quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

" INVEJA " ...



Janeiro de novo.  Um marasmo assustador !
Devia haver um manual de se aprender a viver só ...

Li há poucos dias, numa daquelas revistas que acompanham alguns jornais de fim de semana, uma entrevista com a escritora Hélia Correia, que me apaixonou.
E apaixonou, porque há imensas escolhas, posturas e opções de vida suas, que invejei e em que me revi.
Não conheço nada da obra de Hélia Correia.  Até esta reportagem, ela era para mim, uma ilustre desconhecida.
Hoje, para lá de me ter um rosto, ( o das fotografias ), tem-me muito mais em comum.

Em primeiro lugar, Hélia gosta de escrever.
Depois, escreve sazonalmente, ou seja, não é fabricante de escrita.  Não escreve quando os outros querem, não escreve a metro, escreve quando chove, quando o céu se carrega, e o cinzento nevoento de Janas  lhe mostra em silhueta só, a Serra de Sintra, paixão de vida.
Escreve quando tem mesmo algo para dizer.  E escreve na sala, que prevejo aconchegante, com salamandra para os dias gélidos, papel de parede classicamente inglês, frente à Pena.
Através das duas janelas que ladeiam a porta daquela casa pequena que alugou, vê-se o  jardim ou o quintal,  como se queira.
Por ele, perambulam oito gatos lindos, ou seja, Hélia também privilegia os felinos, como companhia.

Depois, tem um sótão, local de todos os mistérios ...
Como eu sempre sonhei ter um sótão !!!...
Acho que um sótão é  um refugio de tudo e de todos, e se calhar até de nós próprios.
Acho que no sótão, só os duendes, os gnomos, e esses seres sobrenaturais, nos descobrem.  Nele, sempre  nos podemos esconder das visitas indesejáveis, das presenças incómodas, brincar de esconde-esconde com a nossa mente, e seguramente fugirmos dos nossos pensamentos mais desastrosos ...

Hélia vive só ... só e a Natureza que tem à volta.
Os córregos, que a levam em passeios perdidos até às Azenhas, pela Serra, ou a ver o mar que está ali a dois passos.
Vê os cogumelos que evita pisar, há-de ver as primeiras flores silvestres de cada Primavera, e os musgos trepadores das árvores da mata, nos Invernos.
E verá também os pássaros do mar, e os pássaros dos campos, e os coelhos bravos e as perdizes, e todos esses bichos soltos, como ela, afinal !

Hélia tem um namorado, o também escritor Jaime Rocha.
Prevejo uma ligação perene entre eles ;  perene e sólida ;  linguagens comuns, sensibilidades comuns, olhos habituados a verem as mesmas coisas, a amarem os mesmos pormenores.
Sim, porque de certeza, aquilo é gente de pormenores ; gente de se extasiar com a lua cheia, nas noites límpidas, sobre o Monte da Lua ... gente de se silenciar, para ouvir o piar das corujas ou dos mochos, pelas matas ... gente de sempre esbugalhar os olhos por cada ano, como se fosse o primeiro, quando as madressilvas selvagens se engalanarem, com as flores perfumadas ... e mais ... gente de colher braçadas delas, para dentro de casa, para que o perfume inebrie a sala inglesa ...
Gente de apanhar as "carrapetas", que são aqueles chapéuzinhos castanhos, dos castanheiros dos bosques, com cheiro a floresta, e cujo aroma a uma espécie de carqueja, perdura "ad eternum", como o cheiro do eucalipto, por exemplo ...

Se não conheço Hélia Correia, menos ainda conheço a sua casa.
Tenho a certeza que é uma casa autêntica, daquelas casas em que, do mobiliário às cortinas, dos quadros aos livros, tudo é verdadeiro ... não haverá cedências, haverá genuinidade.
Sinto-a uma força da Natureza, adivinho-a um produto daquilo com que ela se funde ... a terra !
A terra e alguma solidão, que acredito que ela não sente.
Hélia nem sequer "conta" o tempo, diz.  Vive intemporalmente, vive simplesmente, deixa-se viver ...
E saber viver assim, é também uma arte, creio.
É um despojamento, é um encolher de ombros ao mundo, e viver p'ro essencial ...

Cada vez mais, acredito que o nosso mundo só pode ser feito de coisas que nos reflictam, que nos sejam significantes, nos façam sentido ... seja nos sonhos, nos desejos, nos lugares, nas pessoas, ou nas ideias que nos circundam ...
Cada vez mais, tenho a certeza que com o caminhar dos anos,  só  "entenderemos" verdadeiramente, quem tiver a nossa linguagem, quem tiver percepções próximas, quem tiver olhos com sensibilidades direccionadas para o que também nos sensibiliza, quem tiver vivências paralelas, quem saiba, e queira percorrer "atalhos" semelhantes ...

Senão, sempre ficará uma conversa de "surdos", uma "dislexia" de emoções, que apenas decepciona, defrauda, e em que não adianta apostar !...

Anamar

Sem comentários: