segunda-feira, 10 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 1º EPISÓDIO )

 



Eu vivia numa avenida, no número quarenta.

A bem dizer isto não interessa a ninguém, mas sinto que devo escrevê-lo, porque qualquer dia posso já ter esquecido tudo, não é verdade ? 
E a minha mãe também já cá não está para me refrescar a memória .

Era uma avenida com árvores a ladeá-la.  Bem direitinha no traçado, ligava o Rossio de S.Brás à estação dos caminhos de ferro, lá ao fundo.  Quando as cancelas estavam abertas, podia atravessar-se a linha e seguir-se, estrada fora, em direcção ao Bairro de Almeirim, pelo meio dos campos, das oliveiras e sobreiros, das searas ...
Era caminho de passeios pela fresca da tarde, nos dias sufocantes de quarenta graus à sombra, era pretexto para a apanha das giestas com que os Maios nos brindavam ano após ano ... era destino da apanha da espiga, no adequado dia ...
Esqueci de dizer que era Évora, que eu era criança ainda, que o tempo corria manso e ronceiro e a vida fazia-se pacata.
Vivíamos, quase só eu e a minha mãe, já que o meu pai, que era viajante de profissão de um armazém de ferragens, pouco estava, perambulando pelos Alentejos, a negócio.
A casa, que ainda lá está, com rés-do-chão e primeiro andar, era demasiado grande apenas para nós as  duas.  Tão grande, que eu me assustava com o escuro dos espaços à noite. 
Da "casa de entrada" a que se seguia o vão da escada e mais duas divisões interiores  contíguas, uma delas funcionando como a "despensa", saía uma escada que perto do cimo virava à esquerda e seguia com mais alguns, poucos degraus.  No patamar havia um bengaleiro para os casacos, chapéus de  chuva e o chapéu da cabeça do meu pai que nunca o dispensou, mas quase sempre estava vazio, com uma jarrinha com flores de plástico frente ao espelho, já que a minha mãe achava inestética a roupa "ali pendurada" ...
A escada tinha uma passadeira vermelha escura dum material de cordoaria chamado"cairo" e que continuava por aí fora, pelo corredor onde no cimo a escada desembocava.
 Este era ladeado pelas portas das outras divisões : à direita a cozinha ( frente à sala de estar que tinha um fogão de sala que nunca funcionou na vida ), o escritório do meu pai de novo á direita, com a mobília de torcidos e tremidos ( que ainda hoje tem lugar de honra na minha casa ), frente à "casa de jantar".   Seguiam-se depois os quartos de cama, o dos meus pais à esquerda, o meu à direita, sendo que o corredor se encerrava com mais uma volta à direita, terminando na casa de banho.
As três divisões do lado esquerdo da casa tinham janelas viradas para a avenida, duas eram "sacadas", como se dizia, e a do meio era "de peito" como também se dizia.
Às sacadas chegavam as ramadas, às vezes floridas, das árvores da avenida, e como as flores eram adocicadas, os mosquitos, em descuido, também não me poupavam ...
As dependências da direita confinavam com um terraço, a que chamávamos varanda, onde existiam as cordas da roupa, o tanque de lavar, e muitos vasos de flores com privilégio para as sardinheiras, pelas quais a minha mãe sempre nutriu um desvelo especial.  A cozinha, em vez de janela, tinha uma portada de vidros para o exterior, forma utilitária de acesso à varanda.
A vista que se desfrutava dessa varanda, que como talvez tenham percebido virava para as traseiras da casa, era apenas de telhados intermináveis parecia-me na altura, que cobriam, lateralmente uma serração de madeiras e que encimavam, também a perder de vista, uma garagem de manutenção e guarda de veículos automóveis, com uma pequena bomba gasolineira acoplada.  O acesso a esta garagem fazia-se pela avenida, por um portão largo, situado por debaixo da casa.

Lembro-me que adorava ir para a janela da sala de jantar com a minha mãe, ver o pouco movimento da avenida.  Em frente ficava o Fomento, empresa que eu sabia confeccionar pelo menos rebuçados, e em dias de vento a favor, o cheirinho dos mesmos impregnava gulosamente o ar.  Tinha uma chaminé de tijolo, cilíndrica, muito alta, na qual residia uma família de cegonhas, que findo o Inverno, de regresso do exílio africano, num belo dia amanhecia no ninho vitalício, até aí desabitado.
Quase sempre eu acordava de surpresa, com o característico bater dos bicos, iniciando a tarefa de reabilitação da "casa" que ficara do ano anterior, porque a época da nidificação chegara.
Eu ficava literalmente siderada, fascinada com o seu regresso, sabendo que a partir daí tinha bem frente à minha janela, o recomeço de mais uma "história de amor", em sucessivos e fantásticos episódios.

A avenida era cruzada, já perto do Rossio, por uma transversal ... a Rua Diana de Liz, onde se situa a Igreja de S.Brás, lugar das minhas missas dominicais quando me portava bem, porque às vezes, à sorrelfa, "driblava" o controle da minha mãe e ia namorar para a "Fonte Nova", mais à frente ... um inofensivo fontanário com uma espécie de jardinzinho a contorná-lo ... nada de mais ... 
Com os meus treze anos e hormonas aos pulos, eu e o João, já com dezasseis, filho de um revisor dos caminhos de ferro a viver também na minha avenida mais perto da Estação, aproveitávamos os encontros enquanto podíamos.  O resto eram olhares trocados do alto do meu primeiro andar para a rua, quando ele regressava das aulas ( eu estudava no Liceu e ele na Escola Comercial e Industrial ).
O João Augusto Alegrias Almeida, deu comigo os primeiros passos no amor.  Tudo muito naïf, muito ingénuo, muito doce ... muito romântico !...
A minha mãe lá estava de atalaia, e quando me via na sacada logo desconfiava, e a ordem de "recolha" era imediata !... 😁😁

Na Rua Diana de Liz ficava um pátio, aquela tipologia antiga meio estranha, de habitação precária em que as famílias com dificuldades económicas viviam em comunidade, em casas baixinhas em torno dum espaço comum, como uma praça de terra batida, que comunicava com a rua através dum portão.  Eu gostava de ir até lá, até porque ali vivia a Micaela, uma das miúdas com quem eu convivia.  Na minha avenida, um outro pátio, um pouco acima da minha casa abrigava mais uma dezena de famílias no limiar da pobreza.  Também lá eu tinha amigos.  Nas noites de Verão brincávamos na rua, às escondidas até que a mãe chamasse p'ra dormir ... 
Invejava-lhes a liberdade e a ausência de controle tão apertado que eu tinha.  Eram miúdos que brincavam descalços se calhasse, quase sempre sem brinquedos e em que a rua e a ausência de horários os tornavam pássaros livres e soltos ...
Às vezes calhava  estar na casa da Teresinha Alves Martins à hora da refeição.  Batatas cozidas regadas com um fio de azeite e azeitonas ... E como eu gostava que me oferecessem do repasto !  Nada de peixe, nada de bacalhau ... nada dessas coisas chatas que eu era obrigada a comer na minha casa !...

Memórias inesquecíveis ... histórias avulsas que só quem as viveu as sabe contar ...

Amanhã continuarei ... enquanto me lembrar ...

Anamar

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