sábado, 8 de outubro de 2022

" A VISITA "


As gaivotas recuam ... 
Andam por aqui soltando aqueles gritos estridentes, voando ou pousando nos candeeiros ou mesmo sobre os carros.
Eu vivo no interior, ou seja, longe do seu habitat natural e espectável ... a orla marítima, onde são senhoras e donas das falésias, seja Verão ou as tempestades já açoitem os rochedos.
Há muito tempo atrás, aqui nas imediações e penso que não só aqui, existia uma lixeira municipal, espaço de vazamento dos lixos, a céu aberto.  Era a lixeira de Boba que de quando em vez empesteava a cidade com um cheiro fétido insuportável.  Bastava o vento soprar de feição para que lhe sentíssemos a presença.
Nessa altura, quando os bandos de gaivotas cortavam o firmamento, desalinhadas ao sabor da aragem, já sabíamos que procuravam comida porque seguramente haveria tempestade no mar.  
Recuavam portanto, buscando-a na cidade.  E Boba funcionava então, como a despensa que tinham à mão...

Felizmente que os tempos evoluíram, as regras de higiene e protecção dos espaços urbanos e da comunidade em geral beneficiaram de outras formas de abordagem e reconversão dos lixos, com a instalação dos aterros sanitários e estações de tratamento no âmbito da preocupação com a protecção ambiental, dos sólos e das águas subterrâneas.  
A reciclagem dos materiais, beneficiando da separação dos lixos urbanos, é uma das prioridades ecológicas dos diferentes governos, e um dos ensinamentos implementados em termos educacionais desde cedo, nas nossas escolas, como se sabe.  O sentido de responsabilidade, de cidadania, e consciencialização das populações, é vector determinante nos tempos actuais.

Contudo as gaivotas continuam a recuar.  Pergunto-me o porquê disso acontecer...
Às vezes, ainda estou recolhida e no silêncio do dealbar do dia, já as oiço e já as imagino cortando o céu aqui por cima ...
Os pombos, aves do betão, e agora também bandos de periquitos de colar que parecem começar a procurar espaços verdes próximos, povoam sem surpresa o nosso firmamento.  
Os pombos são obviamente residentes e estão totalmente aculturados, enquanto que os periquitos estão, ao que parece, em processo de instalação e integração nos nossos hábitos.  Passam normalmente em grupos familiares, acelerados, parecendo ter um objectivo determinado a atingir, quase sempre ao fim do dia.  Identifico-os pela forma característica da silhueta, mas sobretudo pelo som que emitem e que lembra um gralhar atabalhoado ...
Quase sempre os persigo com os olhos e sigo com eles de rota batida, lá para onde quer que eles vão ...
As andorinhas também já partiram.  Afinal o Outono instalou-se, no calendário apenas, é bem verdade, e vai estando manso até que qualquer dia fique de candeias às avessas e dê uma reviravolta neste calor que ainda nos atormenta.

Porque recuam então as gaivotas ?
Entediaram-se lá pelas escarpas marinhas, onde os areais finalmente em paz da balbúrdia estival, estão agora serenos e silenciosos ?  Cansaram-se da toada das ondas açoitando os rochedos, quando as noites  dão lugar aos dias e os dias dão lugar às noites ?  Vêm dar uma espiadinha bisbilhoteira à urbe, para fazerem história junto daquelas que já não se atrevem ?

Em tempos eu tive uma gaivota ...
Já falei muito dela por aqui.  Era outra época !
Ela vinha, voava rasante à minha janela, empoleirava-se no topo dum edifício próximo e olhava-me com aquele olhar miudinho, perspicaz e desafiador que parecia provocar o ar desalentado de quem só a olhava de baixo e a não podia seguir pelos céus fora, rumo ao almejado horizonte, lá longe ...
Sempre achei que entre mim e ela se gerou uma conivência secreta e uma cumplicidade de mulher.
Ela contava-me do mar que eu sabia nos areais distantes, falava-me das suas zangas que entreteciam rendilhados nas areias, dizia-me das algas e dos búzios, das conchas, das marés e dos segredos que ele sussurrava em cada rebentação ...
Eu contava-lhe das correntes que nos pés me pesavam, feito grilhões de prisioneira, falava-lhe do sol que tombava na linha desenhada no céu em cada fim de dia, das luas que me desafiavam nas noites escuras, dos meus sonhos que nunca voavam porque não tinham asas, como ela ... e das estrelas, punhados de estrelas que ainda assim povoavam as minhas noites ... 
E ela levava-me os recados ... era estafeta dos meus silêncios, partilhava-me as angústias, as nostalgias e as solidões ... 
E partia ... voltava para as praias desertas, onde era dona e senhora !...

Em tempos tive uma gaivota ...
Vinha visitar-me ... agora eu sei ... tenho a certeza ...
Era outra época !...

Anamar

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