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segunda-feira, 9 de setembro de 2013

" A GENTE QUE NÓS SOMOS "



O tempo continua insuportável.
A minha casa parece uma câmara de incineração, antecipada ...  E contra tudo o que gosto, me agrada e sempre defendo, resolvi ir à praia ... da Linha, e ao domingo !!!  :(
Um cúmulo de incoerências minhas, decididamente ... o que me relembra, que nunca se diga "nunca" !

As praias da  Linha, são,  como sabemos,   ponto de convergência de multidões, devido à proximidade e fácil acessibilidade, da Linha de  Cascais, e da Linha de Sintra também.
Fui ao domingo, porque em desespero de causa, recusei passar outro dia enfiada entre quatro paredes, na meia obscuridade das janelas fechadas, por via do calor, a esperar apenas o escoar das horas. 
Pelo menos, com um sol ofuscante  bem por cima da moleirinha, e no meio de milhares de pessoas que seguramente ali demandaram, consegui abstrair do que me rodeava, e com a minha música nos ouvidos, consigo ilhar-me, às vezes admiro-me, o quanto !!!

Bom, mas escolhi uma praia "de verdade", sem sombra de dúvida.  E aos domingos, é obviamente mais "de verdade" ainda ...
Passo a explicar : decidi-me por Carcavelos, grande areal, água mansa, uma brisa a favorecer.
Ao longe, nas costas do mar, com uma bordadura de palmeiras, abaixo da linha da Marginal ( onde os carros aceleram a qualquer hora ), brinca de praia tropical, de palmeiras e coqueiros.
É só fechar os olhos, e imaginar !

À hora a que cheguei, oito da manhã, a ausência de gente, e as areias apenas povoadas por gaivotas e pombos ainda adormentados, até colaboravam .
A minha raiva começou a aumentar, à medida que o pessoal,  invadindo o areal, desatou a ocupar todos os centímetros quadrados de areia, que pôde.  O bando das gaivotas bateu mar adiante, o que é sinónimo de que o seu  sossego terminou ... e o meu também, obviamente .

Mas dizia eu, que fui a uma praia "à séria".
De facto, trata-se de  uma praia democrática, multicultural, bem internacionalizada.
A "marabunta" compõe-se de autóctones,  em maioria  ( embora entre eles, se distinga claramente a presença de alentejanos e de tripeiros ... está a ver-se  porquê ... ), africanos ( em chusmas ), chineses, indianos, e significativa presença de cidadãos de leste ( e aí, só por adivinhação se concluiria da real nacionalidade, porque as "curvas" da língua são as mesmas ).

São famílias inteiras e acólitos, são crianças e criancinhas.
Gente "autêntica", que fala aos berros, não se furta ao vernaculismo da linguagem, e distribui tabefes e safanões pelas crianças, que como quaisquer crianças que se prezem, são malcriadas, insubordinadas e reivindicativas.

A praia é um local óptimo, para, na sombra abençoada do chapéu de sol, se falar horas no telemóvel.
Tem-se  todo o tempo do mundo, e essa é a melhor altura para se porem em dia, as novidades acumuladas, se "despachar" em matéria laboral, se contarem - para o nosso receptor, e já agora todos os receptores a meio metro de nós - as mágoas, as desgraças, as aventuras ... enfim, todos os acontecimentos que fariam manchetes interessantes, do Correio da Manhã do dia seguinte !...

Ali não há "mise-en-scènes",  nem  " faz de conta ", ora essa !...
Ali, o "povão" é povão real, mesmo !   Nada dessas figurinhas virtuais, estilizadas, dos "jet-sets" das badaladas praias algarvias, de noites brancas e festas absolutamente "inn", dos clubes onde convém aparecer.
Ali, não há silicones nas mamas, nem corpinhos bulímicos de sereias desfilantes.  Em suma, não há gente de plástico !
Ali, os machos exibem-se como a  Natureza os programou ...  Nada das depilações absurdas, que lhes revelam peitinhos e braços,  de verdadeiras damas ebúrneas !!!
Ali, desfila o músculo e a gordura, a celulite e a flacidez, as barrigas e os estômagos de cerveja, as peles pendentes e o encarquilhamento dos anos ... tudo ao vivo e a cores, sem "maquilhagens" ou disfarces ... a vida ao natural !!!

Por outro lado, o "povão" é expressivo e exuberante.  O povo não se coíbe nas manifestações que exterioriza, não tem as preocupações do socialmente correcto, do adequado, da censura de classe ... as "frescurinhas" do bem parecer ... O "povão" tem direitos ... "que gaita" !  "Quem está mal, que se mude ... era o que faltava !! " ...
E ali, a praia é de todos, e muito mais, "sua" ...
Por instantes, tive um flash do "Pátio das Cantigas", do saudoso Vasco Santana ...
Por  instantes,  revi  Fellini,  na  Sicília ,  anos  vinte ....  Por  que  seria ???!!!...

Uma  constatação assaz interessante, que me surpreendeu pela incidência verdadeiramente perturbadora, foi a  progressiva  rentabilização que as pessoas inteligentes fazem,  dos metros quadrados da pele de que dispõem, na exibição de obras de arte espantosas, assim, gratuita e generosamente ...
Um contributo para a democrática "arte de rua" !!!

Sabe-se que nas ruas e avenidas, existem outdoors que devem custar os olhos da cara, a quem, neles,  pretenda publicitar  imagens, ideias, frases,  propaganda política emocionantemente criativa ... tudo isso ...
Ora se o ser humano dispõe de verdadeiros painéis de exposição, inteiramente à borla, por que não mostrar ao mundo, tatuagens comoventes, pictogramas criativos, mensagens emotivas ???
Há que aproveitar cada recanto, cada pedacinho mesmo recôndito, cada superfície devoluta dos corpos, para expor, expor, expor ... o dragão, a fénix, o peixinho, a ave planante, os amores todos que se foram,  em corações de cupidos trespassados, o escorpião, a borboleta, emaranhados arbóreos de floresta virgem, tudo, tudo ... generosamente, numa mostra gratuita ao mundo ... como aliás, deverá ser a cultura !!!

E como há imensos gordos ( está provado que a obesidade é actualmente, das mais graves pechas da humanidade ), os metros quadrados de pele, disponíveis, aumentam portanto, exponencialmente.
E porque a beleza de uma obra de arte deve ser usufruída indistintamente por todos, e há que veicular a cultura de um povo ... os corpos recobrem-se de "pinturas rupestres", de alto a baixo, ao alcance de qualquer olhar !...
Assim se vê bem, o espírito de mecenato da nossa gente !...

Também na morte, o ser humano é bem diverso !

Ontem fui a um funeral.
Tratava-se de alguém relativamente novo ainda.  Pertencendo a uma classe média-alta, e sendo administrador de uma multinacional,  inseria-se claramente num estrato social  economicamente elevado, com um círculo de relações consequentemente condicente.
Não me era muito próxima, a pessoa em causa.
Estive presente portanto, por cordialidade, por norma de convivência, apenas.  Ocupei por isso, uma posição confortável, de espectadora do circundante, sem que o envolvimento emocional me perturbasse.

Não havia lágrimas, não havia desespero, não havia drama.
Tudo muito civilizado, bem contido, correctamente enquadrado ...
Tudo muito "frio", muito apropriado, muito notícia da "Hola" ...
Tudo demasiadamente "cool" !...
Na verdade, nada  que  se  assemelhasse  a  um  funeral  "a  sério",  portanto ... ( pensava  eu ) !!!...
Mas  o  que  é  facto,  é  que  esta  também  é " a  gente  que  nós  somos " !!!...

Bom, e  já dissertei que chegasse, sobre ela, sobre  as personagens que nos cruzam, e que são a nossa própria  realidade.   
Penso que tudo isto é nacionalmente genético, é herança cultural, é especificidade de se ser português, de sermos este povo aqui, neste retalhinho de terra, entre o mar e a montanha ...

Tudo isto é muito " a nossa cara", o que transportamos nas veias, e o que contemos na alma, nesta Europa de sul, visceral e sanguínea, impulsiva e autêntica ...

Tudo isto é a genuinidade da nossa gente, do tal "povão", que mesmo espartilhado pelas condicionantes com que a sociedade o limita e castra, pelas  regras  que  lhe  impõe  e  dita  ... sempre  é  igual  a  si  próprio, sempre  é  autêntico  e  verdadeiro,  em  qualquer  lugar !!!...

Anamar

sexta-feira, 17 de maio de 2013

" E ESTAMOS ASSIM ... "






A tarde estava ventosa, endiabradamente ventosa.

Na rua, as pessoas vestidas de Verão, de um Verão que se recusa, circulavam encolhidas com frio, abanando a cabeça desaprovadora, a cada rajada de vento que soprava.

O café, não obstante, colocara na mesma, a esplanada na rua.  Os chapéus de sol, as mesas e as cadeiras, esperavam vazios, algum cliente mais intrépido.
Eu passei em passo estugado.  Afinal o sol nem se sentia, sequer.

Ouvi ... porque  inicialmente  nem  vi  donde  vinha,  a  frase  a  meia  voz : " Cada vez estou mais farto de mim e deste país " !

Olhei para trás, para ver quem desabafara daquela forma.
Tratava-se de um homem de meia idade, vestido modestamente, com um boné na cabeça, o único ocupante da esplanada do café.
Não tinha nada na mesa à sua frente ... parecia indiferente à tarde desagradável, ensimesmado "na dele" ... desalentado, derrotado, talvez revoltado ...

Momentos antes eu recebera uma sms de alguém próximo, que me dizia : "Estou cansada, sem ânimo, amargurada e sem forças.  Não sei o que fazer à minha vida " !...

Duas pessoas anónimas, , duas vozes apenas, a darem voz ao coro de vozes desta terra, que diriam exactamente a mesma coisa ;  a darem eco à turba de gente, que em encruzilhadas confusas, em ruas de volta atrás, em rotundas imparáveis, entontecem, sem se libertarem e saírem do mesmo lugar.
Gente que já não encontra horizonte esperançoso, escapatória salvadora, objectivo por que lutar ...
E a estagnação a que está condenada, destrói, desespera, tira as forças, e em última análise, mata, porque derrota, vai aniquilando aos poucos, como um verme silencioso e persistente, a corroer a carne sã.

E as pessoas morrem todos os dias um bocadinho, as famílias desestruturam-se, as relações claudicam, e os indivíduos estão cada vez mais sós, mais amargos, mais agressivos, em células sociais insatisfatórias, incapazes de os acolher com o mínimo de conforto afectivo, ou laços que os espaldem contra a imtempérie da vida, que os escudem contra marés alterosas e os reveses diários.

Hoje, quando chegou a hora de me levantar, e sem ânimo para o fazer, dei por mim a dizer para "dentro", uma outra vez : "mais um dia de luta" !...
Porque eu também tenho a minha luta, a minha angústia de vida, a incerteza do depois, a impotência face à tempestade que não se contém, porque não se pode conter ... que são minhas, mas que assimilam em si as dos que me estão perto, de coração, e a quem não posso valer.
E diariamente carrego um peso angustiante, exactamente por não saber o que fazer, como fazer, não ter soluções para nada.
E como sou muito pouco pragmática e racional, emocional e psicologicamente sinto-me acoada, desequilibrada, em pânico, quase sempre ...

Ontem, o primeiro impulso que senti quando ouvi aquela frase largada ao vento, por um desconhecido, foi de me sentar na sua mesa vazia, olhá-lo, e dizer-lhe : " Olhe, não está só !  Aqui e agora, eu sinto exactamente o mesmo " !...

Mesmo sabendo que de nada adiantaria ...
Tal  como  de  nada  adiantou  a  resposta  ao  sms, que  levei  tempos  a articular ( eu, que até escrevo com alguma facilidade ),  porque não encontrava  palavras  adequadas ( penso que simplesmente não existem, se perderam ...)

Ou, porque todas as palavras e frases que eu escolhia, eram "feitas", ocas, vazias, sem convicção ou consistência ... Apenas porque não consegui sentir em mim a mínima credibilidade no discurso, ( por eu própria nele não acreditar ... )

Porque nenhuma capacidade persuasiva, promissora de soluções ou saídas, eu fui capaz de transmitir, por forma a acalmar o receptor da minha mensagem, ou pelo menos de lhe incutir algum ânimo ou fé em melhores dias ...

E estamos assim !...

Os suicídios aumentam, o desespero leva à loucura, e cada vez temos mais gente a viver marginalmente à sociedade, em franjas de subsistência, ou sobrevivência indescritíveis ...

Entretanto o Benfica jogou em Amsterdão, e perdeu tão importante prova.
"N" autocarros lotados, deslocaram adeptos ferrenhos, membros  do  governo,  e  gente  que  deveria  estar a  trabalhar  ao  serviço  do  povo ( porque fora um dia útil ), e que à nossa conta, e sem o mínimo pudor, não abdicou de ir.
Por cá, os outros, muitos dos outros, alienaram-se, fizeram de conta que a vida é mansa, entorpecendo-se com a transmissão, vomitada por várias estações de televisão.
E vibraram, e esqueceram ...

Abençoado futebol, que enquanto render, esquecer-se-á o crédito atrasado da casa, as despesas escolares dos filhos, a prestação do electrodoméstico já vencida, e os parcos tostões na algibeira, que dificilmente fazem face ao sustento, que diariamente há que pôr na mesa ...

Anamar

domingo, 28 de abril de 2013

" RELENDO ... "



Reler  Manuel  da  Fonseca  levou-me  Alentejo  fora,  até  àquele  casarão.
Aquele casarão que ficava no largo principal da vila, local de passagem dos veraneantes que quisessem seguir até Vila Viçosa, Alandroal, ou  simplesmente até ao alto da Serra, de seu nome "d'Ossa", tão fresca quanto a água nos cântaros de barro, onde se mantinha, tapada com um testo de madeira, ou um simples pires de loiça, quase sempre já "gatado" ...

O casarão era a casa dos meus avós, com paredes de meio metro de espessura, com tectos altos, chão  de tijoleira de barro, e janelas com portadas de madeira por dentro, mantendo a semi-obscuridade, garante da frescura, na canícula dos Verões alentejanos.
As janelas e as portas eram guarnecidas pelo azul-cobalto, das molduras típicas.
Havia todo um terreiro lateral à habitação, o quintal, que abria para o Largo, através de um portão grande, zincado, pintado a vermelho escuro.
Com chão de terra batida, acomodava, quando parados, os carros de muares dos hóspedes.
Isto, porque a casa dos meus avós era uma estalagem, aberta a hóspedes, que normalmente se faziam transportar à época, em carros puxados a "bestas".
Estas eram desatreladas, os carros ficavam adormecidos, no "descarregador", inclinados, com os varais pousados no chão ...
Faziam por isso, as minhas delícias, e dos meus primos, já que neles seguia, em viagens imaginárias, aos tirantes de mulas e burricos, por estradas inventadas, acomodada nos assentos do cocheiro, revestidos quase sempre, a pele, ou com mantas de Reguengos.

No quintal havia um poço, com rochas no fundo, onde as avencas cresciam, e onde o meu avô mantinha os pirolitos fresquinhos, dentro de um cesto, que fazia subir e descer à hora do almoço.
A água do poço, tirada com o caldeiro, dava de beber aos animais, que na cocheira, a "Quadra", como se chamava, repousavam da viagem, e onde nas manjedouras, a palha puxada do palheiro com a forquilha, lhes matava a fome.

O palheiro ... Lembro o palheiro de brincadeiras intermináveis, de saltos e cambalhotas.
Lembro do carregar das gorpelhas de palha, "torres" douradas enredadas, nos carros que as transportavam.
Lembro que a palha descia pela "manga", e era espalhada pelas manjedouras, frente à cabeça das "bestas".
As galinhas e os patos, que ciscavam soltos, colocavam os ovos "a salvo", no calor da palha.
E por isso, a criançada, em gozo de férias, tinha por incumbência recolhê-los, na cestinha que a avó nos enfiava no braço.

No palheiro, o meu avô, quando estava de "boa catadura", deixava pernoitar gratuitamente os malteses, que perambulavam pelas estradas, como pardais à solta, sem eira nem beira.
Figuras errantes, sem chão ou grilhetas que os prendessem a nada nem a ninguém, os malteses, na minha cabeça de criança, eram a perfeita imagem de liberdade, e só me lembravam as borboletas que volteiam de corola em corola.
A "Quadra" acoitava-os, e era vulgar, lá pela meia-noite, o meu avô abalar-se até eles, para verificar se não haveria "beatas" acesas, que lhe pusessem fogo ao palheiro, já que era o vinho que quase sempre os aquecia por dentro, e lhes apagava os desgostos das mentes ...

O largo da vila era de terra batida.
Dividia-se ao meio pela estrada, por onde à hora do almoço e ao fim do dia, passava a camioneta  "da carreira", que vinha de Évora, e trazia alguns, poucos passageiros.
Sempre corríamos em bando, a acenar-lhe !...
A estrada era ladeada por árvores frondosas, de folha perene, cuja sombra era uma bênção no Verão.
Por debaixo delas, no pavimento de terra, fazíamos as três covinhas alinhadas, do jogo do berlinde, com os calcanhares das botas ;  negociávamos os nossos "tesouros" de arco-íris, cautelosamente saídos de um saquinho de pano, exibíamos orgulhosamente o nosso "abafador" invencível, brincávamos de roda, à Cabra-Cega, à Linda-Falua, às Estátuas ... e claro, ao "agarra", que terminava quase sempre, com joelhos esfolados e sangrantes ...

E depois havia a vila, e depois havia o campo ...
O campo de horizontes perdidos, de searas que resmalhavam no roçar das espigas maduras.
Havia o pintalgado do vermelho das papoilas, do branco, do amarelo e do roxo, que são as cores das flores do Alentejo !

E havia as gentes ...
As mulheres,  geralmente  de escuro, embiocadas num lenço de cabeça, atrás dos postigos, ou sentadas pela tardinha, em cadeirinhas baixas, de fundos de buínho, junto das portas ... Os homens, pelas soleiras ou nos bancos da praça, junto à fonte, chapéu inclinado adiante, para sombrear os olhos, e queixo apoiado no cajado que lhes ajudava o andar já trôpego dos tempos, pareciam adormecidos no sossego  que pairava.
A "pirisca" do cigarro, era colocada atrás da orelha, para ser aproveitada até ao fim.  Quase sempre eram cigarrinhos enrolados pacientemente na mortalha, e que morriam no canto dos lábios, esquecidos ...

Por vezes, só os zumbidos de algum abelhão, ou de uma varejeira impertinente, quebravam o silêncio parado ali.
As ondas de calor junto ao solo, distinguiam-se no ar, com nitidez, e para amenizar, regava-se a rua, até que a fresca descia.
Só então, as andorinhas que faziam ninho nos beirais da Câmara, desciam em bandos rasantes, num bailado de prima-dona, e chilreios ensurdecedores.

Era Alentejo ... era a minha infância !...
Lembro bem !!!



 Anamar

quinta-feira, 14 de março de 2013

" ANTES OU DEPOIS ... "


                                                             19-5-1890        26-4-1916
Estou no piso superior do Alegro.  No piso dos cinemas.
Decidi  vir  ver  um  filme  que me reportaram  como  muito  bom, e que deve estar a sair de exibição : "A vida de Pi".

À minha frente, os grandes painéis de vidro, são uma janela debruçada para o maciço de Monsanto.
O verde denso, circundado por vias rápidas e auto-estradas em rotundas, curvas e contra-curvas a vários níveis, lembra-me o corpo de um animal, constrito pelos anéis envolventes  de uma gibóia, em movimento permanente.
Apesar de estarmos no fim da tarde, há um sol envergonhado quase a sumir, num dia que tem estado de aguaceiros, alternando com céu pseudo-ensolarado.
Há gaivotas que voam por aqui, a espaços, certamente recuadas da orla marítima ...
Há ruído, um ruído uniforme indistinto.
É um ronco, do mundo que vai aqui dentro.  Nada nele se distingue ou sobressai ... Nem uma voz, uma gargalhada, um choro, um grito de criança, um berro ... Nada !
Apenas este coro em uníssono, como um "puré" de sons, em fundo, num tom alto e constante !

Ando a ler sobre Mário de Sá-Carneiro, um escritor e poeta dos fins do século XIX e princípios do século XX, porque direi, que nada além do nome, sei sobre ele.
Na próxima tertúlia literária que ocorrerá em Sintra, depois de Fernando Pessoa, tem tudo a ver, ser abordada a obra de Sá-Carneiro ... amigos íntimos que o foram .

