quinta-feira, 27 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 6º EPISÓDIO )

 


O meu caminho para o liceu era fácil.  Embora morasse um pouco longe, com aquela idade tudo era uma festa !
Assim, subia a avenida, passava pelo pátio do Agnelo de que já falei, "apanhava" a Teresinha que morava algumas casas adiante, seguia frente à mercearia e drogaria do sr. Acácio, do outro lado da rua, continuava junto às Escolas Primárias em pleno Rossio de S.Brás, mais adiante o Regimento de Infantaria 16 e por aí fora, voltava à direita, atravessava frente ao Chafariz das Portas de Moura e derivava para a rua que me levava então, lá ao fundo, ao largo de acesso ao liceu, numa rua a descer ...
Os nomes das ruas já não consigo dizer.
Havia um autocarro que circulava ao cimo da minha avenida, que em dias de muita chuva os meus pais faziam questão que eu apanhasse.  Mas eu gostava bem mais de ir a pé.  Assim, às vezes chegava ao liceu molhada que nem "um pinto" ...😂
Nesses dias de Inverno a sério, a minha mãe pegava então num par de meias minhas e lá ia a caminho do liceu entregar a uma contínua para que eu pudesse trocar as meias encharcadas, por um par sequinho.  Entretanto, ela própria apanhava uma molha e tanto, nesta operação !...  Mas mãe é mãe , claro !!!...

Os meus pais eram oriundos de famílias muito humildes. O meu pai nascido numa aldeiazinha na raia de Espanha, no Baixo Alentejo, provinha duma família de cinco irmãos dos quais ele era o mais velho.  Não conheci os meus avós.  Ele era sapateiro, pouco amigo de trabalhar, tanto quanto sei, a minha avó tinha a seu cargo a penosa tarefa de criar os filhos em dificuldades extremas.  Assim, com sete anos já o meu pai era moço de recados, para ajudar como podia, ao sustento da casa.  Mais tarde, marçano de armazém.  Creio que terá feito (ou não ) a quarta classe.  Pelo menos não era analfabeto.
A minha mãe, igualmente alentejana, desta feita duma vila do distrito de Évora, era a terceira duma família também de cinco.  Os meus avós maternos tinham um pequeno negócio de restauração, com que faziam face ao sustento da família. 
Em casa, de muita labuta, as filhas ( duas para três rapazes ), tinham que trabalhar tanto ou mais que as criadas.  A minha tia casou muito nova e saíu portanto muito cedo, da casa dos pais.  Ficou a minha mãe que era uma escrava de trabalho, sem descanso ou regalias.
Foi para a primária, era excelente aluna, mas ao fim da segunda classe teve que abandonar a escola, para ajudar em casa, no tratamento dos dois irmãos que entretanto nasceram.
De nada serviram os pedidos da Sra. D.Ressurreição ( a professora ), para que o meu avô a deixasse continuar os estudos.  Tudo em vão e portanto, pela vida fora a escolaridade da minha mãe, para grande mágoa sua, ficou por ali ...
Anos mais tarde, casada e já mãe, quis tirar a carta de condução.  O meu pai entendeu que lhe seria útil, uma vez que ele próprio a não queria tirar.  Só que, necessitava para o efeito de possuir como habilitação, o exame da quarta classe. 
Para a minha mãe, não havia obstáculos.  Sempre enfrentou tudo na vida com denodo, esforço e muita aplicação.  Assim, deitou mão aos livros e preparou-se para as provas, como adulta, claro.
Eu já frequentava o segundo ano do liceu e também fui protagonista na coisa.
Conforme ela dizia, enquanto cozinhava e fazia os trabalhos caseiros, tinha ao lado os livros e os cadernos e repassava vezes sem conta as matérias.  Eram as dinastias na História, eram os rios, as serras, as linhas férreas na Geografia e por aí adiante ... os exercícios da aritmética, os problemas mais elaborados ... etc.
O meu papel era então, quando regressava a casa, conferir o sucesso ou não, do estudo desse dia ...
E dessa forma, a minha mãe alcançou o desiderato perseguido ... fazer com aproveitamento o seu exame e com ele, inscrever-se na escola de condução para aprender a conduzir na complicadíssima geometria da cidade de Évora.  As suas ruas estreitas, becos e outras dificuldades no Centro Histórico, tornam a obtenção da habilitação à condução, como das mais difíceis de alcançar.  Era pelo menos assim !
A minha mãe não era, contudo, muito expedita nessa área ...😁😁 Extremamente nervosa, descontrolava-se  sem nenhuma calma e só à terceira tentativa alcançou a aprovação !... 😁😁😁 
A carta foi passada, existe até hoje, neste momento nas mãos da neta mais velha que a quis guardar como memória da avó.
Esteve toda a vida arquivada numa gaveta, pois carro nunca houve, e assim sendo, nunca a minha mãe se sujeitou à aventura de dirigir por conta e risco, o seu próprio carro !...😓😓
Coitada !...

Anamar

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