segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

" LÁ, NO MOMENTO DA VERDADE ..."

 


Um amigo disse-me hoje que a minha escrita é a minha forma de resistência, nos tempos que vivemos.

Cada um tenta, ao seu jeito, criar técnicas de defesa pessoal para a superação da tragédia que se nos abate.  Desde sempre, desde o início da pandemia, há já dez longos meses sem fim à vista, que cada um de nós inventou mecanismos de sobrevivência e superação, dia após dia, noite após noite, em tempos de medos, desesperança e solidão.
Uns pintavam, desenhavam, trocavam brincadeiras ou coisas mais sérias via internet, cozinhavam ( faziam muitos, muitos bolos ), fabricavam pão ... outros dançavam ou ginasticavam 😁😁... jardinavam ( os que tinham áreas de lazer que o permitiam ) ... Enfim, eu escolhi escrever !
Escrever talvez porque esse seja o meu "oxigénio" de vida, porque essa seja talvez a forma de eu exorcisar os meus fantasmas, alienar os meus medos ... dividir também os meus sonhos e esperanças !

Também achei que gostaria de ir escrevendo paulatinamente a história da Covid 19, na primeira pessoa, porque um dia, quem sabe - quando todo o pesadelo tenha passado - eu volte a relê-la, a avaliá-la à distância, a analisá-la, a entendê-la se o conseguir ... enfim, quando fosse bem velhinha a relembrá-la, se a memória então ainda mo permitisse.
Desafiei a Vitória, que escreve bem, para os seus dezasseis anos, para também escrever o que lhe fosse na alma.  Um dia, quem sabe, contá-lo-ia aos filhos e aos netos ... como eu sempre ouvi da minha mãe, sobre a pneumónica, acontecida há cem anos.

E teria gostado de contar coisas bonitas, encorajadoras, que aquecessem os corações, fragilizados e doídos.
Gostaria de falar de uma realidade bem diferente.  Gostaria de falar dos meus sonhos, das minhas viagens, dos êxitos ou mesmo dos fracassos dos meus miúdos, das preocupações inerentes à vida que se fosse fazendo, sem outros atropelos ou sustos.  
Gostaria de falar da minha gaivota, dos alvores da serra aos primeiros raios da manhã, gostaria de falar das arribas, das ondas que vão e que vêm, beijando despudoradamente os rochedos no areal, da terra parideira do meu Alentejo de coração, quando a seara madura pincela de ocre tudo quanto a vista alcança ...
Gostaria de falar dos meus afectos, dos meus amores e dos meus desamores ... porque em suma, todos eles são Vida ! 
E gostaria de esquecer tudo o mais que me rodeia.  Gostaria de ignorar as notícias que me invadem, me entram pela casa dentro sem convite, gostaria de esquecer rostos, números, opiniões, vaticínios e estatísticas ...
Gostaria de conseguir ser um pouco negacionista e poder enfiar a cabeça pela areia adentro ... fazer de conta, de quando em vez pelo menos, que tudo vai ficar normal e que em breve as nossas vidas retomarão as rotinas de sempre ... como as conhecíamos e de como sempre foram ...
Mas não sou capaz !

Eu sei que as pessoas estão como eu, saturadas, cansadas, totalmente stressadas e muito, muito aflitas.  Sei que me dizem ( as minhas próprias filhas o fazem : "estou farta de covid !  Não quero mais falar disso !" ).
Sei que muitos optam pela estratégia de insuflar uma esperança que me cheira a plástico, um pseudo-acreditar  num tão socialmente correcto !  Sei que muitos ignoram e fogem de ler notícias tristes, negativas, menos felizes. Porque o ser humano sempre se defende, correndo as cortinas, para que de lá de fora entre o mínimo possível do que nos assombra.  Sei que o medo fragiliza, incapacita, adoece ... mas também sei que foi por medo, que na primeira vaga da pandemia, quando ainda lhe não conhecíamos o rosto verdadeiramente, nos confinámos em casa antes mesmo do Governo assim o determinar.  Foi por pavor que não ousávamos comportamentos de risco e nos protegemos até ao âmago de nós mesmos ...
E também sei que foi por um mecanismo exactamente oposto, que agora na vaga que nos submerge, nos afundámos e afundamos diariamente.  De repente, habituámo-nos, insensibilizámo-nos, indiferentizámo-nos, anestesiámo-nos ... passámos a sentir ( porque precisamos de acreditar nisso mesmo ), que a nós não vai tocar-nos, e que talvez o diabo não seja tão feito quanto o pintam.
Daí, algum relaxamento de costumes, daí algum laxismo nas atitudes, algum encolher de ombros e negligência.  E chegámos ao que chegámos, estamos como estamos talvez a acordar tarde de mais agora.  Afinal ...  "depois de casa arrombada, trancas na porta" ...

Por esse motivo e nesse sentido, entre a profusão de notícias, de pareceres, previsões, antevisões, estatísticas e ameaças já pouco camufladas ... faz falta "SENTIR" com verdade, sem rodeios, maquilhagens ou paliativos , o MEDO de novo.  O MEDO com todo o seu realismo, com todo o seu horror, com todo o seu semblante aterrador, contudo verdadeiro ... e percebermos que um dia pode mesmo bater-nos à porta ... por que não ??  " O medo guarda a vinha" ... diz o povo .
Somos alguém privilegiado, escolhido, especial, para sermos poupados ??  Não !  Obviamente que não !

Então ouçam COM  MUITA  ATENÇÃO, como é estar lá, dentro de uma ambulância sem sabermos se seremos devidamente acudidos, estarmos lá numa maca com a sentença dos intensivos a bombardear-nos o espírito,  estarmos lá em ruptura total com o mundo que fomos obrigados a deixar cá fora, com o nosso mundo que incrivelmente tivemos que deixar para trás ... com a nossa casa, os nossos animais  ( que será deles ? ), os nossos sonhos ... e os NOSSOS ... os filhos, os netos, os pais, os amigos ... nunca sabendo se aquilo ali, é uma sala de retorno, ou é a antecâmara da partida para nunca mais  ...

Pensem por favor, depois de ouvirem este depoimento que de propósito escolhi para vós, de um médico intensivista, que conta com a frieza, a dureza e a objectividade ... despida do adocicado que gostaríamos talvez de ouvir, como é estar na linha de fogo, como tudo acontece lá, no lugar e na hora da verdade ... e por favor FIQUEM  EM  CASA ... por todos nós e por eles também !!!

Anamar

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