pedir protecção ... porque eu sei que braço de pai e mãe é do tamanho do universo ... cobre, abriga, embala ... para todo o sempre ...
E coração de pai e mãe, esse não morre nunca, nem vira pó !

A Terra irá recolhê-los, generosamente nas suas entranhas, e a sua voz primordial e uterina chamá-los-á para a matriz que nunca ninguém sabe ou viu, mas que se adivinha e sente, ali, nas escarpas silenciosas e sós, onde o céu toca a terra ...

E dormirão em paz, sem pressa ou tempo.  Porque tempo não existe.  Tempo é coisa dos Homens !
E eles, tê-lo-ão para sempre !
Será chegada a época do repouso e da contemplação ... da quietude e do sono profundo ... finalmente !...

Uma última flor, amarela de luz, ficou com eles ...
Nela, está todo o amor que lhes devotamos.   Ela representa a sua memória viva dentro de nós ...
Porque o AMOR nunca morrerá !

Naquelas falésias imemoriais  que desafiam os tempos, ao contrário do que alguém deixara impresso no muro de pedra ... " AS  MEMÓRIAS  ETERNAMENTE  ALI  VIVERÃO " !





Anamar

sábado, 2 de junho de 2018

" UM CASO DE JUSTIÇA "





Nas minhas deambulações por aqui, abrindo, lendo, relendo ... deparei-me com uma enorme falta minha, perante quem me lê, embora involuntária.
Essa falta exige-me, obviamente, uma retratação e consequente pedido de desculpas.

A página deste blogue onde publico cada texto, exibe em rodapé um item referente aos comentários que cada um queira apor no mesmo.  Sempre olho e quase sempre leio "sem comentários". 
Até porque quando alguém comenta, entendia eu, que deveria ser ali expresso, como algumas, poucas vezes acontece.

Bom, lamento e sempre entendo que a parca interacção entre quem me lê e mim própria, se deverá por certo, ao fraco interesse ou qualidade do que vou postando.
"Paciência"... digo-me, porque sendo eu uma mulher de dialéctica, de tertúlia, de opinião, sempre mantenho alguma expectativa em relação ao feed-back que gostaria de ter.
Mas as pessoas, apesar de visitarem o Filosofices ( o que fica registado ), não são obrigadas a opinar nada, mesmo que o fizessem, como quase sempre acontece, de forma anónima.

Ora hoje, "bisbilhotando" outras insuspeitas funcionalidades do blogue, verifiquei que afinal constam efectivamente, registos de variados comentários, ao longo dos tempos, aos quais, pareço não ter respondido,  sugerindo uma postura incorrecta e desadequada da minha parte. 
Uma deselegância sem tamanho, porque prezo todas as opiniões, mesmo as divergentes, e sempre aprecio os diversos pontos de vista que tornam o ser humano múltiplo e singular.
Fiquei, digamos que pasmada, e de mal comigo mesma.

Apresto-me portanto a pedir aos meus leitores, as mais sinceras desculpas por esta minha "distracção" /ignorância, que parece reflectir sem que o seja, um desinteresse, um descaso, uma profunda incorrecção da minha pessoa.

Não foi esta, claramente a minha intenção !

Mas porque a defendo, acho que a justiça está sempre em tempo de ser reposta !

Agradeço-vos a todos, peço-vos uma vez mais a generosidade da vossa compreensão e tentarei daqui para a frente, manter-me atenta, ser mais cuidadosa e agradecida !

Anamar

sexta-feira, 1 de junho de 2018

" DISSERTAÇÃO "



Escrever é um vício.
Escrever é uma terapia.
Escrever é transportar o sonho além do universo, num voo de ave sem limites.
Escrever é respirar, é saltar a fronteira, é rumar ao infinito.
É falar só comigo ou falar com os outros, e é acrescentar-lhes sonhos, aos sonhos que já detêm.
É chorar para dentro, sem barulho ou esgar.  É rir sem gargalhar, num silêncio por onde as palavras se passeiam.
Escrever traz-nos a alma ao peito e o coração aos lábios. Escrever dá-nos a leveza da borboleta saída do casulo.  Prende-nos às asas das gaivotas que não perguntam rumo. E deixa-nos ir com elas ...
Põe-nos nas mãos o pincel de Van Gogh e nos olhos a acutilância de Gageiro.
Escrever senta-nos ao piano com Beethoven.  Dança-nos com Strauss.
Traz-nos os cheiros incontáveis da fruta madura, dos musgos e das marés ...
Solta-nos o olhar, como o olhar  dos amantes na hora do clímax, quando a fusão os submerge no que não se descreve ... só se sente ...
Escrever é driblar a saudade e ao escrevê-la, exorcisá-la.
É trazer o que já foi ao que agora é, olhando o que será ...
Escrever é lembrar.  É arrancar os mortos ao silêncio do esquecimento, e torná-los vivos, num passe de mágica.
É trazer-me menina a mulher madura, beirando o Inverno da vida ...
É recriar-me.  Reinventar-me.  Tantas vezes quantas eu quiser.
E é dizer-me, só para os que me entendem ... baralhando e voltando a dar  o naipe das cartas, no jogo da vida !
Escrever é dar-me, na maneira mais pura que sei ...

