quinta-feira, 14 de março de 2013

" ANTES OU DEPOIS ... "


                                                             19-5-1890        26-4-1916
Estou no piso superior do Alegro.  No piso dos cinemas.
Decidi  vir  ver  um  filme  que me reportaram  como  muito  bom, e que deve estar a sair de exibição : "A vida de Pi".

À minha frente, os grandes painéis de vidro, são uma janela debruçada para o maciço de Monsanto.
O verde denso, circundado por vias rápidas e auto-estradas em rotundas, curvas e contra-curvas a vários níveis, lembra-me o corpo de um animal, constrito pelos anéis envolventes  de uma gibóia, em movimento permanente.
Apesar de estarmos no fim da tarde, há um sol envergonhado quase a sumir, num dia que tem estado de aguaceiros, alternando com céu pseudo-ensolarado.
Há gaivotas que voam por aqui, a espaços, certamente recuadas da orla marítima ...
Há ruído, um ruído uniforme indistinto.
É um ronco, do mundo que vai aqui dentro.  Nada nele se distingue ou sobressai ... Nem uma voz, uma gargalhada, um choro, um grito de criança, um berro ... Nada !
Apenas este coro em uníssono, como um "puré" de sons, em fundo, num tom alto e constante !

Ando a ler sobre Mário de Sá-Carneiro, um escritor e poeta dos fins do século XIX e princípios do século XX, porque direi, que nada além do nome, sei sobre ele.
Na próxima tertúlia literária que ocorrerá em Sintra, depois de Fernando Pessoa, tem tudo a ver, ser abordada a obra de Sá-Carneiro ... amigos íntimos que o foram .

Nos meus tempos de liceu, os alunos que seguiam para Ciências, ficavam com uma precária formação na área de Letras, a partir do antigo quinto ano do liceu, actual nono.
A sua cultura literária, enfermava de lacunas profundas.
Até ao 9º ano, os autores abordados não tinham nada a ver com a contemporaneidade da escrita.
Os assuntos eram tratados exaustivamente, numa abordagem maçante e desmotivadora.  A metodologia utilizada, parecia não contemplar a necessidade da motivação para a leitura e para a escrita.
Lembro a árdua tarefa de dividir as orações nos Lusíadas, verdadeiro quebra-cabeças para quem tinha mais dificuldades.
Lembro Fernão Lopes, Gil Vicente e os seus Autos, lembro as "cantigas de amor", "de amigo", de "escárnio e mal-dizer" ... D. Dinis e o trovadorismo medieval,  lembro o "Sermão de Sto. António aos Peixes" ( séc. XVII )  do Padre  António Vieira, ou  o  seu "Sermão  da  Montanha",  as  "Guerras   de  alecrim  e  manjerona"  ( séc XVIII ),  até   mesmo   o  bem  posterior  "  Frei  Luís  de  Sousa ",  de  Garrett  ( séc. XIX ) ... enfim, lembro uma escrita arrevezada, pouco interessante ou apelativa, fastidiosa, sobretudo para quem não cultivasse a  leitura .
Os autores contemporâneos não eram estudados ... Pessoa  nem sequer era referido, Eça, praticamente arredado dos bancos da escola ... Jorge Amado, por exemplo, uma eminência lá de longe ... não abordada !

Eu era boa aluna, quer na área de Letras, quer na de Ciências, mas nunca me senti "aproveitada" ou estimulada, para a literatura portuguesa ou internacional.
Os meus pais, como já referi, eram pessoas quase iletradas ;  eu, convivia pouco, e portanto o meu leque de conhecimentos também não era propiciador a colmatar-me essas lacunas.
Por isso, o contacto mais alargado com autores renomados, iniciou-se depois de ter casado.
Aí sim, começaram a comprar-se livros em casa, além dos existentes e a que eu poderia ter tido acesso, se motivada, na minha casa de solteira.
Aí existiam os tradicionais livros de Júlio Dinis, Guerra Junqueiro, Eça, Alexandre Herculano, Garrett, Fialho de Almeida, António Nobre, Augusto Gil, Ortigão, Ferreira de Castro ... entre outros, lembro.
Havia também obras de alguns autores estrangeiros de referência, que o meu pai comprara, creio, para rechear a estante da mobília de "torcidos" do seu escritório, com portas de vidros, a deixarem ver as lombadas  devidamente  encadernadas  e  bordadas  requintadamente a ouro.
Na altura era um pouco assim ...
Nada mais !

