segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

" ESCURIDÃO "

 


Vivo apavorada !
Apavorada como penso que não me senti,  daqui a pouco há um ano, aquando do surgimento da pandemia Covid 19 que ensombrou e assombrou o Mundo em que vivemos.

A chamada "primeira onda", que já sabíamos iria encabeçar novos recrudescimentos mais adiante, e muito embora pouco se conhecesse sobre o que realmente atravessávamos, colocou-nos em estado de choque, mas ainda com todas as defesas psicológicas afiadíssimas, deu-nos endurance para a encarar, lutar e esperar com razoável confiança, tudo o que haveríamos de enfrentar.
Foi o período dos horrores de Wuhan, com um vírus desbragado e que em descontrole avançou de oriente para ocidente, varrendo os continentes, sem respeito ou contenção, foi o período pavoroso de Bérgamo, do Palácio de Cristal em Madrid, de Inglaterra, depois Estados Unidos, Índia, Brasil e por aí fora, num rastilho incendiado que desencadeou sucessivamente frentes de fogo incontroláveis, pelo planeta.
Mas foi também  o tempo da solidariedade profunda, o tempo das partilhas, das entreajudas, o tempo de cumprir à risca, numa emergência de confinamento que encerrou o país e o mundo, todas as regras, com o escrúpulo respeitador do medo.  
Foi o encerramento quase total, na preocupação determinante de protecção ao Serviço Nacional de Saúde, para que não se tivesse que experienciar por cá, vivências e testemunhos semelhantes aos que nos haveriam de chegar de outros países.  Relatos de dor atroz, de cansaço sem tamanho, de exaustão absoluta dos "heróis da linha da frente", relatos de partidas sem despedida, relatos de colunas de camiões transportando as urnas dos mortos, num cortejo fúnebre aterrador, relatos de velhos perdidos nos lares sem compreensão do abandono a que pareciam ter sido votados ... relatos de escolha entre a vida e a morte, deste ou daquele, em hospitais onde os ventiladores não chegavam para todos ... em suma, relatos e experiências que mais pareciam tirados de um filme de terror, do que de realidades diárias violentas, dolorosas, mas objectivas !

Mas tínhamos força, foco, determinação e irredutibilidade no propósito de vencer a peste que nos assolava !  Não tínhamos a mínima noção do que nos esperava. Lembrávamos comparativamente tudo o que conhecíamos, lêramos ou ouvíramos sobre a Pneumónica ou Gripe Espanhola, nos fins da segunda guerra mundial, a qual devastou o planeta.  
Tudo o resto nos era estranho, quase inconcebível.  Por que, uma geração que a vida já tanto pusera à prova ao longo dos tempos, ainda tinha que vir a sofrer mais este revés ?!  Parecia injusto.  Era injusto !

Era o tempo de, quando um amigo "caía", os outros o levantarem, de quando as lágrimas  toldavam o olhar, a mensagem, o telefonema, o vídeo ... a palavra simplesmente, eram veículo de apoio, de incentivo, de ajuda.  Foi o tempo de se cantar à janela em sinal de solidariedade, de fazer cruzadas de velas acesas em união com o mundo que sofria como nós, e tantas outras iniciativas, numa comunhão fantástica com todos ...  Afinal, estávamos no mesmo barco !

E a primeira vaga foi andando dentro das restrições e cuidados exigíveis.  Cansaço a dar sinal, todos com a vida adiada ! 
A restauração a meio gás, as viagens quase todas inexistentes ou mesmo canceladas, as saídas de casa sempre sob cuidados, o distanciamento social devendo ser mantido, espectáculos e outros eventos sob cuidados controlados, todos os sectores sociais e económicos a ressentirem-se abissalmente. 
As famílias, tentando proteger os elementos de risco, sem se encontrarem, sem se abraçarem ... sem se tocarem !  Os funerais com número limitado de acompanhantes. Velórios inexistentes.  Lutos que nunca se farão !...
Nada como dantes, um país amordaçado ... o mundo amordaçado !

E chegámos aos fins de 2020 ... o ano que deveria ter sido banido da linha do tempo.  
Antes ainda, haveria o Natal, acontecimento particularmente sensível, em termos familiares.  Tão fragilizados já estávamos, esperava-nos uma quadra triste, fria e distante.   
A pandemia amainara um pouco, os números haviam descido, quase eram sofríveis.  A esperança de podermos contornar, embora com limites, a situação, afigurava-se plausível.  Com muita responsabilidade, com cuidados sempre presentes e sem facilidades, desconfinou-se relativamente o Natal, para se voltarem a apertar as restrições no fim do ano.
Só que esta abertura determinada pelo Governo, pese embora a cobertura do parecer das entidades sanitárias, mostrou vir a ser um verdadeiro tiro no pé.
Penso que os resultados só podem ter surpreendido os mais incautos, detentores de uma boa-fé sem tamanho ...
Com as restrições aligeiradas, um povo cansado, martirizado, desesperançado em larga medida, e massacrado por tanto sofrimento já vivido, inevitavelmente exorbitou ... e os primeiros dias de Janeiro do novo ano, estão aí a mostrar o descalabro dos resultados.  
Os números de infectados dispararam e fixaram-se agora numa média de dez mil por dia, os óbitos vão subindo acima da centena, os hospitais estão sem capacidade de resposta face ao número crescente diário de internamentos, os cuidados intensivos rebentam, transferem-se doentes de sul para norte, deste hospital para aquele que os possa receber, acrescentam-se camas em espaços inventados e inventam-se hospitais onde haja logística possível, os recursos humanos não dão vazão ... o Serviço Nacional de Saúde parece estoirar ... Afinal são pessoas que o escoram ... O caos está instalado !!!

E perante este cenário dificilmente controlável e mais dificilmente ainda reversível, o país encerra totalmente num novo Estado de Emergência musculado, férreo, intransigente.  Aliás, à semelhança de quase todos os países, por esse mundo fora.
Há que baixar os números, de qualquer forma !  Há que conseguir a qualquer preço um "refresh" no seio das comunidades hospitalares !

Vivo apavorada !
Tenho a clara noção que não basta que eu me proteja.  Tenho a clara noção que não chegam os cuidados já rotineiros que não descuramos.  O vírus está por aí, espreitando qualquer deslize, distracção ou facilitismo ... 
Tenho uma filha num hospital de referência, que diariamente encara o vírus em cada rosto.  Que diariamente o percebe em cada expressão de medo ... o sente em cada interrogação de quem sofre ...
Tenho uma neta de três anos, que convive estreitamente comigo ... e estreitamente com a mãe, obviamente ... Não há familiarmente outra alternativa ...
Vivo apavorada !

Esta segunda ou terceira onda ... já nem sei, apostou em ser um verdadeiro tsunami galgando as nossas vidas, derrubando os nossos sonhos, roubando-nos a estrada, escurecendo-nos a esperança !!!  
Até quando ???
Vivo apavorada !


Anamar

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