Anamar

terça-feira, 29 de maio de 2018

" VINAGRE E AZEITE "



Tive duas filhas, distanciadas de quatro anos e meio.
Tão diferentes nas formas de ser, quanto o são fisicamente.
Uma é branca, de cabelo claro raiando o loiro, olhos verdes... pele de porcelana.
A outra, morena claro, cabelo escuro, grandes e expressivos olhos castanho amendoado ...
Ambas bonitas. Sou suspeita a dizê-lo, mas tenho olhos e isenção ao concluí-lo.  E já o foram mais, muito mais.
A vida também nelas vai deixando os sinais, inevitavelmente, implacavelmente. Ambas, já nos "entas" ... o tempo não perdoa !

Nunca se entenderam, nem em miúdas, quando as cumplicidades e as conivências contra o "jugo" paterno, determina alianças entre os adolescentes.  Eu costumava dizer, com o devido exagero, que se "odiavam"...
Uma era o cúmulo da desarrumação. A outra tinha brios de método. Quando a primeira já tinha esgotada a roupa limpa disponível e abandonada toda enrodilhada na cadeira do quarto ... recorria, sem permissão, à roupa da irmã, que obviamente a tinha, nas melhores condições de ser vestida ...
Resultado ... discussões épicas, gritarias, cabelos puxados, vergonhosos palavrões e dislates pela boca fora...
Cheguei a ter vizinhos a baterem no tecto, em reclamação do barulho ...
E  já matulonas, com idades para terem juízo ...

Os ciúmes que nunca deixaram de as minar e que perduram até hoje, mães de filhos que já são, sem idade para esses despautérios, agudizaram ao longo das vidas, o distanciamento entre elas, a animosidade, o afastamento, a suspeita sempre presente, do prejuízo de uma em benefício da outra ( por maior cuidado que, conhecendo a situação, eu  sempre tivesse tido nas decisões, nas partilhas,  feitas com uma doentia  preocupação de justeza e equidade ) ...  Os ciúmes, dizia, foram-nas separando na vida. Indiferentizaram-se mesmo.
Nunca tiveram linguagens comuns, valores próximos, interesses idênticos.  Sempre cada uma remou o bote, em caminhos de divergência e nunca de aproximação.
Não rejubilam com as alegrias uma da outra, não falam a mesma língua, não dividem dificuldades.  Não têm as cumplicidades típicas dos irmãos.  Não parecem ter nas veias o mesmo sangue a correr ...
E sobretudo não têm tolerância, capacidade de relativização e perdão.

Personalidades e maneiras de ser difíceis, muito difíceis, cada uma ao seu modo, inviabilizam  um futuro mais auspicioso...  Já não faço nenhuma fé em alterações positivas.
Têm bons fundos, cada uma de "per si". Norteiam-se por valores fundamentais. Guardam dentro de si o que nós, os pais, lhes transmitimos.  Guardam e respeitam .
São boas mães, excelentes e reconhecidas profissionais, ambas ocupando lugares de muita responsabilidade e exigência.
São generosas, como podem, para com quem delas precisa. São solidárias e prestativas.
O problema é entre elas ... sempre e só entre elas.

Recentemente, nos últimos anos, factores exógenos à relação precipitaram uma ruptura total.  Nenhuma cede, e se uma faz uma tentativa de zerar  as mágoas instaladas, a outra, não só não corresponde, dando  um  só  passo  que  fosse  nesse sentido, como  não se disponibiliza  de  coração, para  que isso seja  possível.    E as posições continuam extremadas !
Como tal, como duas "mulas empacadas", ninguém tem a magnanimidade de se transcender, e arrastam as vidas de costas voltadas.