O  meu ex - marido era da área de Letras ;  licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, um meio privilegiado para o desenvolvimento de uma formação global mais alargada.
Coimbra era terra de estudantes, como se sabe, era rica em iniciativas culturais, em tertúlias, debates, conferências, ou simplesmente em alargados convívios de café, troca de experiências de vida, e de conhecimento, em que a dialéctica abria horizontes, suscitava a discussão, e o cotejo de opiniões, valores e princípios.
Não é à toa, que uma larga  elite intelectual  deste país, aí tenha então sido forjada .
Ele viveu a Coimbra dos anos 60, em plena crise académica, com o país e a Europa em convulsão, o que propiciou ainda mais, tomadas de consciência e desejo de informação sobre toda a revolução social e política que então se vivia, em Portugal e no Mundo.
Sendo um jovem ávido de conhecimentos, alicerçou-os exaustivamente, também pela leitura sistemática de jornais, revistas, publicações ( algumas censuradas e portanto clandestinas ), "bebendo" e dissecando tudo a que tinha acesso.

Tivemos portanto, também aqui, formações bem dispares !

Tudo isto a propósito de Sá-Carneiro ... Sá-Carneiro que se suicidou em Paris, com vinte e cinco anos, apenas.
Amigo íntimo de Pessoa, trocou com ele profusa e sistemática correspondência, até ao momento da sua morte.

Até aqui, tudo mais ou menos normal ...
Mais ou menos, porque não pode ser normal em época nenhuma, um jovem de 25 anos por fim à vida !
Mas o que me impressionou verdadeiramente em tudo isto, e o que me fez um sentido absoluto nesse acto, que seguramente classificamos de tresloucado, foram os motivos por que o fez.

Diz a sua biografia, que se tratava de uma personalidade totalmente desenquadrada socialmente, uma pessoa desajustada e em permanente sofrimento, por viver uma realidade que lhe era pesada, que não lhe era nem significativa nem consequentemente gratificante, que não lhe valia a pena, na qual não encontrava, não encontrou, razão suficiente para ter que a suportar.
Sá-Carneiro era um desencantado, um defraudado da existência, um remador cansado, contra marés de desespero ...
Cada dia,  representava uma pena a cumprir, cada momento era arrancado de uma realidade dura, desinteressante e insatisfatória.
Talvez levianamente o classificássemos de um "doente" !...

Protelou enquanto deu, a decisão final, e foi a impossibilidade de alcançar o equilíbrio emocional, foi o inconformismo experimentado, que a precipitaram.
A sua obra, contudo, ficou, frutificou e ainda vive, apesar de ter sido fugaz.
Deixou fortes marcas na literatura portuguesa.  Foi um dos expoentes do modernismo, um futurista, foi um dos  membros  fundadores  ( juntamente  com  Pessoa  e  Almada  Negreiros ), da  revista  literária  Orpheu (  verdadeiro escândalo literário, à altura, e por isso, censurada ;  apenas saíram do prelo, dois números ).  Em última análise, Sá-Carneiro foi uma alma inquieta, à procura de si próprio ...

"Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando ;  afinal tenho o que quero : o que tanto sempre quis - e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui " ... diria na carta de despedida, dirigida a Fernando Pessoa, o qual  afirmaria mais tarde : " Morre jovem o que os Deuses amam "

Como podem ser tão iguais, as formas de sentir, de viver, do encarar da existência, por parte dos  seres humanos, independentemente das épocas, das gerações e das realidades que se atravessam !!!...
Há  de  facto, ao  longo dos tempos  e  das  vidas, antes ou  depois, muitas almas inquietas em  busca  de si mesmas,  sem nunca se encontrarem !!!...

Anamar

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei, muito bem pelos vistos está a recuperar a sua vida, continue só lhe faz bem ao ego que andava muito em baixo.
Um amigo de sempre.