quinta-feira, 20 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 4º EPISÓDIO )

 


Até ir para a escola, sem horários a cumprir, ia muitas vezes com a minha mãe à praça, o mercado municipal, para nos abastecermos dos géneros alimentares.
Fica o mercado no Largo de S.Francisco, pertinho da igreja com o mesmo nome.
Ano após ano fomos sendo conhecidas pelas vendedeiras, algumas das quais nos tratavam mesmo, familiarmente.  A minha mãe, uma boa conversadora era uma pessoa bastante empática e depois, comigo pela mão sempre bem vestidinha, cheia daquelas mariquices que só as mães sabem fazer às filhas ... trancinhas, rabos de cavalo, laçarotes na cabeça, etc, parecendo uma bonequinha, era um motivo acrescido de muito apreço e brincadeira. 
A Sra. Mariana que vendia os produtos da sua própria quinta, situada perto do Degebe ( onde viríamos a passar uma bela tarde de Verão, a convite ), era particularmente, um doce de pessoa.
Deliciava-se com a minha performance, de cesta na mão como gente grande, e todas as vezes me punha lá dentro uma cenoura pequenina, uma ou duas batatinhas miniatura, um feijão verde e duas ou três ameixas amarelas ou roxas que nunca mais encontrei  iguais.  Eram umas ameixas fantásticas, com um sabor muito peculiar, absolutamente único ...
Como sabem, estávamos no tempo em que a fruta era a da época, nascida e criada de acordo com as condições generosas da Natureza, em que sempre sabíamos em que altura vinham as cerejas, as favas, o melão, a melancia ... e por aí fora.  Estávamos no tempo em que os produtos eram "nossos", portugueses, cultivados com o desvelo dos agricultores que os semeavam e os colhiam ... e isso era a sua vida !  Tudo tinha sabor, nada era "plástico", congelado, artificial ... Os produtos vinham do campo para a mesa, podíamos dizer !
A minha cesta das compras é mais uma das peças que existe na minha casa, até hoje ...

O tempo passou e era a hora de iniciar a vida escolar.  
Tinha ainda 6 anos quando ingressei na primária, sendo que a vida escolar começava então aos 7.
Existia na cidade, ao tempo, um colégio feminino particular, muito afamado em termos de resultados alcançados pelas alunas que o frequentavam.  Se houvesse à altura os benditos "rankings" de qualificação escolar, o Externato Conde de Monsaraz estaria seguramente em lugar de destaque.
Não era fácil ingressar no mesmo, porque a procura era grande.  Acresce que era frequentado pela classe média-alta da cidade.  A Elisinha, filha do Presidente da Câmara à altura, era, a título de exemplo, uma das alunas, de quem me tornei amiga. 
A minha madrinha de batismo era ainda familiar da dona e professora, a Sra. D.Maria Ramalho Prego, e foi por esta via que consegui entrar.
A professora era uma senhora esguia, seca de carnes, alta, creio ( embora em crianças tenhamos uma proporção diferente das coisas ), com o cabelo apanhado na nuca em banana ou coque.  Vestida de escuro e com saias até meio da perna, era uma figura austera, com um rosto fechado e respeitoso, encarnando na perfeição a figura das perceptoras dos filmes ingleses.
Leccionava as quatro classes ao mesmo tempo, sendo que na totalidade os alunos não iam além de vinte ... por aí.  O colégio situava-se no rés-do-chão do prédio de que ela e o irmão eram proprietários, e onde residiam, no Largo de S.Francisco, frente ao mercado.
A sala de aula tinha uma única janela, com uma rede fina para evitar a entrada de insectos.  Aproximavam-se dela, as mães na hora da saída.
As carteiras eram de dois lugares, frente à secretária e ao quadro negro.  Por cima, ficavam as fotografias de Salazar e Craveiro Lopes, o Presidente da República em funções, e um crucifixo.
Penso que algures ( já não tenho a certeza desta questão ), ainda existiam um mapa de Portugal e um Globo Terrestre, num lugar que já não identifico.
A sala tinha ao fundo um pequeno acesso ao vão da escada da casa principal, e esse esconso funcionava como casa de banho totalmente rudimentar.  Lembro que lá dentro havia uns quantos bacios altos, com tampa de madeira, e lembro também da lógica relutância que eu tinha em utilizá-los ...
Penso como os tempos tiveram mudanças inimagináveis ... Hoje em dia, que encarregado de educação aceitaria uma situação como esta ?  E como seguramente as entidades fiscalizadoras de saúde jamais concederiam um alvará de exploração dentro destes contornos ...
Recreio, também não havia.  Íamos almoçar a casa e retomávamos as aulas no período da tarde.
Muito de vez em quando, quando a Sra. D.Maria Prego estava muito bem disposta e o nosso merecimento era considerado, tínhamos por algum tempo, ordem para usufruir de um quintal da zona familiar da casa, para então brincarmos ao ar livre.
Mas isso era muito de vez em quando ... 😀😀

Mas aprendia-se, e muito !
Não havia historial de insucessos na admissão ao liceu e as alunas quase sempre eram aplicadas, já que o ensino era bem exigente.
A disciplina era total.  Bagunça, barulho, confusão dentro da sala de aula, eram inadmissíveis.  
Havia ainda a régua para as "palmatoadas", se fosse o caso, o ponteiro e ainda as "orelhas de burro", inevitavelmente estigmatizantes pra quem fosse "premiado" ...  Mas também havia medalhas de mérito penduradas ao pescoço, que nos enfeitavam o peito ufano ao regressarmos a casa, se as merecêramos por qualquer prestação digna de reconhecimento...

As orelhas de burro, p'ra mim, foram particularmente "devastadoras" 😔😔 como método pedagógico pouco aceitável, creio.  Passo a contar ...
Entrei para a primeira classe, como disse, com seis anos, e porque já ia adiantada e aprendi rápido, facilmente acompanhei as outras meninas de forma normal.  Assim, chegado o mês de Dezembro, findo o primeiro período escolar, transitei para a segunda classe e passei obviamente a ter as responsabilidades das meninas mais crescidas.
Lembro-me que nos ditados, a falta de pontuação ou a pontuação errada, eram consideradas um quarto de erro.  Excedendo os três erros, éramos passíveis de penalização, com as orelhas de burro...
Assim, num belo dia, num belo ditado 😏eu dei três erros e um quarto.  Reinou o silêncio na sala  na altura da entrega dos ditados corrigidos, até que uma das meninas, minha colega, disse : "Senhora Professora, a Guida deu três erros e um quarto ..."
Suspense total, com o meu coração disparado ... Acho mesmo que só as suas batidas se ouviriam ... 
De imediato a professora lavrou a sentença ... "Leva orelhas de burro !"
Bem dito, melhor feito e lá dei eu a cabeça ao cepo ... Ahahah 😭😭
Aquilo, pra mim era uma dor sem tamanho, eram os meus brios de aluna excelente, caídos em desgraça ... 
Sei que fui para o canto da sala, chorando todas as lágrimas do mundo, numa dor sem tamanho ...
A Sra. D.Maria Prego viria a manter o castigo por pouquíssimos minutos, pois teria caído em si e percebido ser de alguma injustiça a penalização que me havia atribuído.  Eu era a mais novinha, colocada indevidamente  numa classe que não seria legitimamente a minha, com responsabilidades que talvez exageradamente me não fossem exigíveis ... e retirou-me de imediato, as benditas orelhas ...

Mas o "estrago" estava feito, e confesso que, apesar da amizade que já existia até em relação à minha família, apesar de ter transitado de classe todos os anos conforme atestam os meus boletins de aproveitamento, com vinte valores ... apesar da Sra. Professora vir a ser posteriormente minha madrinha de Crisma, na Igreja do Carmo ... nunca mais esqueci este episódio, por toda a minha vida, por ter sentido seguramente no meu coração, uma injustiça imerecida.
Engraçado como há coisas que por vezes não valorizamos e que podem marcar indelevelmente uma criança, como sendo coisas inapagáveis nas suas memórias.  
Essa mágoa, em relação à minha professora, a bem dizer, nunca foi digerida, e ainda hoje sempre que olho uma pequenina chávena de café, Limoges, no escaparate da minha sala ( que me foi por ela oferecida exactamente como lembrança aquando da cerimónia do Crisma ), além de lembrar com clareza a sua imagem, logo me assoma ao espírito o famigerado e infeliz episódio das orelhas de burro !,,, 😁😁

Fico por aqui, neste já bem longa narração...
Tentarei continuar, antes que me esqueça ... ou, enquanto me lembrar ...



Anamar

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