Eu, arrasto a minha com um desgosto profundo que me acompanha e acompanhará ao além ...
A avó que recentemente nos deixou, levou consigo também essa mágoa.  E muitas vezes lhes pediu que se ultrapassassem, para ultrapassarem este estado de coisas.  Em vão !
Só restamos as três, nesta família ínfima que é a minha.  Um dia, restarão as duas irmãs perdidas nesse mundo de Deus ...

É algo muito doloroso que me atormenta.  É um castigo que sofro e não sei porquê !
Vinagre e azeite, dois seres saídos de mim, e que a  vida teima em continuar a separar !

Anamar

sexta-feira, 25 de maio de 2018

" MILAGRE "






Quando o gaio chegou ao meu jardim,
com ele a Primavera regressou ...
só porque p'ra  mim,
o gaio cantou !

E o sol reluziu
e as flores se engalanaram ..
só porque p'ra mim ele sorriu ...
E a minha cama perfumaram !
E o céu, que de azul  sempre é vestido
mais azul ainda ficou ...
e o meu coração entristecido,
alegre se tornou ...
só porque p'ra mim,
o gaio cantou !
O mar que conhecia o meu soluço
nas areias em que a onda rebentava ...
chamou p'ra mim o gaio que voava,
e com ele, a Primavera regressou ...
E então  renasci e acreditei
que o gaio cantara só p'ra mim ...
E que com todo o sonho que sonhara,
outra vez a minha vida  se enfeitara
com  braçadas de alfazema e de jasmim ...   
Espreitei-o poisado no alecrim,
vi-o descansar no lilazeiro,
apanhou uma rosa para mim
e margaridas brancas, do canteiro ...
                                                                       
Tudo se acendeu na Natureza,
tudo cantou à minha beira
como canta a água pura da ribeira ...
Quando o gaio chegou ao meu jardim !...

Anamar

" O TEMPO NÃO AJUDA ... "




O tempo está enfarruscado.  Como eu estou também ... no coração.
Há um desconforto latente e sentido, dentro de mim.

Acordei a sentir-me mais órfã do que nunca.  As saudades da minha mãe, daquela minha mãe, tomaram-me ... Não a de agora, a que relembro nas fotos e vídeos que foram sendo feitos nos últimos anos, como se com eles eu pudesse mantê-la um pouco viva junto de mim.  Como se sequer eles precisassem existir para que isso acontecesse ...
Da outra ... da que foi minha mãe toda a vida e a que em dias como hoje, me aninhava, me amparava e animava ...
Do meu pai também, embora vinte e seis anos já tenham transcorrido.  Dele, não tenho vídeos e as fotos teimam em esbater-se na poeira dos tempos que passam ...
Tenho-o à cabeceira da cama, numa foto a sépia .  Tinha então vinte anos, e aquele também não é bem o meu pai ...

Hoje acordei nostálgica, saudosa, profundamente entristecida.  E desamparada também.  A sentir que as escoras que me suportam estão frágeis.  As âncoras que me agarram, deixam baloiçar demais o meu barco, precariamente amarrado ao cais.

Procuro ir fechando portas, arrumando a vida, queimando as etapas que se prendem a toda a panóplia de coisas que há que resolver, e sempre ficam pendentes, quando o ser humano parte.
É espantoso o número de questões práticas que urgem ser tratadas, para tentar repor  um outro e novo equilíbrio nas nossas vidas ... na vida dos que por cá ainda ficam ...
Procuro por isso virar páginas, porque talvez depois, consiga uma maior paz ... um reequilíbrio, um reencontro com a interioridade da minha dor.   Talvez consiga centrar-me um pouco melhor na vida, prestando-lhe uma maior bonomia e aceitação .

Tudo ainda está estranho.  Irreal.
Prefiro pensá-la cuidando das sardinheiras, na casa dos passarinhos .  Prefiro "vê-la" arrastando as mangueiras pela relva, nos fins de tarde solarengos, para regar tudo quanto por lá estava.  E a maravilhar-se com cada nova flor desabrochada, com cada rebento verde que eclodira e garantia o milagre da Natureza.
Prefiro escutá-la a chamar o seu Gaspar, para que saísse do sol ... como se cachorro lá se importasse com sol !
Prefiro sabê-la a varrer toda a tijoleira, a calçada exterior mesmo, frente à casa, num afã alentejano de limpeza, manhã cedo, por cada dia ... todos os dias ...
Na casa onde, há cerca de um ano, quando a cabeça ainda a não atraiçoara de vez, me confidenciava : " nesta casa eu fui muito feliz ! "...

