quinta-feira, 13 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 3º EPISÓDIO )


Cheguei àquela casa apenas com dois anos.  E digo "cheguei" porque não foi ali que vi pela primeira vez a luz deste mundo que me acolhia... 
Não, eu nasci numa pequena aldeia alentejana, na raia de Espanha, terra de origem do meu pai e família paterna, Aldeia Nova de S.Bento, onde nunca mais voltei e donde, obviamente pouco sei e de que não guardo nenhuma memória. 
Os meus pais rumaram então a Évora, talvez por ser um destino central para as viagens do meu pai, que como "caixeiro viajante" ( chamava-se assim ), percorria os Alentejos em trabalho.

Sou filha única, de pais "velhos".  Sou fruto de um segundo casamento tardio do meu pai, que sendo viúvo e já com 48 anos, casou em segundas núpcias, com a minha mãe, de 29 anos.
Talvez por isso, a relação dos meus pais comigo tenha sido sempre demasiado focada.  O meu pai, com um desvelo, uma preocupação e um amor quase mais de avô do que pai, era assim que me tratava.  O proteccionismo era total, nunca me ralhava ou sequer castigava ...
Acrescia o facto de ter um filho do primeiro casamento que aos catorze anos adoeceu irreversivelmente, com uma doença do foro psiquiátrico, vindo a ser internado numa instituição onde passou toda a sua vida, o que assustava brutalmente o meu pai, que assumia uma vigilância permanente e extrema com a minha saúde.
Pelo facto também de, por razões profissionais não poder ser uma figura muito presente na família, tentava compensar-me, tratando-me como prioritária, sempre.
Consequentemente,  a minha educação recaíu fundamentalmente sobre a minha mãe, que tinha por isso, o ónus da mesma.
Com responsabilidade máxima, apesar de me adorar e de sempre eu estar primeiro que tudo na sua vida, tinha uma presença permanente, excessivamente exigente e vigilante, pouco dada a cedências.
Escudada no facto de, estando o marido fora grande parte do tempo, chamou a si a intransigência de quem não pode vacilar nas directrizes pedagógicas.  Lembro que muitas vezes me dizia : " não podes dar desgostos ao teu pai.  Ele não pode arreliar-se, não venha a ter algum problema de saúde.  Eu sozinha, não teria condições de te criar !"
E pronto ... com esse "peso" sobre os ombros, essa chantagem emocional iria funcionar pela vida fora !...  
O meu pai viria a falecer com 90 anos ...😔😔

Fui portanto uma criança muito só, isolada e ensimesmada.  Convivia pouco, pois não me era permitido ir para casa de ninguém, e a minha mãe, ciosa com a limpeza e organização da casa, também não era muito aberta a "bagunças" infantis no nosso espaço, ela própria com uma personalidade muito individualista.
Tive alguns brinquedos ... duas ou três bonecas, não mais, e umas tralhas variadas, quase todas miniaturas de utensílios culinários, em barro ou em madeira. Em barro, provindos do Redondo onde se vendiam frente à casa dos meus avós, e em madeira comprados no Minho, em Caldelas, onde no mês de Setembro os meus pais iam a termas. 
"Residiam" dentro de um caixote de madeira, arrumado no rés-do-chão, no vão da escada, e nem sempre a minha mãe estava de "catadura" para mos ir buscar ( eu brincava na cozinha, atrás da porta ou às vezes, na varanda ).  Nos dias em que o caixote subia ao primeiro andar, passado algum /pouco tempo, a ordem era de arrumação de novo.  Afinal, não se queria desalinho pela casa ...
Certa vez, uma vez, a minha mãe cheia de bonomia convidou-me p'ra brincarmos ao "Dia das Comadres".
Nas quintas-feiras que antecedem o Carnaval, no Alentejo era tradição muito antiga festejarem-se os "Dias de compadres e de comadres".  Eram lanches ou outras refeições em que os amigos ( só masculinos e só femininos, respectivamente ) se juntavam a pretexto de celebrarem a amizade.
Desta feita, "ressuscitaram", vindos do andar de baixo, as panelinhas, frigideiras, pratos e talheres.  Na varanda acendeu-se o fogareiro que também era de barro e ali inventámos um lanche de Comadres ... neste caso, eu e a minha mãe éramos as únicas protagonistas !... 😂😂
Dizia-se  então : " O que  come  a  comadre ??  O que  a  comadre  comer ... Seremos comadres até morrer !"...  😁😁😁😁
Tempos esquecidos ...

Guardo até hoje a memória da chegada da Lolinha à minha vida, a boneca de porcelana com cachinhos loiros e olhos azuis que o meu pai me comprou, numa das suas vindas a Lisboa.
A Lolinha tinha uma mola na barriga e "chorava" quando se abanava para a frente e para trás.
Foi uma felicidade e tanto esse dia em que, regressado de viagem, o meu pai entrou pela cozinha adentro com uma caixa grande, embrulhada num papel branco com florzinhas azuis.
Sem nada dizer balançou o embrulho e frente aos meus olhos estupefactos, a Lolinha chorou ...
Essa imagem não desgrudou nunca mais da minha vida, e a alegria que senti também foi única e eterna, dentro de mim !
Hoje, a Lolinha que já baixou uma vez ao Hospital das Bonecas para reabilitação ( não porque eu a tivesse estragado ... aliás, quase não brincava com ela porque sendo de loiça, podia partir-se ... ), ocupa na minha casa um lugar de honra dentro de uma vitrina ... como uma das memórias mais gratas que tive na vida !

Já vos dei uma panorâmica de como eram os meus anos despreocupados, em que as responsabilidades escolares ainda não existiam.
De qualquer forma, forjei a minha personalidade dentro dessa realidade.
Quando comecei a ler e a escrever, canalizei-me muito para os livros de histórias e aventuras, com os quais passava longas horas dos meus dias.  A televisão haveria de chegar quando eu já completara 7  anos e ainda assim, na minha casa não existia.  Na avenida, conhecíamos duas famílias que as tinham, e sendo pessoas amigas, sempre nos convidavam para irmos assistir um pouco.  Mas a minha mãe entendia que isso era uma intromissão na intimidade de cada um ... e muito poucas vezes aceitámos o convite.
Eu gostava de desenhar e pintar.  Mais tarde fui ocupando os meus momentos de lazer, desenhando, alindando os cadernos da escola com apontamentos que fazia com esmero e perfeição e ... foi então que comecei a escrever ... Rabiscos, pequenas frases, textos insignificantes, declarações de amor à minha mãe ... papeizinhos que por ali ficavam ...
Na pré-adolescência, fase de normal desajuste em qualquer jovem, em que o intimismo, o sonho, a ansiedade ... todas as dúvidas e medos, todas as insatisfações e incertezas nos povoam ...  quase sempre os mesmos falando de sentimentos, de tristeza, de solidão ...

Retomarei ...  antes que me esqueça ... ou, enquanto me lembrar ...

Anamar

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