sexta-feira, 21 de outubro de 2022

" NESTE CINZENTO DA TARDE ..."

 


O tempo empalideceu.  A Natureza perdeu as cores vibrantes dos dias estivais.  O céu uniformizou em cinzento, sem definição de nuvens, sol ou sequer rasto de aviões que procurassem destinos, nem caminhos de passarada em demandas desconhecidas.  Nada !  Uma monotonia paisagística, numa chuva anunciada que teima em não cair...
Está um tempo de silêncio e aconchego, de intimismo e interioridade.  Um tempo que nos deixa de melancolia atrás dos olhos, um tempo que convida a balanços pelo percurso da vida, num recuo nostálgico, doído às vezes, pela sucessão dos dias que já foram.

Brevemente aniversario e o desconforto que sinto com isso, perturba-me mesmo.  Parece um "nonsense", uma infantilidade, uma "não questão", em última análise, qualquer coisa absurda e sem explicação lógica, até pela incapacidade que temos de fazer parar ou regredir o tempo.
Portanto trata-se de uma pura perda de energia considerar ou valorizar essa questão, até pela sua inevitabilidade.
As pessoas ditas "normais" contestam esta reacção, sorriem com olhar complacente como quem diz :"Coitada ..." ou então insurgem-se e veementemente acreditam que me podem mudar de lado, quando, elevando a voz, dizem superiormente :" Disparate ! Anos de vida são bênçãos, poder contá-los, um privilégio !..."
São as mesmas que vêm com aquelas doutas teorias que as rugas são aprendizagem, que cabelos brancos, peles a cair, dentes a faltarem, ouvidos a endurecerem ... histórias inalienáveis de vida ... Quanto orgulho por poder exibi-las !...

E se calhar, têm razão, mas em mim baixa uma tristeza de caixão à cova que acaba levando sempre a melhor, ainda que tente racionalizar, ser objectiva e realista.  Acho que é uma "marca" de fabrico deficiente, que nasceu comigo e comigo há-de partir ...😀😀
Mas tenho um truque que utilizo quando dá, não para apagar o dia no meu calendário, mas para o distrair e me distrair com ele : viajo, fujo para longe, de preferência, onde inviabilize o quanto possível a profusão de simpatias de que normalmente sou alvo ... os telefonemas, sobretudo !
Assim, são já alguns os anos em que essa data ocorre, duma forma mais ou menos feliz, em alguns cantos longínquos do mundo, porque dessa forma tudo se torna mais impessoal, frio e distante emocionalmente ...
Este ano também irei ... fazendo ficticiamente regredir o calendário, do Outono para o pino do Verão, outra vez ...

Entretanto, nesta modorra sonolenta, neste silêncio e nesta paz lá fora, aqui dentro os meus gatos dormem, a música doce toca a meu lado ... nem um pássaro se atreve no firmamento, e eu reflicto sobre o texto de António Lobo Antunes, lido há pouco  ...

Acho que hoje ele é que teve a culpa ... 
Afinal também a mim começou a apetecer-me voltar mais cedo para casa ... 😌😌

"A VELHICE
(Por António Lobo Antunes)
Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de 20 anos, os Brunos Miguéis já vão nos 15, as Kátias e as Sónias deram lugar a Martas, Catarinas, Marianas. A maior parte dos polícias são mais velhos do que eu. Comecei a gostar de sopa de Nabiças. A apetecer-me voltar mais cedo para casa. A observar, no espelho matinal, desabamentos, rugas imprevistas, a boca entre parêntesis cada vez mais fundos. A ver os meus retratos de criança como se fosse um estranho. A deixar de me preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes de todos os jogadores do Benfica (…). A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado, de cigarrilha nas gengivas achava peitorais.
Se calhar, daqui a pouco, uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no outro e vou, de bengala, contar os pombos do Príncipe Real que circulam, de mãos atrás das costas como os chefes de repartição, em torno do cedro. Ou jogar sueca, com colegas de boina, na Alameda Afonso Henriques de manilha suspensa no ar, numa atitude de Estátua de Liberdade. Quando der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heróicos, cravavam nos gelos polares.
Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito.
Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou."


Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Bom estou bastante curioso em saber se estarei cá para ver se ainda irás viajar quando fizeres os teus 100 anos. 😊😊😊
By Jonas

anamar disse...

Tu vais primeiro porque tens mau feitio !!! :) :) :)