terça-feira, 5 de janeiro de 2021

" CANSAÇO "

 


Lido  cada  vez  pior  com  a  perda ... perda  de  pessoas,  perda  de  afectos, de  rotinas ... de Vida !

A Covid 19 encarregou-se de nos pôr à prova nessa área, testando assim o nosso grau de resistência.  
De facto, uma das maiores dificuldades com que o ser humano se tem debatido e que lhe deixa e deixará sequelas ainda não contabilizáveis, é a supressão dos afectos nas nossas vidas.  A ausência da proximidade, a impossibilidade do abraço, do beijo ou simplesmente do "toque", têm-nos amputado tão violentamente, que parecemos órfãos de nós mesmos ...
Assim, a solidão, a sensação de desamparo, o ensimesmamento cada vez maior, a desesperança e um cansaço acrescido - que acabam se reflectindo no nosso "eu" global - vão-nos  minando, fragilizando, depauperando ... adoecendo !

A pandemia não amaina. Bem ao contrário, como uma onda alterosa e devastadora, avança sobre o areal, qual tsunami que não deixa escapatória.
Eu, dia após dia me sinto mais e mais, sitiada.  Dia após dia sinto, em crescendo, a fobia de um cerco ameaçador ao qual ( e tenho a sensação de apenas ser uma questão de tempo ) não conseguirei escapar, independentemente do cuidado, da responsabilidade, da estrita obediência ao cumprimento da prudência ...
Sinto-me acuada, acossada ... assustada de novo.  Talvez mais ... outra vez !
O cerco é de todos os lados, e se não for daqui, é dali ... É quase impossível evitá-lo !
Sinto em mim, o medo que eu imagino deva sentir o antílope solitário, na savana africana.  A luta desigual contra um inimigo que por vezes não vê, apenas pressente, mas sabe estar lá ... por ali, de tocaia, à espera do momento de "dar o bote"...
Sinto-me entrincheirada, debaixo de fogo, sem poder sequer olhar além dos limites da caverna onde me acoito ...
E fugir?  Para onde?  Não há para onde !...
E o cansaço é galopante.  As panaceias com que tentávamos mentalizar-nos no início da epidemia, já não são eficazes.  Já não surtem efeito.
As auto-ajudas com que preenchíamos os nossos dias, fosse por ocupação imposta por nós mesmos ( escrita, desenho, tarefas caseiras a que começámos a achar imensa piada ) ... jardinar, plantar, ouvir música e dançar mesmo sozinhos ... fosse por comunicação virtual quase permanente com os amigos, família, conhecidos, fosse por iniciativas sociais como quando se cantava à janela em comunhão com os vizinhos ... ou outras ... hoje cansam-nos, já pouco nos motivam, de pouca paciência para elas, já dispomos ...
Há simultaneamente um desinteresse e uma astenia, um desinvestimento, uma indiferença sobre tudo o que nos rodeia e um efeito narcotizante que retira a vontade de qualquer movimento. É como se estivéssemos sob o efeito de drogas entorpecentes, resultado único de cansaço acima do suportável !

Acredito que os que estão nas linhas da frente, em termos sanitários, políticos, sociais, familiares, estejam esgotados. Está-lo-ão seguramente.  Mas têm que reagir, agir, decidir, escolher, determinar, andar ... Andar sempre adiante. 
Como em todas as situações limite, esses, não têm nem tempo de pensar a propósito.  Têm apenas que continuar, até que as forças lho permitam.  Porque têm !!!...
Esgotam-se fisicamente, até à exaustão, mas talvez não tenham hipótese de alimentar ou sequer percepcionar outro tipo de emoções ou sentimentos.  Menos ainda dúvidas ou angústias existenciais ...
Não há sequer lugar para o medo ... não há sequer lugar p'ra desistências ... não há sequer lugar p'ra deserções ... É tempo de agir , custe o que custar ... até cair para o lado ...
São gente ... mas até parecem deuses !!!...

Os que, numa faixa etária da vida vivenciam outra realidade distinta, confinados até ao limite dadas as circunstâncias, com uma expectativa existencial bem mais limitada já, com um horizonte à sua frente sem grande amplidão ou promessa, passam vinte e quatro sobre vinte e quatro horas embrulhados exclusivamente na sua realidade e em todo o teatro de horrores que a comunicação social se encarrega de lhes impingir ... pouco saudavelmente, por cada vez que olham o écran televisivo.
Como esponjas, "bebem" tudo o que lhes chega, e como não convivem, não interagem, não dialogam ... não dividem, não partilham toda a carga negativa que os sucumbe ... adoecem !

Dou por mim a ficar MUITO contente, só porque por acaso desço numa altura em que a porteira lava a entrada do prédio ... Dou por mim a estabelecer um verdadeiro diálogo com a caixa do Continente que me faz a conta, e que sempre achei bem antipática ... Quiçá com a freguesa atrás de mim, na fila ... que não conheço de lado nenhum ... Enfim ... devo estar a enlouquecer aos poucos !!!

Hoje, outro conhecido / amigo de muitos anos das tertúlias do pequeno almoço, nos tempos em que este era tomado religiosamente no café de sempre, numa rotina que achávamos na altura, entediante, desinteressante quase dispensável ... mas que  nos fazia sentir vivos, apesar dos atropelos da vida de que sempre tínhamos que nos queixar ... partiu, foi embora, bateu a porta ... cansou ...
O Rui, o Pedro, a D.Helena que me acenava da janela do prédio da frente ... outros dos quais deixei de ter notícias e outros, dos quais as tive fora de hora ... foram seguindo caminho, tomando rumo, talvez só adiantando-se ao previsto ... Conhecidos, vizinhos, figuras públicas ... rostos que foram compondo a nossa geração ...
Não falo de medos, de angústias ou de dúvidas e ansiedades com os meus ... Para quê ?  
Não falo de morte, embora ela vagueie por todo o lado.  Embora ela povoe os meus dias e assombre as minhas noites ... Tenho medo de falar.  Quem sabe ela me escuta ?! Mas todos a sabemos e a sentimos.  O "cerco" aperta, estrangula.
Há muito que não se diz, só se sente ... Os olhos que sobram das máscaras, mostram-no, claramente. 
Os números que vão queimando a terra à nossa volta, aumentam assustadoramente, diabolicamente ... 
O dia conhecido é tão só o hoje.  O amanhã é uma entidade quase desconhecida.  No amanhã podemos não estar sequer aqui.  É assim com tantos ... 

A gente pode ter que seguir sem ter tempo de recolher a roupa do estendal.  Sem ter arrumado as cartas, os livros, as fotos, os bilhetinhos dos baús.  Sem ter decidido dos animais, antes das luzes se apagarem.  Sem ter emoldurado os sonhos no lugar mais digno da casa ... sem ter dito um até breve aos que ficam por aqui ... 
Pode ...
Vá-se lá saber !!!  
Saber, eu só sei que estou cansada.  Demasiado cansada !

Anamar

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