Nos meus tempos de liceu, os alunos que seguiam para Ciências, ficavam com uma precária formação na área de Letras, a partir do antigo quinto ano do liceu, actual nono.
A sua cultura literária, enfermava de lacunas profundas.
Até ao 9º ano, os autores abordados não tinham nada a ver com a contemporaneidade da escrita.
Os assuntos eram tratados exaustivamente, numa abordagem maçante e desmotivadora.  A metodologia utilizada, parecia não contemplar a necessidade da motivação para a leitura e para a escrita.
Lembro a árdua tarefa de dividir as orações nos Lusíadas, verdadeiro quebra-cabeças para quem tinha mais dificuldades.
Lembro Fernão Lopes, Gil Vicente e os seus Autos, lembro as "cantigas de amor", "de amigo", de "escárnio e mal-dizer" ... D. Dinis e o trovadorismo medieval,  lembro o "Sermão de Sto. António aos Peixes" ( séc. XVII )  do Padre  António Vieira, ou  o  seu "Sermão  da  Montanha",  as  "Guerras   de  alecrim  e  manjerona"  ( séc XVIII ),  até   mesmo   o  bem  posterior  "  Frei  Luís  de  Sousa ",  de  Garrett  ( séc. XIX ) ... enfim, lembro uma escrita arrevezada, pouco interessante ou apelativa, fastidiosa, sobretudo para quem não cultivasse a  leitura .
Os autores contemporâneos não eram estudados ... Pessoa  nem sequer era referido, Eça, praticamente arredado dos bancos da escola ... Jorge Amado, por exemplo, uma eminência lá de longe ... não abordada !

Eu era boa aluna, quer na área de Letras, quer na de Ciências, mas nunca me senti "aproveitada" ou estimulada, para a literatura portuguesa ou internacional.
Os meus pais, como já referi, eram pessoas quase iletradas ;  eu, convivia pouco, e portanto o meu leque de conhecimentos também não era propiciador a colmatar-me essas lacunas.
Por isso, o contacto mais alargado com autores renomados, iniciou-se depois de ter casado.
Aí sim, começaram a comprar-se livros em casa, além dos existentes e a que eu poderia ter tido acesso, se motivada, na minha casa de solteira.
Aí existiam os tradicionais livros de Júlio Dinis, Guerra Junqueiro, Eça, Alexandre Herculano, Garrett, Fialho de Almeida, António Nobre, Augusto Gil, Ortigão, Ferreira de Castro ... entre outros, lembro.
Havia também obras de alguns autores estrangeiros de referência, que o meu pai comprara, creio, para rechear a estante da mobília de "torcidos" do seu escritório, com portas de vidros, a deixarem ver as lombadas  devidamente  encadernadas  e  bordadas  requintadamente a ouro.
Na altura era um pouco assim ...
Nada mais !

O  meu ex - marido era da área de Letras ;  licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, um meio privilegiado para o desenvolvimento de uma formação global mais alargada.
Coimbra era terra de estudantes, como se sabe, era rica em iniciativas culturais, em tertúlias, debates, conferências, ou simplesmente em alargados convívios de café, troca de experiências de vida, e de conhecimento, em que a dialéctica abria horizontes, suscitava a discussão, e o cotejo de opiniões, valores e princípios.
Não é à toa, que uma larga  elite intelectual  deste país, aí tenha então sido forjada .
Ele viveu a Coimbra dos anos 60, em plena crise académica, com o país e a Europa em convulsão, o que propiciou ainda mais, tomadas de consciência e desejo de informação sobre toda a revolução social e política que então se vivia, em Portugal e no Mundo.
Sendo um jovem ávido de conhecimentos, alicerçou-os exaustivamente, também pela leitura sistemática de jornais, revistas, publicações ( algumas censuradas e portanto clandestinas ), "bebendo" e dissecando tudo a que tinha acesso.

Tivemos portanto, também aqui, formações bem dispares !

Tudo isto a propósito de Sá-Carneiro ... Sá-Carneiro que se suicidou em Paris, com vinte e cinco anos, apenas.
Amigo íntimo de Pessoa, trocou com ele profusa e sistemática correspondência, até ao momento da sua morte.

Até aqui, tudo mais ou menos normal ...
Mais ou menos, porque não pode ser normal em época nenhuma, um jovem de 25 anos por fim à vida !
Mas o que me impressionou verdadeiramente em tudo isto, e o que me fez um sentido absoluto nesse acto, que seguramente classificamos de tresloucado, foram os motivos por que o fez.

Diz a sua biografia, que se tratava de uma personalidade totalmente desenquadrada socialmente, uma pessoa desajustada e em permanente sofrimento, por viver uma realidade que lhe era pesada, que não lhe era nem significativa nem consequentemente gratificante, que não lhe valia a pena, na qual não encontrava, não encontrou, razão suficiente para ter que a suportar.
Sá-Carneiro era um desencantado, um defraudado da existência, um remador cansado, contra marés de desespero ...
Cada dia,  representava uma pena a cumprir, cada momento era arrancado de uma realidade dura, desinteressante e insatisfatória.
Talvez levianamente o classificássemos de um "doente" !...

Protelou enquanto deu, a decisão final, e foi a impossibilidade de alcançar o equilíbrio emocional, foi o inconformismo experimentado, que a precipitaram.
A sua obra, contudo, ficou, frutificou e ainda vive, apesar de ter sido fugaz.
Deixou fortes marcas na literatura portuguesa.  Foi um dos expoentes do modernismo, um futurista, foi um dos  membros  fundadores  ( juntamente  com  Pessoa  e  Almada  Negreiros ), da  revista  literária  Orpheu (  verdadeiro escândalo literário, à altura, e por isso, censurada ;  apenas saíram do prelo, dois números ).  Em última análise, Sá-Carneiro foi uma alma inquieta, à procura de si próprio ...

"Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando ;  afinal tenho o que quero : o que tanto sempre quis - e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui " ... diria na carta de despedida, dirigida a Fernando Pessoa, o qual  afirmaria mais tarde : " Morre jovem o que os Deuses amam "

Como podem ser tão iguais, as formas de sentir, de viver, do encarar da existência, por parte dos  seres humanos, independentemente das épocas, das gerações e das realidades que se atravessam !!!...
Há  de  facto, ao  longo dos tempos  e  das  vidas, antes ou  depois, muitas almas inquietas em  busca  de si mesmas,  sem nunca se encontrarem !!!...

Anamar

sexta-feira, 1 de março de 2013

" NÃO ME DÊS FLORES "



Não me dês flores !

Não me dês flores porque aqui, morre tudo.
Nesta casa, junto de mim, tudo parte.
A orquídea, o antúrio, a begónia e todas as begónias da vida que já me ofereceram, e todas as outras ... morrem, vão morrendo !
E dá-me uma raiva ... porque morrem em silêncio, não gritam, não esbracejam, não se rebelam, quando eu acho que a morte é demasiado importante p'ra não se fazer estardalhaço !

Por que é que não me querem incomodar, se o deveriam ?
Se eu não converso com elas como tinha que ser, se não lhes dou atenção, como a Catarina faz, que lhes fala, ou como a minha mãe faz às dela, dando-lhes ternura ?!
Por  isso,  elas  ganharam  vida, quando  regressou, e  transformaram  de  novo  a  cozinha,  num  jardim verdejante ...
Eu acho que consigo amaldiçoar o que me cerca, o meu mundo.
Eu acho que sequei por dentro, que me tornei um ser ignóbil, quase monstruoso.  Acho que não consigo ter lampejos de afecto, de dedicação, de generosidade.
Tornei-me uma egoísta extrema, endureci, fechei.  Parece que na verdade nada me toca, e no entanto tudo me mata !

E não sou tolerante, não consigo ter doçura, refinei a agressividade, a incompreensão, e não conheço a complacência, a paixão.
Olho o Mundo, e brigo com ele continuamente.  Faço gosto em reduzi-lo a nada, em desvirtuá-lo, em desvalorizá-lo.
Sou ressabiada, sou invejosa, e desdenho do que não alcanço.
Pareço saborear a raiva de magoar, quase de ofender.  Isolo-me e afasto-me, e no entanto ...
Bom, "no entanto" ... é tudo o que vai aqui dentro e de que não vale a pena falar ... "No entanto", é o que me aperta o peito e me derrama lágrimas pela cara abaixo ... " No entanto", é o que me desperta vontade de morrer ... "No entanto", é o que me faz sentir reles, pequena, esterco humano.

E por isso, tudo parte, numa espécie de maldição previsível talvez, lógica talvez, justa talvez ...
"Ninguém se abraça com cardos "... diria a minha mãe, nos seus sapientes pensamentos.
É isso. Ninguém toca um ouriço com os espinhos espetados ... e se calhar, o ouriço gostaria de um carinho ... ou não ??
Tudo e todos gostam de um carinho ... dizem !

O Óscar já partiu há mais de três anos.  Agora a Rita vai embora. Já me avisou.  Diz que não fica mais.
Olhou para mim, ontem, amarfanhada no fundo da jaula do hospital onde está internada, ouviu-me e cheirou-me de longe ... porque não se mexeu.  Mas acho que me conheceu.  Tenho quase a certeza.
E nada posso fazer.  Não posso impedi-la de seguir o seu trilho.
Grito com o Jonas, um bébé de sete meses, que a jogar à bola me inunda a cozinha com a água do bebedouro, que salta e deita tudo abaixo ... E  fico mal, muito mal, quando ele olha surpreso p'ra mim sem perceber bem, e quando sempre me responde com meiguices.  Porque o Jonas derrete-se em carinho ...

Respondo mal à minha mãe, com um cansaço acumulado, porque a sua saúde debilitada, implicou uma logística que me virou a vida ao contrário.
Era óbvio, era espectável.  Sou filha única, ela tem 92 anos, eu deveria ter, para lá da inerente e devida compaixão, amor e dedicação ... a real obrigação de tudo fazer.
É assim, certo ?
O meu egoísmo torna-me monstruosa, horrenda, má.
Não há nada pior, que um ser desapaixonado.  E é o que eu sou.
Pareço não conseguir nutrir sentimentos de compaixão, que é uma forma de paixão para com os outros.
E depois, quando ela partir, verei o efémero de tudo, bem ali na minha frente, terei a real dimensão da injustiça do meu egoísmo, e da minha ingratidão.
E ficarei mais vazia ainda ...