Quando perdemos um dos nossos progenitores, metade de nós parte também.  Quando o outro nos deixa, a orfandade é total, a desprotecção é completa, o buraco deixado no peito invalida-nos a vontade de viver.  E fica muito difícil continuar o trilho, ainda que essa seja a lei da vida.
A consciencialização de que tomámos lugar na "calha", fica clara aos nossos olhos.  E de repente, parece termos envelhecido irreversivelmente.
Dizem que a dor se abate à medida que a terra baixa.  É uma metáfora que nos simboliza a força do tempo na distanciação às coisas.
Desejaria que assim seja, e que ele tenha clemência e nos favoreça com essa graça.
Até lá, vou continuando por aqui ...

Anamar

quarta-feira, 23 de maio de 2018

" O DESTINO FINAL "





" Pulvis es, tu in pulverem reverteris :  Sois pó, e em pó vos haveis de converter "  - Sermão de Quarta Feira de Cinzas,

Padre António Vieira

Esta citação do Livro do Génesis caiu-me em cima, com toda a acutilância que a situação que atravesso no momento, mo impôs.
Não sei se será, como "soi dizer-se", muito ortodoxo trazer aqui, a este espaço, as palavras que escreverei.
Não sei se será adequado fazê-lo.  Se será sequer aceite pacificamente, por quem me ler ...
Acontece que este espaço é meu, e será legítimo que aqui coloque a expressão de sentimentos, de angústias, de inquietações, de dúvidas, interrogações que me assolam ... pelo simples facto que serão palavras minhas, sentimentos meus, emoções que experimento.
E aqui, como sabem, falo quase sempre de mim para mim, num solilóquio silencioso, numa espécie de "muro", não de lamentações, mas de reflexões.  Aqui, interiorizo-me mais e mais, numa concha de molusco que a cerra ... e exorciso fantasmas, questiono-me, reflicto e julgo-me.
Por isso, estando no recôndito da "minha casa", penso que me será reconhecido esse direito.

Fui hoje buscar as cinzas do meu pai, que aguardava há vinte e seis anos a partida da minha mãe para se juntar à sua companhia.
Neste momento detenho as cinzas de ambos, aguardando de igual forma, que lhes destine uma definitiva morada,
E o misto de sentimentos, de emoções, de desconforto e toda a panóplia de tantos outros sentires, definíveis ou não, que o ser humano possa vivenciar, me assaltam, me tomam, me dançam do coração para a razão e da razão para o coração, num baile que me atordoa, me confunde e me deixa com sensações estranhas e contraditórias, com que não consigo conviver em paz.

O pragmatismo obriga-me a repetir-me que o que ali está, não será o meu pai ou a minha mãe.
Obriga-me a repetir-me, com a formação química que possuo, que aquilo que ali está, é simplesmente o resultado da transformação da matéria orgânica em despojos inorgânicos de óxidos de cálcio, como resíduos minerais dos ossos, os únicos que de alguma forma "sobrevivem" às altíssimas temperaturas.
Obriga-me a repetir-me que o meu pai e a minha mãe estão e sempre estarão, confinados a dois lugares invioláveis : o meu coração e a minha memória.  E aí permanecerão para todo o sempre !

O pragmatismo ... certo, o pragmatismo ...

Porque depois, gera-se todo este misto de inexplicáveis contradições ... E tudo se baralha outra vez.
Os mortos vêm e adonam-se das suas cinzas, e já são outra vez o meu pai e a minha mãe que estão ali ... e chego a falar-lhes ... e olho os potes, incrédula ... como pode ser ... dois quilos de cinzas serem eles ?!  Como pode a vida deixar-nos apenas isto ?!...

E tudo é doentio, estranho e confuso.  E há uma inquietude e uma perturbação atroz, dentro de mim ...

Estarei a ficar louca  ?

Terei que urgentemente os devolver a um lugar de repouso.  A uma última morada.
Penso que só assim o meu coração ganhará paz e alívio.  E sossegará !

À terra ... porque da terra brotamos e misturados nela, reencontraremos a nossa origem primordial, a nossa matriz.
Irei deixá-los no lugar para mim escolhido, quando a minha hora chegar.
Ficaremos miscigenados com a terra, com as plantas, os bichos, olhando o céu, sentindo a chuva e o vento a lapidar os rochedos, pelos tempos que virão.  Vendo o sol a poisar naquele horizonte distante que não termina nunca.  Ouvindo o mar bramir lá em baixo, num repouso doce e embalador ... num destino final de muita paz, adormecidos no meio das cores, dos cheiros e dos sons da Natureza ... nossa mãe eterna !

Anamar

sexta-feira, 18 de maio de 2018

" NIGHT AND DAY "





Há pessoas que têm uma vida extremamente movimentada.
Em tudo o que vivenciam, nas coisas que lhes aconteceram, naquilo que experimentaram, não há um marasmo nem um cinzentismo em ocasião alguma.
Normalmente são pessoas que ao longo da vida conheceram muita gente, percorreram muitos caminhos, viveram as mais variadas situações e sempre têm histórias para contar.
Muitos contactos, muitos locais, muitas etapas da vida, desde a irreverência da juventude ao alcance da maturidade, fazem surpreendentes relatos, alguns mais caricatos que outros, normalmente sempre engraçados, na maioria .  Constituem memórias de  juventude, de tempos escolares, de eventos familiares, de tropa ou ainda profissionais.
Porque mesmo no meio da actividade profissional nem tudo é chato ou desencantatório ... sempre ocorrem acontecimentos que indelevelmente nos ficam, e que vale a pena recordar mais tarde.

Todos  conhecemos pessoas destas, e eu acho-lhes imensa piada, porque  são uns privilegiados animadores de tertúlia, sempre têm a propósito, uma boa história para divertir, um emocionante acontecimento p'ra narrar, sempre estão artilhados para puxar da cartola, um inesperado "coelho" interessantíssimo !
E então, se lhe acrescentarem mais uns "piclezitos" que sempre são tentados a fazer, ou o apimentarem q.b, é um espectáculo !...
Às vezes não se distingue bem onde termina a verdade e começa a fantasia ...

São pessoas com perfis extrovertidos, boas conversadoras, desinibidas e muito simpáticas.
São elas que forneceriam o material mais rico e interessante, para a escrita de memórias ... as suas memórias !

Eu não.
A minha vida, demasiado enquadrada, previsível, com poucas atribulações e desvios do trilho comum, quase sempre expectável dentro do figurino dito de "normalidade", não conseguiu  rechear-se com grande coisa que valesse a pena.
Nunca me relacionei com muita gente, sempre fui pacata, recatada, tímida mesmo, o que me impediu de ter diversificado e enriquecido o meu círculo de relações, por aí além.
Sou portanto, nesta perspectiva, uma pessoa desinteressante !...

Em tempos conheci a Marta.  Já lá vão uns anos.
Era na altura uma mulher só, simpática, cordial, sem ser excessiva nas relações.  Profissionalmente, reconhecida, parece.
Não chamava a atenção, era discreta, sem ser sobranceira tinha um certo requinte na forma como se apresentava. Era pacata, insuspeita.
Adivinhava-se-lhe por isso, uma das tais vidas " enquadradas, previsíveis, com poucas atribulações ou desvios do trilho ". Sem "mácula", digamos.
Por vezes perguntávamo-nos qual seria a real história da vida da Marta ... Inevitavelmente havia especulação e curiosidade ...
Mas não mais.

Entretanto, porque mudei de hábitos diários, perdi-lhe o rasto e deixei mesmo de a ver .

Anos depois, em conversa de café, a propósito não sei bem de quê, a personagem  Marta foi abordada.  Quem falava, parecia estar por dentro e saber o que dizia.  A charada desfez-se.

A Marta, tinha na verdade uma vida dupla.  Muito poucos o sabiam .
Inconformada com uma vivência que não a preenchia, com uma necessidade insaciável de emoção para se sentir viva, farta da tal existência cinzenta, enquadrada, convencional e tradicional, presa a grilhetas morais que a cerceavam, e como um vulcão que a queimava, desenvolveu em si um alter-ego que a transformava noutra personagem.
Os seus dias e as suas noites passaram a ser o avesso e o direito, de uma mulher que inconformada,  procurou o seu destino !

Resolvi apor o título de "Night and day " a este meu post.  Entende-se claramente porquê.
Afinal, ele narra uma  história,  na vida real, da personagem literariamente  fantasiada por Joseph Kessel, levada ao cinema em França em 1967 e interpretada magistralmente por Catherine Deneuve -  "Belle de Jour" !

Anamar