terça-feira, 26 de janeiro de 2021

" IN MEMORIAM "

 



Hoje o meu irmão faria 87 anos.
E digo faria, porque há quatro dias atrás, resolveu planear o evento de outra forma.  Resolveu que já não era entre nós, neste plano terreno que comemoraria essa efeméride.  E foi embora !
Amanhã a esta hora já terá cumprido o desígnio "tu és pó, e ao pó voltarás" ...

Faz hoje exactamente um ano que o vi pela última vez ...  Depois, veio a Covid e podou os sonhos, a exteriorização dos afectos ... os abraços e os beijos ...
Há um ano, naquela exígua salinha de estar, o Vítor recebeu os presentinhos, os chocolates 
( guloso que só ele ) e os Fofos de Belas, expoente máximo de todas as visitas.  Despedimo-nos, pois era a hora do lanche de todos, e a sala de jantar, pronta, não esperava por retardatários ...
Penso que o levei para lá, na cadeira de rodas, sua forma de locomoção, entreguei a caixa dos bolos à auxiliar para que os guardasse para posterior consumo, beijei-o, disse-lhe adeus, fui-o acompanhando com o olhar enquanto me afastava ...
Nos últimos anos, à medida que envelhecia, o Vítor ficara piegas na separação.  A voz entaramelava-se-lhe, uma ou outra lágrima traía-o, quando mandava beijinhos para as sobrinhas  ou  mesmo  para  os sobrinhos-netos  que  nunca  vira,  mas  cuja  existência  conhecia ... 
Assim como se, apesar da ausência e do distanciamento ... aquela sua família nunca pudesse ser renegada !...

Já aqui falei algumas vezes sobre este meu único irmão, que a vida não chegou sequer a apresentar-me à nascença.
De facto, doze dias antes de eu nascer, o Vítor então com dezassete anos apenas, era institucionalizado numa casa de saúde para doentes mentais, onde viveu até há quatro dias atrás.
Culminando  um processo desgastante e irreversível de busca de solução para uma situação de esquizofrenia desenvolvida na puberdade, com contornos graves e ameaçadores para a minha mãe com quem vivia em permanência, visto que o nosso pai, viajante de profissão de uma firma de ferragens de que era sócio gerente, raramente estava, o seu internamento foi a única solução viável.

O Vítor, nasceu e perdeu a mãe aos dois anos de idade.  Viveu então de boas vontades em casa de familiares mais ou menos próximos.  O pai mourejava pela sobrevivência familiar, pois era simultaneamente amparo dos próprios pais e de mais quatro irmãos.  Isto, no Alentejo profundo  em pleno período da Segunda Guerra Mundial .
Cresceu, como pôde e como foi sendo possível. Estudou até ao actual oitavo ano, e era um jovem normal, sem demonstrar problemas acrescidos.  Praticava hóquei, natação, era um aluno aplicado.
Mas a mudança de idade recrudesceu uma possível patologia genética do lado materno ( o avô materno havia inclusive cometido suicídio, e a própria mãe apresentara também sinais depressivos ).
Foi diagnosticada uma esquizofrenia, como referi, e apesar do nosso pai ter procurado os melhores especialistas da época, o problema do Vítor não minorou.
Camisas de forças, electro-choques e toda uma carga medicamentosa ... a tudo foi sujeito.
Entretanto o meu pai casara pela segunda vez com a minha mãe que engravidara de mim.
Ameaças de morte, atitudes de hostilidade e descontrole, fugas por cima dos telhados das casas baixinhas da aldeia onde viviam, desaparecimento por vários dias, tudo foi vivenciado pela "madrinha" (era assim que lhe chamava),  em fim de gestação.
Como disse, o Vítor deu entrada na Instituição que o acolheu, doze dias antes de eu nascer.

Vivíamos entretanto em Évora.  Anos mais tarde viemos para perto de Lisboa, o que viabilizou e facilitou uma proximidade maior com o meu irmão.
Lembro as visitas, na camioneta do Eduardo Jorge que iam para Montelavar, aos sábados às catorze e trinta.  Lembro a caixa de meia dúzia de bolos que o meu pai escolhia sacramentalmente, para levarmos para o Telhal.
E aí íamos nós, os três.  
A minha mãe sempre chorava ao vê-lo, pois tinha-lhe carinho de filho.  O meu pai era o "durão" impenetrável, que hoje suspeito, sofreria horrores por dentro, mas nunca o demonstrava por fora ... Eu ... bom, p'ra mim era difícil, era fastidioso, era desconfortável ...
Era um afecto de alguma forma institucionalmente imposto, apenas.  Era um irmão de sangue, não era um irmão de criação.  E aquelas  visitas  a  um  lugar  de  loucos  eram  penosas,  confusas, deprimentes, para  uma  criança  primeiro ... depois  para  uma  adolescente !

No Telhal a doença estabilizou. O Vítor manteve ao longo dos anos, uma idade mental de sete, oito anos.  Adaptou-se e assimilou o meio, os padrões, a vida, que passou a ser a sua.
Lá, num outro episódio infeliz, cegou completamente, quando um dos empregados detentor daqueles molhos de chaves com que se franqueiam as portas, fechadas de imediato nestes estabelecimentos, lhe bateu, para acordá-lo, no olho que ainda detinha alguma visão ( o outro fora operado a cataratas anos antes, tendo a operação corrido muito mal ) .
Mas também a isso o Vítor se adaptou.  Usava uma pequena varinha de invisual e percorria todo o espaço sem nenhuma dificuldade.
Limpava a loiça nas cozinhas, contava parafusos e desempenhava outras pequenas tarefas na serração. Quando ainda via alguma coisa, ajudava no refeitório a descascar batatas.
Era humilde, não conflituava, era paciente e respeitador ... fez amigos !

Hoje, o Vítor foi embora.
Penso que estava cansado da vida que detinha.  Passava os dias numa cadeira de rodas, e escutava apenas na televisão, as notícias que passavam.
Tinha fraldas e estava totalmente dependente.  Os relatos desportivos do seu Sporting, também já pouco o motivavam ...
A Covid terá acabado com o resto.  A solidão confinou-o mais, às quatro paredes do pavilhão geriátrico que ocupava.  As visitas foram canceladas por precaução,  
Não sei descodificar o que passaria naquele cérebro doente ... Caíam-lhe as lágrimas quando o beijava ... 
Adoeceu esta terça-feira ... Não me deixou voltar a vê-lo !  Até isso me foi vedado !
Talvez a esta hora já festeje o seu aniversário no encontro com todos os que o esperavam ... Talvez tenha apenas aberto caminho aos que lhe seguirão ...

Vítor, desta vez os Fofos de Belas, obrigatórios quando te visitava, serão apenas memória daquele que tu foste ... para sempre !!!



Anamar

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