Consegui afastar-me doídamente dos meus.
Adoro os meus pequeninos, mas não me transcendo por eles.
Pareço conseguir viver bem, sem ninguém.  Pareço independer da preocupação, do afecto e do amor que me dedicam ... Porque o fazem, de facto !
E senti-lo, ainda me deixa mais mal, porque me coloca frente a um espelho, de cuja imagem preferia fugir a sete pés ...

O meu ex-marido dizia : "Vai p'ro deserto ... vive lá " ! ...  Creio que dizia ... já não lembro bem, mas acho que sim.
Pelo menos isto ecoa-me nalgum lugar.
Como  quem  diz : "És tão execrável, que "marra" contigo própria, não massacres os outros ... Não sou Cristo " !
De facto, os seres de exclusão devem na verdade ser excluídos da sociedade.  Assim são os malfeitores, os criminosos, os imerecedores ...

Hoje a minha filha mais nova, aniversaria.  Trinta e cinco anos também muito sofridos já.
Também dela estou afastada, e no entanto ela faz-se presente quando pode ou quer.  E queixa-se.  Queixa-se  que  cortei  o "cordão"  radicalmente,  cedo  demais.  Ou  talvez  apenas,  o  seu  "cedo  demais" ...
Porque provavelmente precisava de o ter ainda amarrado a mim, e eu fui impiedosa, não quis saber ...

Dos amigos também recebo muito mais do que dou.  Aliás, creio que não dou nada, estou convicta que darei muito pouco.
E pergunto-me que estranho fenómeno é este, que "bonomiza" tanto as pessoas com quem tive o privilégio de me cruzar, que ainda assim, sempre me estendem uma mão para não me deixarem ir para o fundo ...
Que  raio !  Por  que  são  as  pessoas  tão  humanas,  e  eu  sou  um  estupor ??!!...

E depois, dou comigo a tentar lançar culpas de toda esta anormalidade, irreversibilidade e determinismo ... sobre a Vida ... sobre o Destino ... sobre o Azar que tive, ao atravessar "desertos" emocionais que me destruiram ... sobre a infelicidade de não me ter dividido com pessoas capazes de terem tocado o melhor de mim, ou antes, que não tivessem sabido aproveitar o melhor de mim ... ou antes ainda ... que tivessem destruído o melhor de mim !!!...

Uma merda !

O  Destino é vago ... a Vida, não existe ... o Azar, a gente cria-o !
Estas "entidades" são anónimas.  Têm a comodidade de terem as costas largas, serem ambíguas, abrangentes em excesso, poderem bem com as responsabilidades das  MINHAS  derrotas, auto-justificarem-me hipocritamente ... piedosamente ... dando-me o aconchego da auto-vitimização, cómoda e conveniente !
Derrotas "MINHAS", sim ... só minhas, porque eu é que não tive habilidade, capacidade, magnanimidade, altruísmo, inteligência, sabedoria ...
Eu é que não soube fazer a minha "Vida", eu é que não soube traçar o meu Destino, eu é que não descobri caminhos de sorte, eu é que esqueci de "regar" a minha existência ...

E por isso, como tudo na minha casa, eu também morro aos poucos, todos os dias mais um bocadinho ...

Não me dês flores !
Não mas dês, porque junto de mim, tudo parte, acredita !!!...

Anamar

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

" INVEJA " ...



Janeiro de novo.  Um marasmo assustador !
Devia haver um manual de se aprender a viver só ...

Li há poucos dias, numa daquelas revistas que acompanham alguns jornais de fim de semana, uma entrevista com a escritora Hélia Correia, que me apaixonou.
E apaixonou, porque há imensas escolhas, posturas e opções de vida suas, que invejei e em que me revi.
Não conheço nada da obra de Hélia Correia.  Até esta reportagem, ela era para mim, uma ilustre desconhecida.
Hoje, para lá de me ter um rosto, ( o das fotografias ), tem-me muito mais em comum.

Em primeiro lugar, Hélia gosta de escrever.
Depois, escreve sazonalmente, ou seja, não é fabricante de escrita.  Não escreve quando os outros querem, não escreve a metro, escreve quando chove, quando o céu se carrega, e o cinzento nevoento de Janas  lhe mostra em silhueta só, a Serra de Sintra, paixão de vida.
Escreve quando tem mesmo algo para dizer.  E escreve na sala, que prevejo aconchegante, com salamandra para os dias gélidos, papel de parede classicamente inglês, frente à Pena.
Através das duas janelas que ladeiam a porta daquela casa pequena que alugou, vê-se o  jardim ou o quintal,  como se queira.
Por ele, perambulam oito gatos lindos, ou seja, Hélia também privilegia os felinos, como companhia.

Depois, tem um sótão, local de todos os mistérios ...
Como eu sempre sonhei ter um sótão !!!...
Acho que um sótão é  um refugio de tudo e de todos, e se calhar até de nós próprios.
Acho que no sótão, só os duendes, os gnomos, e esses seres sobrenaturais, nos descobrem.  Nele, sempre  nos podemos esconder das visitas indesejáveis, das presenças incómodas, brincar de esconde-esconde com a nossa mente, e seguramente fugirmos dos nossos pensamentos mais desastrosos ...

Hélia vive só ... só e a Natureza que tem à volta.
Os córregos, que a levam em passeios perdidos até às Azenhas, pela Serra, ou a ver o mar que está ali a dois passos.
Vê os cogumelos que evita pisar, há-de ver as primeiras flores silvestres de cada Primavera, e os musgos trepadores das árvores da mata, nos Invernos.
E verá também os pássaros do mar, e os pássaros dos campos, e os coelhos bravos e as perdizes, e todos esses bichos soltos, como ela, afinal !

Hélia tem um namorado, o também escritor Jaime Rocha.
Prevejo uma ligação perene entre eles ;  perene e sólida ;  linguagens comuns, sensibilidades comuns, olhos habituados a verem as mesmas coisas, a amarem os mesmos pormenores.
Sim, porque de certeza, aquilo é gente de pormenores ; gente de se extasiar com a lua cheia, nas noites límpidas, sobre o Monte da Lua ... gente de se silenciar, para ouvir o piar das corujas ou dos mochos, pelas matas ... gente de sempre esbugalhar os olhos por cada ano, como se fosse o primeiro, quando as madressilvas selvagens se engalanarem, com as flores perfumadas ... e mais ... gente de colher braçadas delas, para dentro de casa, para que o perfume inebrie a sala inglesa ...
Gente de apanhar as "carrapetas", que são aqueles chapéuzinhos castanhos, dos castanheiros dos bosques, com cheiro a floresta, e cujo aroma a uma espécie de carqueja, perdura "ad eternum", como o cheiro do eucalipto, por exemplo ...

Se não conheço Hélia Correia, menos ainda conheço a sua casa.
Tenho a certeza que é uma casa autêntica, daquelas casas em que, do mobiliário às cortinas, dos quadros aos livros, tudo é verdadeiro ... não haverá cedências, haverá genuinidade.
Sinto-a uma força da Natureza, adivinho-a um produto daquilo com que ela se funde ... a terra !
A terra e alguma solidão, que acredito que ela não sente.
Hélia nem sequer "conta" o tempo, diz.  Vive intemporalmente, vive simplesmente, deixa-se viver ...
E saber viver assim, é também uma arte, creio.
É um despojamento, é um encolher de ombros ao mundo, e viver p'ro essencial ...

Cada vez mais, acredito que o nosso mundo só pode ser feito de coisas que nos reflictam, que nos sejam significantes, nos façam sentido ... seja nos sonhos, nos desejos, nos lugares, nas pessoas, ou nas ideias que nos circundam ...
Cada vez mais, tenho a certeza que com o caminhar dos anos,  só  "entenderemos" verdadeiramente, quem tiver a nossa linguagem, quem tiver percepções próximas, quem tiver olhos com sensibilidades direccionadas para o que também nos sensibiliza, quem tiver vivências paralelas, quem saiba, e queira percorrer "atalhos" semelhantes ...

Senão, sempre ficará uma conversa de "surdos", uma "dislexia" de emoções, que apenas decepciona, defrauda, e em que não adianta apostar !...

Anamar

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

" YES ... WE CAN " !...



Obama foi reeleito para um segundo mandato de quatro anos.
Claramente, embora não confortavelmente, o que significa que há um  distanciamento considerável, no que concerne a concensos.
Entendo-o contudo, como positivo, porque de alguma forma, isso sempre funciona como contrapoder regulador e equilibrante, em qualquer  Estado de Direito.

Não sou pró-América ... não sou objectivamente  pró-nada, porque de política tenho apenas a inerência de ser humana, e qualquer homem é um político em todos os momentos da sua vida, pessoal, social, na vida do Mundo que habita.
Eu sou apenas pró-valores, pró-justiça, pró-equidade, pró-paz ... e os "prós" todos, que a cumprirem-se, trariam a tão almejada felicidade, a este planeta tão massacrado.

Obviamente que tudo isto são frases feitas, porque não têm idade ... demagógicas, e talvez apenas só, distantes e utopicamente significativas.
Mas há uma, que estando associada à primeira campanha de Obama,  o  marcou,  a  terá  marcado  indelevelmente  ...  Foi   afinal   o  seu  rosto  : " Yes ... We can "!

Ora bem, não bastou a América querer, nem crer ... todos sabemos.
A crise caíu rotunda sobre o país, e alastrou  como rastilho de incêndio incontrolável.
Na hecatombe, todos fomos arrastados, todos estamos arrastados, afundados, praticamente moribundos !

Mas Obama, creio, continuou a ser um sinal de esperança.
O Prémio Nobel da Paz ( 2009 ), distingue um homem que se afirmou e impôs - apesar de todo o insucesso  no alcance de metas por si traçadas, na campanha eleitoral anterior - sobretudo por posturas.
Sempre em qualquer situação da vida, sempre em qualquer realidade de  maior ou  menor responsabilidade ( no seu caso, quer como cidadão, quer como estadista ), as pessoas credíveis sempre o são, pelos seus posicionamentos no terreno, porque é lá, na hora da verdade, que se ganham as batalhas.
Foi sempre lá, trazendo o poder ao povo, simplesmente, numa aproximação e simbiose imensas, que ele se tornou menos Presidente, e muito mais "povo" mesmo ...

Os princípios defendem-se por palavras ... é louvável que o sejam ;  mas não é nos gabinetes, nas assembleias, nas bancadas parlamentares, nos partidos políticos, que se ganham !
Ganham-se nas ruas, ganham-se por acções, e não por meras palavras e vãs promessas.  Ganham-se mostrando transparentemente, que se não se fez melhor, pelo menos  se tentou honestamente, se lutou com objectividade e dignidade,  por isso ...
As causas ganham-se objectivamente, na dureza e no realismo do dia a dia !

Tenho para mim, que a honestidade, a frontalidade, a simplicidade, a inteligência, conferiram a Obama, uma particular sensibilidade para se solidarizar humildemente, em permanência, face aos revezes da realidade existente.

A humildade, é efectivamente a palavra-chave, penso, da sua personalidade, enquanto homem, cidadão, político, na família ou na presidência, como disse, e que sem nenhuma dificuldade, transmite para "fora".
O cidadão comum ,que se sente injustiçado, maltratado, marginalizado ... todos nós afinal, que diariamente sentimos o peso da insegurança, que são as nossas vidas neste momento ... todos nós, que esbracejamos para ainda conseguirmos manter estoicamente a cabeça fora de água ... todos nós, que não vislumbramos já nenhuma luz em parte alguma, sentimos que por detrás desse homem, existe alguma coisa que não tem preço, e que se esquece com demasiada frequência na vida ... VERDADE !

Uma criança "sente" por detrás das palavras que lhe dizem, a consistência ou não, da verdade que os pais lhe transmitem ...
Um adolescente, um jovem, "sentem" claramente, nos bancos das escolas, das Faculdades, a verdade ou não, do professor que têm à frente, sem nenhuma dificuldade ...
O adulto "sente" claramente, se lhe impingem "gato por lebre", sem grande esforço ...
Quase todos temos a percepção se alguém é um "bluff", um pantomineiro ou um aldrabão, por mais bem encenado que o seja ...
Todos conseguiríamos dizer, baseados muitas vezes tão só no "feeling" que nos passam as figuras com quem nos cruzamos, se esse indivíduo é credível, é confiável, é honesto ... sem grande margem de erro.
Porque, pode enganar-se alguém uma vida ... alguns, algum tempo, mas é impossível enganar todos, o tempo todo !...

O ser humano, por melhor actor que seja, acaba deixando cair máscaras, acaba desmistificando a imagem de "bom menino", que se esforçou por passar com muita convicção, acaba demarcando-se, mesmo inconscientemente, da colagem feita durante mais ou menos tempo, a um "boneco" socialmente correcto ... deixa escorregar por si abaixo, os véus, desvendando muitas vezes uma nudez pobre, triste e vazia, enganadora ... intencionalmente desonesta e ludibriadora !...

"Yes ... we can "... é uma frase de esperança, uma frase de convicção, uma frase de determinação ...

Assim Barack Obama consiga ter o apoio, o ascendente, o carisma suficiente, e a força popular, para pôr de novo em pé, um país - que feliz ou infelizmente é  "motor de arranque"  do Mundo - que nele confiou uma vez mais ...
Oxalá  consiga  restituir a confiança, a liberdade e a  fé,  para  que  possamos,  não  só  acreditar  de  novo, como  de  novo   voltar  a  SONHAR !!!...

Anamar

domingo, 28 de outubro de 2012

" QUEM FOR A MIRANDA ... "



Agora, quem vai a Miranda, não vai só ver os "pauliteiros" ...

Este meu espaço, já o referi sobejamente, para lá de ser profundamente "meu" ( talvez o espelho em que precisaria olhar-me, e não olho ), é também espaço de veiculação de tudo o que acho importante divulgar, seja em que campo for, tudo o que acho relevante e merecedor de atenção, de qualquer cidadão que a ele aceda.

Comecei o meu post, pegando no refrão da velhinha canção popular, que todos por certo  lembrarão, para introduzir a notícia que aqui posto, e que é digna de uma análise justa, pelos mais variados aspectos que a ela concernem.

Realmente, hoje, quem for a Miranda, não irá só ver os "pauliteiros", talvez vá ver com os seus próprios olhos, a Isabel e a Tânia, mais duas jovens que engrossam a estatística do desemprego neste país.
São simplesmente mais duas enfermeiras, que tiveram uma iniciativa filantrópica, meritória e enternecedora .

Na ausência de trabalho, e com o ganha-pão negado, pela crise que atravessamos, decidiram pôr as suas vidas, o seu  "know-how", o seu esforço, o seu tempo, ao serviço da comunidade.
Mas não de uma comunidade qualquer ;
buscaram o desconforto, arriscaram expor-se à natural hostilidade advinda da desconfiança, sobretudo da população idosa ( como seria de esperar ), de uma aldeia do nosso Portugal interior, do nosso Portugal que fica  por  detrás das serras,  para  trás  da civilização , para  além  do  conforto ... o  nosso  Portugal marginalizado  e  desprotegido ...
Aquele que fica também, para lá da memória dos dirigentes, e do conhecimento das entidades responsáveis, neste país !...

Tenho particular respeito e admiração pelo trabalho voluntário, indistintamente.
Sempre  tenho  perante  ele, ternura  e  humildade,  por  considerá-lo  um  dos expoentes  máximos da capacidade  do Homem se dar, se transcender, de usar a generosidade do seu coração em prol dos desfavorecidos ... de usar a partilha do seu "eu" ( quase sempre, mais ou menos egocêntrica e comodista ) em favor do semelhante ... de buscar e pôr ao serviço dos outros, o melhor de si próprio ...
Não se trata, obviamente, de uma "caridadezinha", mas de um verdadeiro altruísmo !

É quando deparo com exemplos destes, que acredito que talvez a Humanidade ainda não esteja completamente perdida, que o ser humano ainda tenha em si ( apesar de tudo e de todos ), uma capacidade de reabilitação, e uma força de renascimento, e de reconversão reais !!!...

E sinto-me gratificada, por perceber que é nas gerações jovens desta terra, e se calhar, do Mundo, que começa a germinar uma sementinha de consciencialização, de sensibilização e entendimento, face às revoluções necessárias acontecerem nas mentalidades, nas posturas, nas convicções, para que o Mundo, qual  "Fénix",  possa  renascer das cinzas a que chegou !...

Sem dúvida, o exemplo de Isabel e Tânia, será algo que nos fará pensar, e mexerá talvez em muitas consciências indiferentes e acomodadas, em muitos espíritos adormecidos !!!...

Anamar



Miranda do Douro

Há duas enfermeiras que trabalham a troco de casa, comida e roupa lavada


Isabel Moreira e Tânia Dias vão a casa dos habitantes. Brevemente, outros profissionais poderão juntar-se ao projecto Isabel Moreira e Tânia Dias vão a casa dos habitantes. Brevemente, outros profissionais poderão juntar-se ao projecto (Foto: Nelson Garrido)
"Oito meses de portas fechadas e sem emprego levaram duas recém-licenciadas a fazerem-se à estrada, subirem país acima e aterrarem, de armas e alguma bagagem, em Atenor, a aldeia do concelho de Miranda do Douro, conhecida pelo seu esforço de preservação dos burros, os de carga.

Isabel Moreira e Tânia Dias decidiram montar, durante três meses, um projecto de voluntariado em que oferecem à comunidade os seus serviços, como a medição de tensão arterial, diabetes, acompanhamento a consultas, apoio na medicação ou na execução de pensos, por exemplo. Findo o prazo, esperam um contrato.

Os sonhos de trabalhar num hospital ou centro de saúde, foram-se desvanecendo à medida que os dias em casa se iam transformando em desespero. Isabel Moreira, de 39 anos, natural da Mêda, na Guarda, trocou uma carreira como gerente hoteleira pelo sonho de tratar dos outros. Um dia, desafiou a colega de curso Tânia Dias, de 22 anos, de Seia, também no distrito da Guarda, e com o mesmo sonho, a embrenharem-se no Planalto Mirandês e darem a conhecer o Laços, um projecto de apoio à comunidade em regime de voluntariado, para já, com a esperança de lançar a semente que no Verão lhes possa trazer o ordenado.

Até lá, contam com o apoio da Junta de Freguesia de Atenor, cujo executivo há muito dava voltas à cabeça para uma solução que, pelo menos, amenizasse o crescente envelhecimento da população e a desertificação do território. Depois de uma conversa casual, no início do ano, com Moisés Pêra Esteves, o presidente, o projecto foi pensado e, desde 17 de Março, trouxe outra alegria aos quase 200 habitantes desta freguesia.

Três meses à experiência

“Propusemo-nos a ficar três meses à experiência, de forma a darmo-nos a conhecer e ao nosso trabalho", conta Isabel Moreira, acrescentando que o apoio da junta de freguesia passa por alojamento, carro para as deslocações e acompanhamento dos idosos às consultas e um pequeno subsídio para alimentação e outras pequenas despesas.

A somar a esse apoio, somam-se as ofertas das pessoas da terra, que, como bons transmontanos, não têm pejo em partilhar o que a terra lhes dá. “Desde alfaces, cenouras, couves, batatas, azeite, as pessoas dão-nos de tudo o que produzem. No início até estranhámos mas ficam ofendidas se não aceitamos”, explica a enfermeira que durante 22 anos trabalhou na hotelaria.

Para evitar surpresas e suspeições, o presidente da junta acompanhou as duas profissionais e, durante três dias, apresentou-as a todos os habitantes da freguesia, um a um. “No início, houve algumas pessoas que disseram que não estavam interessadas nos nossos serviços e então não íamos a casa delas. Mas, depois, mudaram de ideias, quando viram o que fazíamos, e até pediam aos vizinhos para nos dizer para passarmos por lá também”, contam as enfermeiras, com um sorriso.

Passados praticamente dois meses, a iniciativa está a “superar as expectativas”, dizem. Também a junta de freguesia está satisfeita com a dinâmica e melhoria da qualidade de vida dos seus habitantes. Por isso, Moisés Esteves revela que estão a ser “criadas as condições para o projecto continuar”. Por um lado, as várias associações da terra estão a ser convidadas a contribuir. Por outro, vai ser criada uma outra associação, com o objectivo de agregar os excedentes da produção agrícola da freguesia, sobretudo azeite, para os vender e investir os lucros no pagamento dos salários das duas enfermeiras, que já estão a tratar de parcerias com outros profissionais de saúde, como dentistas, psicólogos, terapeutas da fala ou terapeutas ocupacionais. Tudo valências que existiam nos centros de saúde da região e foram sendo retirados nos últimos tempos, em nome da contenção de custos.

"Sobretudo o mimo"

Mais do que os cuidados de saúde, são os cuidados emocionais que têm feito as delícias dos mais velhos de Atenor. “Sobretudo o mimo”, confessa, com um sorriso, Isabel Moreira. Mais do que saúde, as enfermeiras trazem companhia às pessoas. “Contam-nos tudo. As queixas dos filhos, as coisas que acontecem por aqui... Tudo!”, garante Isabel Moreira, mãe de quatro filhos, que ainda fica com o coração apertado de cada vez que se lembra do dia em que explicou à filha mais nova, de 12 anos, que vinha para Atenor.“Ai mãe, para aquele sítio tão longe?", perguntou-lhe. "Pois, filha, tem de ser.”

As duas enfermeiras revezam-se de modo a assegurar os cuidados à população 24 horas por dia e de maneira a poderem ir a casa. A distância entre Atenor e a Guarda não se estreita sequer com a ajuda da Internet ou do telemóvel, os montes cortam o sinal.

Noventa por cento dos utentes do projecto Laços tem idade acima dos 65 anos, “a média de idades supera os 70 anos”, dizem as enfermeiras. “Eu dizia mal da minha zona, na Mêda, mas aqui é muito pior”, confessa Isabel, entre duas visitas. Para trás, ficou Fernando Marcos, cujos 66 anos vêm dar um vislumbre da estatística. Um olhar mais certeiro do que o seu, que já se perdeu por um glaucoma, apesar das 12 operações. Mediu a tensão, um pouco mais alta do que o costume, os diabetes, tomou a medicação e lá foi contando a sua história. Sentado no escano da cozinha, garante que as duas enfermeiras “não fazem mais porque não podem”. “Até foi uma boa ideia. Andamos mais acompanhados, mais vigiados e ajudam a passar o tempo”, explica, sob o olhar atento de Isabel, a esposa, que lá vai sussurrando que o serviço “dá muito jeito por causa da medicação”.

Além disso, as duas enfermeiras também os acompanham ao médico, de carro, e ajudam na tradução da linguagem técnica usada no consultório e que, muitas vezes, é imperceptível. “Não tínhamos ninguém que se preocupasse connosco. Para levarmos uma injecção tínhamos de ir a Sendim”, a uns dez quilómetros, aponta Marcos.

Quando os instrumentos de medição da tensão regressam à maleta de trabalho, o homem tem alguma dificuldade em despedir-se. “Não quer que fale mais?”, pergunta, ainda com esperança de mais uns dedos de conversa.

Um pouco mais à frente, do outro lado da rua empedrada da aldeia de Teixeira, mora Gregório, que na véspera sofrera uma queda. “Ir ao médico? Nem pensar. Fui uma vez à urgência e quase me matavam”, recorda, sob o olhar reprovador da mulher, Natividade da Purificação, que aproveita para desfiar um rol de queixas. “Sabe, eu também ando em consultas desde 1999. E tenho de pôr o oxigénio. Mas eu é só para ir passando, porque tenho uma crónica [bronquite] muito grande”, explica.

Mudado o penso e dada a medicação, é hora de partir rumo a outra “cliente”. “Espere lá, então hoje não me medem a tensão?”, atira ainda a tempo o Gregório, que tem direito a mais uns minutos de atenção. No final, ainda pergunta “quanto é”. “Nada? E não querem uma pinga?”, insiste. Não que já se faz tarde e à espera está já a senhora Felicidade. “É só para lhe medirmos a tensão e fazemos um bocadinho de companhia”, murmura Isabel Moreira, já no caminho. Entretanto, Tânia foi medir a tensão a outro vizinho, o senhor Altino, que está com pressa para ir para o campo.

Ao todo, são cerca de 50 as pessoas que já esperam, ansiosas, à porta de casa a chegada das duas enfermeiras. Os laços já estão criados."

" PÁRA E PENSA ! " - CARTA ABERTA A CRISTIANO RONALDO



 
 Ronaldo

És um garoto ainda ;  tens idade para ser meu filho, aliás, tenho filhas bem mais velhas que tu.
Perdoa portanto, tratar-te tão informalmente !

Tenho acompanhado de longe, o teu percurso de vida, pessoal e profissional.
Afinal, quem não acompanha??!!
Queiramos ou não, os "media" bombardeiam-nos com o CR7, com o que queremos, e o que não queremos saber sobre ele.

A tua vida profissional encher-te-á de orgulho, a ti e aos teus, é legítimo ... orgulho ao nosso pobre e pequenino país, porque, por ti, se dá a conhecer ao Mundo.
Levas felicidade a muitos rostos que a têm escassa ... apenas porque discutem os teus lances, na mesa da taberna ou do café, vibram com os teus golos, triunfam contigo nas tuas vitórias, e magoam-se contigo nos teus insucessos ( porque, humano, também os tens ).

Ouvem-se e lêem-se entrevistas tuas, declarações tuas .
A tua "tristeza" no Real,  virou  notícia mundial ,  as tuas alegrias,  são  divididas, calhando um pedacinho a cada um dos que torcem por ti... muitas vezes, apenas porque são portugueses ... e alguma alegria nos é devida, afinal !...

Já viajei muito pelo estrangeiro, do oriente, às Américas, e quando me perguntavam a nacionalidade, de imediato um sorriso gaiato pairava nos rostos, um brilho matreiro saltava aos olhos, e em qualquer língua ou dialecto, sempre era dito ... "Cristiano Ronaldo ... the best !!"

A tua vida pessoal é, foi e será sempre devassada, mas talvez excessivamente devassada, e talvez tu o permitas.  Porquê ?   Não sei !   Afinal, não careces de protagonismo,  já o tens de sobra !
Um destes dias, ouvi alguém que privou contigo de perto, e te conhecerá bem ( Felipe Scollari ), dizer-te um miúdo humilde, atento, esforçado, exigente, lutador ...

Tu vieste de baixo, Ronaldo ;  a tua ascendência é de gente que conhece o valor da dificuldade, do sacrifício, do esforço, da luta, da mágoa ... se calhar da ausência de esperança muitas vezes.
Lembro-te, nos relvados, a elevares o pensamento ao teu pai  ( que não ficou para assistir ao que és hoje ), sempre que marcavas um golo, e o estádio "vinha abaixo".
Lembro-te, quando pertencias às escolas do Sporting, que te descobriu.
Afinal, é o meu clube de simpatia ( porque na verdade, não tenho realmente nenhum clube ) ...
É o clube onde os meus três netos, praticam as modalidades desportivas, com que completam as suas vidas ainda de crianças, sonhadoras também já, com medalhas e pódiuns !!!

Cristiano, tu és filho deste país, embora sejas um "puto" do Mundo !

Hoje, deparei-me, numa destas revistas que se nos enfiam pelos olhos dentro, nas bancas, com a manchete : "Bomba exclusiva !  Ronaldo pagou 800 mil euros por um modelo de luxo da MCLAREN  ( No Mundo há apenas 5 ) ! "

Fiquei uma vez mais estupefacta, a pensar :

Saberás tu, que no teu país, há 820 mil pessoas no desemprego ?  Há mais de 3000 sem-abrigo, a viver pelas calçadas do nosso chão ?

Que são devolvidas aos Bancos, 25 casas por dia, sendo que mais de 2000 o foram, em apenas três meses, por incumprimento bancário, das famílias ?

Saberás tu que há 400 mil idosos a viverem sozinhos, e que Portugal é o sexto país da Europa, onde as pessoas com 65 anos, têm menos anos saudáveis de vida, pela frente ?

Ter-te-ão dito que em 2011, a dívida pública desta tua terra, foi dez pontos percentuais acima da que existia em 1892, quando o país foi obrigado a declarar bancarrota ??

Saberás, que por dia estão a fechar 13 empresas, lançando mais pais de família na rua ?
Saberás que em 2011 também, os suicídios motivados pelo desespero, fruto da crise, vitimaram 1100 portugueses, sem qualquer luz ao fundo do túnel??

Interrogo-me se saberás, que mais de 100 mil cidadãos emigraram, a uma média de 180 jovens por dia, na faixa etária dos 25 aos 34 anos, empobrecendo também em valores, e mão de obra qualificada, o teu país??

Ou se estarás informado, que 69% dos estudantes universitários tenciona emigrar logo que termine a vida académica ... para sobreviver ??

Disseram-te que há gente que cancela consultas médicas, e "raciona" a medicação prescrita ( e que deveria consequentemente tomar ), porque simplesmente não tem dinheiro para a adquirir ??!!

E com certeza, não ignoras que à semelhança de Portugal, onde todas as medidas restritivas estão a tirar-nos não só o pão, mas também a esperança, toda a Europa está igualmente a rastejar, com um esforço inaudito, para ainda se manter à tona !!

Diz-me Cristiano, tu, que nasceste com um dom, que foi brincares com uma bola, como um malabarista no circo ... tu, que de uma cartola sacas um "coelho", num segundo ... basta apanhares a bola  de jeito ... e a baliza à tua espera ... tu, que já tens um filho, que te terá forçosamente acrescentado maturidade ( a gente cresce, amadurece e envelhece com eles, verás ! ) ... Diz-me Ronaldo, já reflectiste um pouquinho só, sobre tudo isto ??!!...

Não pretendo armar-me em moralista ... aliás, quem sou eu para dar lições de moral a alguém ?...
Não pretendo sequer usar demagogia barata ... ( e eu sei que os teus bens, ninguém tos deu, resultaram naturalmente do teu esforço, óbvio ) ... mas ... mas ... mas ...

Fala-me de justiça, Cristiano ... fala-me de provocação, fala-me de ostentação sem limite, fala-me de excentricidade,  deslumbramento, de falta de sobriedade ... fala-me de alguma falta de "saber estar", ou até de infantilidade ...

Estas palavras, talvez duras de ouvir, não te dão nenhum toque aí dentro do peito ??
Não te transportam por curtos instantes que sejam, ao miúdo anónimo, que dava uns pontapés na bola, na sua escola, aos três anos de idade, lá na longínqua Madeira ??...
Um puto, que certamente jamais sonharia ter pela frente, o " conto de fadas" com que entretanto a Vida o presenteou ??!!

Pois é Cristiano Ronaldo, estás a perceber certamente onde quero chegar !...

Sou mãe, sou avó, sou professora, convivo com muitas gerações que estudam, com mais ou menos sacrifícios ( exagerados sacrifícios mesmo, acredita ) !...

Desejo-te as maiores felicidades na tua carreira e na tua vida pessoal ... desejo-te afinal tudo de bom, mas pára de quando em vez, nesse deslumbramento em que vives, e que,  podes acreditar,  é, e  será sempre, EFÉMERO somente !...


Muitas cartas têm um "Postscript" ....
Pois bem, em "Postscript" desta tua carta, envio-te cópia de uma notícia, de que certamente, tão longe e alheado das realidades objectivas desta tua terra, na tua redoma dourada, não terás tido conhecimento. Reflecte sobre ela, quando, no meio das tuas imensas e diversas ocupações, tiveres um tempinho :

 Em Portugal, também há notícia de casos igualmente trágicos de desespero. Em setembro passado, Pedro e Cristina, dois irmãos de 53 e 57 anos, lançaram-se para a frente de um comboio da linha de Cascais, na estação de Paço de Arcos. Segundo a notícia então publicada no Correio da Manhã, no bolso de Pedro estava uma carta a explicar a razão do duplo suicídio. Depois de trabalhar numa empresa de publicidade, Pedro estava desempregado e vivia em Lisboa com a irmã, igualmente desempregada, e a mãe, até esta falecer aos 88 anos. O senhorio despejou-os e ficaram a viver na rua por alguns meses, até à noite em que puseram um ponto final na sua história. "Estava escrito que se sentiam abandonados e viviam em pobreza extrema devido à crise económica", disse uma fonte policial citada pelo Correio da Manhã.

 Anamar

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

" A D. AUGUSTA "



Tive  ontem  conhecimento  através  da  porteira  do  meu  prédio  -  a  D. Leonilde, que vive connosco há trinta e sete anos, que faz parte da "mobília", que foi para ali acabada de casar, e que neste momento, como a maioria dos condóminos "militantes", já é avó ... Já vos digo do que tive conhecimento.

Vou apresentar-vos um pouco melhor a D. Leonilde, a pessoa mais humilde, mais prestável e mais amiga que conheço, nestas condições.
É o "bombeiro" de serviço no prédio, para tudo o que é solicitada. Ela faz o seu trabalho inerente ao lugar que ocupa, presta horas como empregada, a quem esporadicamente a solicita para trabalhos mais complicados, ou às velhotas que já os não podem fazer, dá recados necessários, por vezes, entre condóminos, encarrega-se da compra das flores oferecidas aos que já partiram, que já são bastantes e continuam nas nossas memórias, trata da minha Rita quando estou fora, e das minhas plantas ( se calhar melhor que eu ... ), e claro, como lhe "compete", põe-nos ao corrente das novidades das redondezas ( o que normalmente ocorre lá em baixo, na entrada do prédio ).
É generosa, solícita e humilde, sem ser subserviente.
É o que se costuma dizer, uma "jóia" de pessoa !...

Ora bem, apresentada que está a D. Leonilde, cabe-me agora falar do que me levou a escrever este post, porque foi algo que ocupou o meu espírito algum tempo.

Dizia-me ontem a D. Leonilde, que uma senhora que vive nos prédios em frente, há longos anos ( eu diria, desde sempre ), que por ali teve filhos, teve netos, enviuvou e continuou a resistir a pé firme, na sua vidinha pacata, na solidão da sua viuvez, casara de novo ...
E surpreendentemente casara, porque ela própria ( deve ser senhora seguramente com setenta e muitos ou até oitenta anos ), colocara um anúncio de matrimónio num jornal, porque segundo dizia, era-lhe terrível o isolamento em que vivia, a aridez dos seus dias sem sol, o silêncio das suas noites sem lua ( digo eu ... ).

O marido é um senhor ( agora já o sei ), mais ou menos da mesma faixa etária, solteiro convicto, e que já antevia o futuro dos seus dias num qualquer lar, porque os parentes mais próximos, ou já haviam falecido, ou encontravam-se fora do país, e como tal, e não querendo ser "empecilho na vida de ninguém", ao ver aquele anúncio, perscrutou por detrás daquelas palavras, uma D. Augusta no mesmo "barco", com vivências por certo semelhantes às suas, desígnios de resto de vida, também ... e resolveu arriscar.
Resolveram arriscar, afinal !...

E agora, desperta que estou para a situação,  já vejo a D. Augusta e o Sr. Afonso a irem tomar o seu cafezinho, a saírem até ao Parque, neste resto de dias bem soalheiros, a conversarem, de braços dados, no passo cadenciado e sem pressas que a idade lhes impõe, a irem ao supermercado às compras, enfim, na vida do dia a dia sem demais sobressaltos.
E felizes, muito felizes ( isso informou-me a D. Leonilde ) !...

Ora bem, talvez uma situação considerada normal em países  "mais arejados", aqui, neste nosso "quintal", ainda nos traz um sorriso ao rosto, e alguma surpresa à mente.
Ainda é algo inusitado, dentro dos padrões sociais costumeiros, e em particular acontecer em gerações que não as de hoje.

Fiquei a pensar naquele casal ternurento, e a questionar-me se alguma vez eu teria "disponibilidade" mental, física e emocional para tomar uma atitude destas, para arrriscar ...

Na realidade o quê?


Um restinho de vida diferente, auspicioso à partida, com um companheiro ao lado que ainda me desse o braço pelas ruas, que ainda amasse apanhar sol comigo, passear pelos campos, ver o mar ...  que  ainda  soubesse  ouvir  a  chuva  a  cair  nas  noites  de  Inverno (  mesmo que o ouvido comece a "endurecer" mais e mais ), que gostasse da minha música e a partilhássemos em silêncio, que falássemos longamente, com todo o tempo do Mundo, ou simplesmente  ... que desconversássemos até ... que esconderia atrás das costas a rosa, que depois com um sorriso de amor me ofereceria ... e que desse vida à casa que se tornara cada vez mais desertificada e vazia ??!!...
ou ...
um fracasso total, cuja gravidade talvez não fosse excessivamente penalizante, porque afinal, oitenta anos são oitenta anos ... e o tempo em que as mágoas e os insucessos deixam máculas irreversíveis e incontornáveis muitas vezes ... já foi há muito ??!!...

Pergunto-me  se  conseguiria  sair  do   "encasulamento"  em  que  vivo   ( e de que me queixo ), e teria capacidade de tolerância, habituação, cedência, partilha do meu "eu" ... do meu "eu" e das "minhas coisas", como dizemos ??!!...
Seria eu capaz de sair de uma vida já toda estratificada., toda delineada, dum  "rame-rame" e de uma monotonia que no entanto rejeito, dum figurino que se fossilizou  ao  longo  dos  anos,  de  uma  vida   só comigo  mesma ??!!...
Seria  capaz  de  sair  do  egoísmo,  ou  simplesmente  do  meu  esquema ( egoísmo é excessivo, penso ), para me encaixar numa realidade totalmente nova, diferente, com obrigatoriedades outra vez, com renúncia de muita coisa, com adaptação a outras, que sim ou não, me satisfariam ou colidiriam comigo ??!!...
De readquirir rotinas entediantes ... uma vez mais ??!!...
Seria  eu capaz de  prescindir de uma "liberdade" que adquiri,  pelo facto de ser eu comigo mesma apenas, não devendo explicações ou satisfações aos demais, e voltar a ter "asas" cortadas e horizontes limitados ??!!...

À medida que os anos passam, cada vez mais nos questionamos com a aproximação do fim da estrada, com a consciencialização da dificuldade do caminho, e de termos de o percorrer sozinhos, sem ombro ou bordão, e com capacidades em declínio.
Esse é o grande pavor, creio, que assombra as nossas reflexões, quando delas não conseguimos fugir.
Agora, qual o "preço" a pagar para alterar este estado de coisas?
Teremos  "JÁ",  ou  "AINDA" , flexibilidade  em  todas  as  vertentes,  para  sermos  também  uma  D. Augusta ??!!...

Realmente a incoerência do ser humano, a sua insatisfação permanente, as suas indefinições, fantasmas e dúvidas,  são  espantosos ... e  a  coragem, loucura ou capacidade de risco, inversamente espantosas também ...
Sabemos o que não queremos, mas raramente sabemos o que realmente queremos, ou o que realmente seríamos capazes de assumir e enfrentar, do que teríamos coragem ...

Dicotomia louca esta !!!...

O drama, é que os anos vão passando, muito, muito depressa, e a dúvida da indefinição avoluma-se até ao infinito, ou até um infinito qualquer, em que já nem Donas Augustas conseguiríamos mais ser, ainda que  o quiséssemos mesmo !!


Anamar

domingo, 23 de setembro de 2012

" TUDO ISTO TAMBÉM É A VIDA !... "




Será  possível  que cheguei  há  um quarto de hora ao café, e já ouvi dez vezes nas mesas ao lado : " É a vida ..." ?!...
Bom, se não foram dez, foram oito ...

A população é sempre a mesma.  As células "especializadas" nos vários temas, fazem-se por mesas.
Como diz a Lena e a Catarina : " Sai desse café ! "
Mas eu sou militante, masoquista, e sempre me afeiçoo ao que não devo ... e insisto e persisto.
Já pus os "phones" nos ouvidos, procurando abafar, com Énya, a distância que me separa do "mundo".
Nas televisões à minha frente, o problema está na escolha.  Numa delas, no circo de feras da Assembleia da República, os maluquinhos degladiam-se, a repetir as insanidades do costume, nesta "rentrée" particularmente quente, e sem horizonte.
Dizem e repetem, abanam as penas de pavão ... redizem, dissertam e masturbam-se mentalmente a ouvirem-se, porque de certeza, muitos deles, mais ninguém ouve.  E realizam-se e deliciam-se ...  São os maiores da sua freguesia !

Este meu humor cáustico, é triste ...  É um esgar de tristeza, se calhar uma caricatura mais triste ainda de humor, que como eles ( os da Assembleia ), também julgo que tenho, enche o meu "ego", e não tenho de todo !!!

O outro televisor vai "parindo" sessões contínuas de desporto e mais desporto, sendo que o privilegiado é o futebol, claro ;  cá, lá ... em todo o Mundo.
Felizmente que sou suficientemente "cegueta", para daqui donde estou, só perceber que se trata de um relvado verde ( depreendo ) , e uns gajos quaisquer, com camisolas de cores contrastantes com esse verde  do tapete, aos pontapés a uma bola ...
Não sei quem são, não me interessa ... tenho raiva a quem sabe !

Na mesa ao lado, três amigos, para lá de ultrapassado o "prazo de validade" ... a "mijar p'ras botas", na "linda" expressão frequentemente usada pelo Carlos ( como se ele não fosse também lá chegar ), falam, ou de comida ou de futebol, óbvio ...
Um deles trabalhou ( cá p'ra mim, na outra encarnação ), em restauração.  Já falou de "massada" não sei de quê, em empadão de atum, em soufflé de gambas ... depois referiu o Bairro Alto como um local onde se come bem ... e o resto já não ouvi, porque já estava saciada ...
Hoje, e nos próximos dias já não vou precisar de almoçar !
Não se pode ir além do "bom dia", porque a história do AVC eu já conheço ( contada a mim e a quem tiver o azar de lhe dar uma "abébia" ), das caminhadas que faz ( percorre a cidade inteira, segundo ele ), com que vai "curando" as maleitas do corpo ( ele acredita ) ... da solidão ( eu não acredito !! )

A D. Maria dos Anjos, uma alentejana com todo o sotaque de Nisa, a sua terra natal, fala das azevias e pastéis  de  massa  tenra, que vende e com que ganha a vida.  Um  único  filho,  que se  suicidou há três anos ( overdose ), deixou-lhe duas netas gémeas, que alguém ficou cá para criar !
É "mundialmente" conhecida, em particular aqui, onde trata toda a gente por "meninos", dos zero aos noventa ...
Fala altíssimo, conta as histórias todas, as relevantes e as não tanto, a quem quer e a quem não quer ouvir.

Depois há um casal super-ternurento, discreto, muito simpático. São pessoas que sabem "estar", como se costuma  dizer.  Estão na sua mesa, lêem o seu jornal, conversam restritamente com uma ou outra pessoa, e entre si.
Ambos de cabelos grisalhos, ou melhor, o senhor, com o pouco cabelo que tem, grisalho. Tem metade da altura da mulher, é "fofinho", muito sorridente, com um rosto de bonomia, que inspira vontade de que se mime.

Aí pelo meio-dia chega o "doutor", de quem já falei num post lá para trás. Compra três jornais por dia. Um, de notícias e dois desportivos.
De um deles, sou herdeira diária, para a minha mãe.
Chega, e antes de se sentar, vai cumprimentar religiosamente os utentes de duas ou três mesas, e recolhe à sua.
O "doutor" impacienta-se sempre que há alguém barulhento, perturbador em excesso, da calma da sua leitura.
Quando está sentado ao alcance dos meus olhos, trocamos olhares de solidariedade reprovativa, porque eu também gosto do meu sossego, nesta espécie de "escritório" diário.
Ele é surdo, e usa aparelho no ouvido. Reduz o som ...  Eu, coloco o MP3 a tocar, e aumento o som !!!

"Choses" !...  ( como diria um amigo meu )

Hoje devo estar particularmente azeda, e sem estofo de resistência para muita coisa.
Tive que ir a Lisboa há pouco.  No carro, sozinha, eu e a minha mente viajante ...  Nem o rádio liguei .  P'ra quê ??
Numa passagem de peões, ao sinal vermelho, parei, obviamente.
Um dos peões que atravessava, era um jovem estudante, imberbe, como todos o são naquela idade ... de capa e batina.
Dei por mim, a meia voz, a dizer :  "Sim, sim ... capa e batina !!...  Mais um candidato ao desemprego " !...

À frente, na rua, um idoso, mais um sem-abrigo dos que povoam as nossas calçadas, a pedir esmola.
Ultimamente deixei de dar esmolas.  Ou empederni, ou defendo aquela demagogia barata de que o Estado ( que me vai ao bolso forte e feio ), é  que  tem  que  resolver o cancro  da  precariedade e da exclusão social, ( quando  estou careca de saber, que se esperarmos isso, morremos todos de fome !...  Portanto ... "balelas" ... Mas todos as dizem, não é ?? )

Na sala de espera do local onde fui, uma televisão, novamente distraía quem esperava, com mais outro programa "construtivo  e aliciante". Um daqueles excelentes programas tipo "Portugal no coração", "Praça da  alegria",  João Baião  e  companhia...Maya  e  companhia, Manuel  Luís Goucha e companhia ... etc, etc ( estão a ver o estilo ?? ) ... para atrasados mentais.  Todos a ganharem, entretanto, uma "pipa de massa" !...
Entrevistada no momento, Luciana Abreu, que conheço de propaganda jornalística, das revistas cor-de-rosa do cabeleireiro, do casa e descasa, destes pseudo-artistas de qualquer coisa ( só é preciso ter corpinho e sabê-lo usar ... ).
Meia dúzia de banalidades arrancaram-me uns quantos sopros, inspirações  profundas  de  tédio,  esgares  no  olhar  ( nada  abonatórios ... ), de impaciência ...
"Bolas" -  diria  a  minha  filha  que  pareço  estar  a  ouvir  - "Tu  realmente !!!  Embirras com tudo !!!..."

Bom, só pode ser o meu mau feitio, a velhice, o desânimo, o cansaço, a saturação da realidade de merda, em que nos movimentamos diariamente, a falta de horizontes ou perspectivas, a inexistência de objectivos ... enfim ... a angústia e a desmotivação que envolve a maioria das pessoas ... ou então ... uma "doença incurável" mesmo, que é este "mau acabamento" que recebi dos meus pais, e que nunca tive capacidade, força  ou  determinação,  para  conseguir  moldar ou alterar ... e  que  parece,  que cada vez "apuro" mais e mais !!!...

Anamar

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

REBECA - a " OUTRA "



A maior parte das mulheres tem uma Rebeca nas suas vidas !...

Uma Rebeca morta, como a tão bem retratada na obra de Daphne du Maurier,  ( passada ao cinema por Hitchcock na sua primeira realizção na sétima arte  - 1940 ),  ou uma Rebeca viva, que essa, na verdade vira uma "assombração" de carne e osso, contra a qual atrever-me-ia a afirmar, ser ainda mais difícil lutar.

A Rebeca morta e enterrada, tem a força que as figuras míticas encerram .  Seres cujas armas não são as que detemos, terrenas ;  são seres que pelo facto de não existirem mais, adquiriram uma auréola e um estatuto mágicos e misteriosos, que mexem com áreas nossas, os humanos, muito mais difíceis de controlar ... o imaginário e o psíquico.
O psicológico foge-nos ao controle, porque não é racionável, e o ser humano sucumbe facilmente ao seu domínio.

É com essa força do que não é racional, lógico, palpável, que alguém que já foi, continua a imperar, a dominar, a condicionar, e a infernizar a vida dos que por aqui estão.
Por isso, essa "outra", consegue impor-se, intrometer-se, e ter um ascendente destrutivo de permeio a um casal.

Conhecemos casos desses, em que a "falecida" não faleceu na realidade ;
aliás quem cá está, continua a partilhá-la, a ser acorrentado por ela, e a fazê-la "reviver" constantemente.
Fazem-se referências subreptícias, a figura velada perambula pelos espaços e pelas pessoas, há comparações subtis, e até há muitas vezes, uma servidão e uma observância religiosa, dos hábitos, costumes, esquemas de vida  passados.
Ou então, em desespero de causa, a estratégia pode ser outra ;  eliminam-se rapidamente todas as referências a essa figura indesejável, tudo quanto materialmente se lhe associa, acreditando-se que com essa "limpeza", vai também a Rebeca perturbadora !...

Admito que hoje em dia, não é já muito comum, que qualquer substituta de Rebeca se deixe impressionar e comandar, sequer se submeter tanto, a ponto do  " fantasma da defunta", conseguir ter a força do retratado no romance.
Posso dizer que essa aí, face aos tempo actuais, é mesmo uma caricatura grosseira, já distante, felizmente.

Eu diria que o que nos perturba na realidade em que vivemos, o que incomoda, desestabiliza e mexe com a mulher de hoje, são as "Rebecas" vivas que andam por aí, às vezes a fazerem-se de mortas, é verdade,  mas com  armas  sempre  em  prontidão ... as  mais  variadas !...
Essas figuras que não passam de arremedos pardos, e que de tudo fazem para se recolorirem, pensam conseguir, de uma forma demoníaca, manipular com um grau de legitimidade que se atribuem, os cordelinhos dos bonecos, com que ainda sadicamente pensam  brincar. ...

Pura ilusão !...
O "cenário" nestas situações, não é de romance ;  é aqui, no palco real, onde se jogam vidas também reais !
Só que elas desvalorizam ingenuamente, que a vida já não se faz nas penumbras de quartos escuros e ambientes de luz velada, de mansões fantasmagóricas, porque já não vivemos entre sombras, a ouvir passos do além, figuras perpassantes, fantasmas ridículos, diáfanos e assustadores.

Essas Rebecas, lembram-me grotescamente as crianças que se embrulham num lençol, onde fazem dois buracos para os olhos, e nos saltam ao caminho, na esquina de um corredor, dando um salto e soltando um gritinho, convictas de que nos pregaram um susto pavoroso, monumental, que nos poderá mesmo deixar em estado comatoso, irrecuperável ...
E nós compomos a cena, e para as deixarmos felizes, fingimos cair para o lado, deitamos a mão ao coração e fechamos os olhos ... e tudo acaba numa estrondosa gargalhada !...

Também há adultos que continuam infantilmente a mascarar-se, no dia a dia, com lençóis "aterradores", e que confiam piamente, na credibilidade da personagem que vão representando ...

Pobres Rebecas, essas ... sobretudo se tiverem nos esconsos dos corredores, Lilliths em vez de Evas, a esperá-las ...

E nos anos que vivemos, com a emancipação física, emocional e afectiva da mulher , a sua assumpção e gestão das duas entidades numa só ... já não assusta !
Lillith não voltaria seguramente a ser desterrada para o Mar Vermelho, nem preterida na mitologia hebraica ou na Bíblia dos cabalistas !...

Por isso, as Rebecas estão cada vez mais a remeterem-se às catacumbas, donde nunca deveriam ter saído ( porque o seu "reinado", na verdade, já foi ), donde se esbate o seu poder, que já não opera milagres ...
E, as assumidas Lilliths, conseguem apagar cada vez com maior facilidade, as rugas dos lençóis, e as marcas dos corpos das Evas, na vida dos seus homens, de que não abdicam facilmente !!!




Anamar