terça-feira, 11 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 2º EPISÓDIO )

 

                                                                 Tó Quim Barreto

Bom, eu fui para aquela casa com dois anos apenas.  E sendo assim, nem por obra e graça do Espírito Santo me lembraria do que quer que fosse, obviamente.

Dizem que as nossas primeiras memórias remontam aos três anos de idade, não sei.  Mas talvez não tivesse muito mais, quando um acontecimento me ficou gravado para todo o sempre. 
Não sei exactamente que "maldade" teria eu feito, que deixou a minha mãe furiosa.  
P'ra grandes males, grandes remédios ... "Não me queria mais pra filha, "sua má" ( dessa expressão, eu lembro )... 😁😁E se bem o disse, melhor o fez.  A Margarida, tesa que só ela, a vida toda, pegou num pano, fez uma trouxinha, supostamente com os meus pertences, pôs-ma na mão e encaminhou-me para a porta da rua, assegurando-me não me querer mais p'ra filha .  
Já eu me lavava em lágrimas e soluços, escada abaixo, vendo a minha vida a andar p'ra trás.  Abriu a porta e pôs-me na rua, fechando a porta em seguida.
Lembro-me  que  me  sentei  no poial, de trouxa  ao lado, num  profundo  desgosto incontrolável ...
Passaram minutos, não terá sido mais.  A minha mãe, do lado de dentro sofria tanto ou mais que eu.  Carregou esse arrependimento pelos anos fora, contava então.  Não teve mais coragem de alongar o castigo e num gesto magnânimo, abriu a porta e "re-assumiu-me" como filha ... 😆😆😆
Nem ela nem eu esquecemos nunca mais este episódio !
Hoje, estes métodos "pedagógicos" seriam altamente censurados... e conotados por certo, com maus -tratos.  Nunca o entendi desse modo.  A minha mãe adorava-me, e essa foi a forma que entendeu como eficaz, na correcção da dita "maldade" ... 
Eram outros tempos !!!

Lembrei aqui ontem onde era a localização da minha casa, e bem assim a sua descrição por dentro.
No rés-do-chão, e situada por debaixo da casa, ficava, como referi, uma garagem, simultaneamente estação de serviço, incluindo posto abastecedor de combustível, tanto quanto lembro.
Por interessante coincidência, e porque dizem elas não existirem de facto, achei curioso retomar essa referência exactamente hoje, porque se prende a essa garagem a memória duma figura pública eborense, nacional e também internacional que hoje, 11 de Outubro faria 91 anos.
António Joaquim Barreto, conhecido por Tó Quim Barreto, nascido em Évora em 1931, foi o primeiro piloto português a integrar os quadros da Ferrari, competindo em Fórmula 1.
Morreu num acidente brutal em 30 de Maio de 1957 com 26 anos apenas.  Era um desportista promissor, dedicado e premiado em várias competições.
Nesse malogrado dia, corria o Grande Prémio Automóvel de França em Saint Etienne. Tó Quim, como carinhosamente era conhecido em Évora, ia em 3º lugar quando o colega de equipa Piero Carini se despistou embatendo violentamente no Ferrari do português, tendo os dois sofrido morte imediata.
Ao seu funeral, relatam as notícias da época, compareceram milhares de pessoas demonstrando admiração, carinho e gratidão por este eborense que levaria também ao mundo, o nome de Portugal .
No Livro de Pilotos da Ferrari está registada a seguinte Homenagem :
"Aveva coraggio e passione : e morto a soli 26 anni ..."

Mas tudo isto também, e particularmente porquê ?
Não só porque, inesperadamente esta minha narração coincidiu com o aniversário de nascimento do Tó Quim, mas porque também eu, bem menina, sem que o soubesse, viria a conhecer "o alentejano que a Ferrari idolatra".  E como ?
Lembro com total clareza que o Tó Quim acedia à garagem com frequência, ao volante do seu carro.  Descia a avenida a altíssima velocidade e entrava com o carro, portão adentro, com a mesma performance.  O barulho era inequívoco ... lá vinha o carro de corridas ... o Tó Quim estava a chegar ...

Um dia, deixou de vir e a cidade chorou este seu filho querido ... o Tó Quim partiu !

Na mescla das histórias que lembro, há outro acontecimento que também fez notícia na cidade, sendo que muitas das pessoas que viviam então, o não esquecerão. Tudo se deve ter passado talvez num qualquer Setembro, não tendo eu sequer ainda dez anos.
Setembro era um mês bem quente, propício para férias de praia. Assim, eu e a minha mãe usufruíamos de uns dias na praia de Sines, antes que o ano lectivo começasse. 
Ao lado da minha casa ficava uma serração de madeiras já antiga e conhecida na cidade.  Nessa famigerada noite, devido a um curto-circuito, pela madrugada deflagrou-se um incêndio brutal.  Chamados os bombeiros, cujo quartel até nem ficava muito longe, logo o primeiro tanque de ataque se fez ao caminho, o mais célere possível.  Não estando completamente cheio, ao fazer uma curva a grande velocidade, o auto-tanque, capotou tendo morrido de imediato, um bombeiro.
O atraso da chegada de mais socorros permitiu que o fogo tomasse proporções alarmantes.  Quem assistiu, dizia que o fogo se via de qualquer ponto da cidade, lembrando fogo de artifício. 
Foi então accionado o pedido de intervenção da tropa.  A manutenção militar ficava também nas traseiras da minha casa e os soldados foram prestes a chegar.  Não havendo ninguém em casa e receando que a mesma fosse atingida pelas chamas, arrombaram a porta e iniciaram o esvaziamento indiscriminado e totalmente anárquico, da habitação.  Até as loiças da casa de banho foram arrancadas e retiradas, os móveis danificados, muitas peças partidas ... o pote do azeite, comprado para todo o ano e guardado na despensa, foi deixado aberto tendo-se perdido todo o seu conteúdo.
O recheio da casa foi sendo colocado em frente, na avenida, e muitas coisas desapareceram.
Enfim, muita confusão, muito atabalhoamento, muita precipitação.
Quando, contactadas em Sines, eu e a minha mãe regressámos ... o nosso pequeno mundo parecia ter ruído !...

Alguns anos depois, na madrugada do dia 1 de Outubro, meu primeiro dia de aulas no primeiro ano do liceu, a serração viria de novo a arder.

Mas isso e mais algumas outras coisinhas, recordarei ... e contarei ... antes que me esqueça ... ou, enquanto ainda me lembrar !...

Anamar

Sem comentários: