Será um blogue escrito com a aleatoriedade da aleatoriedade das emoções de cada momento... É de mim, para todos, mas também para ninguém... É feito de amor, com o amor que nutro pela escrita...
quinta-feira, 16 de junho de 2016
" O PESO DA SOLIDÃO "
Passei ontem e ele estava sentado num dos bancos da praceta. Bancos procurados pelos velhos, pelos sozinhos, pelos que sem outros horizontes, se circunscrevem aos que a praceta lhes determina.
Passei hoje e ele continuava lá. Parecia que simplesmente ali permanecia desde a véspera, desde a antevéspera e desde todos os dias que o avistei, ainda que de longe.
A sua postura era desalentada, a barba crescera, o definhamento físico progredira, o rosto encovara ... os olhos emaciaram. Uma figura esquálida e alheada.
Uma imagem tão angustiante para mim, que me retirara a coragem da aproximação.
O Luís ( vou chamar-lhe assim ), é meu conhecido há já largos anos. Ambos picávamos o ponto em bica de pequeno almoço tardio, no extinto Escudeiro ... café de uma vida.
Também ele sorvido pela voragem do tempo e da sorte.
Aquelas conversas de tertúlia de ocasião... Nada de importante ... tudo de importante, afinal, como são os assuntos de pessoas solitárias.
O Luís já ao tempo era viúvo. Uma história de amor comovente, no seu passado.
Uma história de entrega, de partilha, de afecto incondicional.
A mulher, ainda jovem partira, alguns, poucos anos atrás, vítima de uma doença prolongada, numa agonia que se estendeu aos limites do suportável. O Luís cuidou e foi guardião daquela vida, enquanto ela não se extinguiu.
Ficou então absolutamente só.
E só continuou, sempre acompanhado da recordação inesquecível da companheira.
Há oito anos, na bica do pequeno almoço tardio ... ainda no Escudeiro ... o Luís, disse, assim do nada, que estava a viver uma história que conhecia demasiado bem.
Também ele contraíra a doença sem esperança ...
Desde então, tem-se debatido tenazmente com o algoz que o enfrenta diariamente. Com lampejos de esperança em períodos mais benevolentes, com um desânimo impiedoso em fases de regressão.
E tem sido heróica a luta, que sem desistências trava dia após dia.
O Luís continua absolutamente só, mais só ainda, porque a ausência de forças, de coragem e mesmo de recursos económicos, o limitam aos bancos da praceta.
Por outro lado, o único neto que tem, que o ama e que devotamente ele ama acima de tudo nesta vida, vive afastado, e o estado de saúde do Luís, impossibilita sequer uma aproximação.
Esse miúdo, hoje com quinze anos sempre foi o único esteio na vida do avô. Seu orgulho, pelo denodo nos estudos, pela personalidade forte e sã, pelo amor que lhe dedicou, era companheiro de passeios, de aventuras, de histórias, de ensinamentos, numa felicidade de tempos idos !
Hoje, quebrei a inibição que me tem adormentado, e abeirei-me do Luís.
Partilhámos o banco por algum tempo. O suficiente para ver o seu rosto iluminar-se, para ver um sorriso ténue transfigurá-lo ... o suficiente para ver uma tíbia alegria invadi-lo ... juraria !...
Falou-me de solidão, e falou-me de como ela lhe dói, mesmo fisicamente. De como ela o sufoca mais do que a falta de ar que o assalta, e o deixa mais e mais prostrado ...
Contou-me que lê alto, que fala alto, para se ouvir ... ouvir alguém ...
Contou-me que dialoga com o vazio da sua casa ... quando o desespero não tem tamanho e amarinha ...
Confidenciou-me que gostaria de acabar sem dar trabalho a ninguém ...
Falou-me de coisas que conheço, e de infinitas outras, que felizmente não conheço ...
Por quanto tempo mais, o Luís descerá à praceta ?
Por quanto tempo mais, as forças lhe manterão ainda o último fogacho de esperança ?
Por quanto tempo mais, conseguirá ganhar ainda, a sua luta desigual, por cada dia que passa?
Vida !...
As suas personagens ... as suas histórias ... cenas das existências de cada um, em que até a cidade grande, impessoal e distante, lhes é hostil !...
Anamar
terça-feira, 14 de junho de 2016
" MENTIRA "
Porque eu nasci mulher, foi p'ra sofrer
os males desta vida ... E descontente,
como uma eterna adolescente
por cada dia, acredito renascer ...
Renascer em vidas inventadas,
mentiras minhas, histórias sufocadas,
destino que criei e que me aninha ...
São sonhos que acordo nas manhãs,
são futuros imaginados, esperanças vãs,
que partem, como parte a andorinha ...
E esta coisa que dói dentro do meu ser,
de pensar que vivo sem viver,
de ser eu e ser outra, ao mesmo tempo...
é flor que estiola no meu peito,
madrugada que repousa no meu leito,
é mágoa, é cansaço e é tormento !...
Anamar
domingo, 29 de maio de 2016
" AUTO RETRATO "
Sou pássaro que à tardinha, na ramada,
repousa por instantes da canseira
de tão longa viagem fatigada ...
De estrada tão sem norte, caminheira ...
Sou búzio que o mar joga na areia
Sou alga que ele arrasta, sem piedade
Um barco a balouçar na maré cheia
Rocha já esquecida e sem idade ...
Sou poeira arrastada p'la fúria do vento
Astro perdido, de galáxia errante
Sou poalha estelar, pelo firmamento
Sonho sonhado que ficou distante ...
Sou suspiro que do peito se soltou
Palavra largada na curva do tempo
Sou chama de vela que já se apagou,
Fogueira já extinta ... Já só um lamento ...
Sou alguém sem rumo, que crê e que espera
outro alguém, que no mundo nunca encontrou ...
Um ser que na vida cansa e desespera
por um amor irreal, que apenas sonhou !...
Assim eu sou, porque assim eu me fiz ...
Mulher, em menina que nunca cresceu
Alguém que viveu e não foi feliz
Nascente já morta, de um rio que correu !
Anamar
domingo, 22 de maio de 2016
" PORQUÊ ? "
As papoilas pincelam de vermelho os campos do meu Alentejo.
Alguém dizia que este ano, as há, em profusão. É toda uma mancha a perder de vista, daquele "sangue" escorrido na planície.
Enternece-me olhá-las. Recuo, revejo, sempre me emociono ...
As macelas pintalgam-nas, como num quadro de Van Gogh. E tudo quanto é flor deita a cabeça de fora ... É Maio e Maio não decepciona nunca !
Neste momento a minha vida vitamina-se quase só com os pequenos presentes, que a Natureza, generosa, me oferece.
Bebo sol, bebo a luz estonteante de um céu claro, oiço os pássaros, vejo as marés incessantes no seu vaivém, escuto a música celestial de tudo o que é belo e nos cerca. Sinto o vento passar-me no rosto, desalinhar-me o cabelo ... E só isso, já é uma bênção !
Deslumbro-me com o borboto que virou flor, com o tronco nu que se revestiu de farta cabeleira. Deslumbro-me com o cheiro das matas, da maresia, do pinhal ... do bosque ...
Tudo isso é um milagre oferecido !...
E não preciso de muito mais.
Aliás ... quase recuso a realidade circundante. A minha realidade actual, cinzenta, desinteressante, dura, mórbida. Uma realidade que marina entre a dormência e a morte. Um cheiro fétido a água parada ...
Cada vez mais a indisponibilidade que nos rodeia, inibe o extravasar da nossa torrente interior.
Cada vez mais, reprime a exposição dos sentires, das dores, das dúvidas, das angústias ... dos medos !
Como se, expondo-as, nos sentíssemos de repente, nus, frágeis, vulneráveis ... pequenos ! E não é suposto. Não é cómodo ... desejável !
O ser humano refugia-se então.
Recolhe às trincheiras da alma, encolhe-a, silencia o coração ... adormece a mente, como defesa.
Fecha hermeticamente, tudo para o que não há espaço neste mundo ... quase sempre !
E sofre sozinho. Padece anonimamente. Morre paulatinamente ... em pequenas doses !
Cada vez mais a indisponibilidade que nos rodeia, inibe o extravasar da nossa torrente interior.
Cada vez mais, reprime a exposição dos sentires, das dores, das dúvidas, das angústias ... dos medos !
Como se, expondo-as, nos sentíssemos de repente, nus, frágeis, vulneráveis ... pequenos ! E não é suposto. Não é cómodo ... desejável !
O ser humano refugia-se então.
Recolhe às trincheiras da alma, encolhe-a, silencia o coração ... adormece a mente, como defesa.
Fecha hermeticamente, tudo para o que não há espaço neste mundo ... quase sempre !
E sofre sozinho. Padece anonimamente. Morre paulatinamente ... em pequenas doses !
Olho para trás e tenho-me saudades.
É nestas circunstâncias, que pensamos em tanta coisa que não foi e poderia ter sido.
Porque a não sabíamos ... quase sempre. Também, porque se a soubéssemos, talvez a não acreditássemos ...
Por que não nos disseram que era p'ra dançar ao som daquela valsa de Strauss ?
Por que não nos disseram que era p'ra rir, rir muito ... gargalhar até cansar, quando o céu carregou e a chuva quente açoitou os corpos, naquela praia lá longe ?... Onde os cheiros são doces, onde o cruzeiro do sul se levanta, e onde a estrela polar se não passeia, no firmamento enigmaticamente escuro ?!
Por que não nos disseram que era para guardar religiosamente e com cuidado, o frio da neve do Inverno próximo, antes que o Verão chegasse e o apagasse, na vida ?
Por que não nos ensinaram a viver o exacto momento, único ... que era aquele e não outro ?
Por que nos deixaram deixar tudo pela metade, achando que haveria todo o tempo, inesgotável, para agarrar a outra metade ?
Quando afinal, o tempo foi fumaça que se perdeu e diluíu mais além !...
Quando o que era muito ... era tudo, se desfez como bola de sabão, de criança divertida !...
E assim vamos indo !
Assim vamos deixando esvaziar a ampulheta do destino.
Assim vamos pegando nasceres com pores de sol, deixando escoar pelo meio dos dedos, a areia da vida ... como se ela nunca fosse acabar.
Como se fosse indiferente, vivê-la agora ... amanhã ou depois ... como se ela fosse eterna e sempre nos esperasse a cada esquina !
Como se ela não esgotasse as braçadas de flores frescas, que p'ra nós colheu !...
Como se nós não esgotássemos, por cada dia, a capacidade de as agarrar, de lhes sentir o perfume ... de nos maravilharmos com a sua deslumbrante beleza !...
Efémero ... tudo demasiado efémero !
Tudo tão veloz que nem voo de colibri, que quase sentimos, sem ver !...
Tão vertiginoso quanto o bater de asas da borboleta, que nunca conseguimos alcançar!...
Tão louco quanto o vento que dobra a esquina, sem permissão ...
É Maio ... e Maio nunca decepciona !
Só a Natureza resiste. Só ela se repete, se renova, se recria ... se reinventa, imemorialmente nos tempos !
Anamar
E assim vamos indo !
Assim vamos deixando esvaziar a ampulheta do destino.
Assim vamos pegando nasceres com pores de sol, deixando escoar pelo meio dos dedos, a areia da vida ... como se ela nunca fosse acabar.
Como se fosse indiferente, vivê-la agora ... amanhã ou depois ... como se ela fosse eterna e sempre nos esperasse a cada esquina !
Como se ela não esgotasse as braçadas de flores frescas, que p'ra nós colheu !...
Como se nós não esgotássemos, por cada dia, a capacidade de as agarrar, de lhes sentir o perfume ... de nos maravilharmos com a sua deslumbrante beleza !...
Efémero ... tudo demasiado efémero !
Tudo tão veloz que nem voo de colibri, que quase sentimos, sem ver !...
Tão vertiginoso quanto o bater de asas da borboleta, que nunca conseguimos alcançar!...
Tão louco quanto o vento que dobra a esquina, sem permissão ...
É Maio ... e Maio nunca decepciona !
Só a Natureza resiste. Só ela se repete, se renova, se recria ... se reinventa, imemorialmente nos tempos !
Anamar
sábado, 21 de maio de 2016
" SILÊNCIO "
Um destes dias vou falar-te de mim
Vou contar-te dos meus silêncios profundos
e dos mundos
que não entendo e não sei ...
Vou falar-te dos sonhos
que já não me dormem no peito
não repousam no meu leito ...
nem mesmo sei se os sonhei !
Vou lembrar-te a minha história
fechada no coração ...
Quando o tempo era de esperança
e a solidão não pesava
ainda, em mim ...
Quando o sol me abraçava
e quando as flores alindavam
as floreiras do jardim ...
Será que lembras ainda, quando o mar, em pensamento,
brincava com as gaivotas,
corria livre no vento ?...
E com ele, de mãos dadas
e coração ao pescoço,
dançámos nas alvoradas
p'las madrugadas de Agosto ?!
Eu só queria que lembrasses ...
Era como se abraçasses
aquela que eu era então ...
como eu te guardo em segredo,
e te amanheço bem cedo,
na concha da minha mão ...
Por isso,
basta-me só que ainda lembres
e já me fazes feliz ...
É tão grande a solidão
que me lembra a imensidão
do que o silêncio não diz ...
Anamar
segunda-feira, 16 de maio de 2016
" ILUSÃO "
Como estará agora o teu rosto ?
As linhas, as marcas, os sinais, vão-se perdendo no tempo.
Já as não sei ! Apenas guardo algum que outro pormenor ... que se tornou pormenor, no vórtice dos dias.
Os teus olhos ?
Sim, os teus olhos, eu sei exactamente que continuam verdes como maré de mar sem fundo.
E também sei que ao sorrirem, riem como olhos de menino "levado", tenho a certeza ...
As tuas mãos ... ?
Vejo-as pousadas como pássaro no repouso da ramada. Seguras. Fortes. Decididas.
Mas sei-as doces, irreverentes, curiosas ... quentes.
Mãos de embalo, de protecção, de norte ... de caminho ... Mãos sábias !...
O teu corpo ... ?
Esse está todo em mim. Não tem erro !
Ficou-me tactuado, fielmente desenhado em decalque sob a minha pele. Dentro do meu. Para sempre ! E um dia, juro, ainda vai comigo !
A tua voz ...?
Quando fecho os olhos consigo escutá-la, trazida pelo murmúrio do vento, que é meu amigo.
Sussurrante às vezes. Imperativa, outras. Sempre envolvente, na rouquidão com que, escutando-a, estremecia ...
Como estarás tu ... todo ?
Hoje, trucidado pela tempestade dos tempos que nunca se apieda do nosso desejo de imutabilidade ?
Quando a mudança é afinal a única garantia de tudo em que mergulhamos ...
Será que eu ainda conheço os teus caminhos ? Será que ainda reconheceria o endereço do teu ser ?
Não, penso que já só existes na minha mente e no meu coração.
Aí existes sempre, todos os dias.
Fora deles, partiste há muito, levado pelas tempestades de Inverno que recolhem os limos dos rochedos, por cada recuo das marés.
Levado pelo sol vermelho que se põe p'ra lá dos continentes, p'ra lá dos oceanos, naqueles lugares que por instantes foram nossos. Que sempre o serão !
Porque eles conhecem os nossos segredos, gravaram as palavras ditas, os risos soltos ... o amor que se fez ...
Eles sabem-nos ... como ninguém !...
Visitas-me pelas madrugadas, quando os sonhos sabem que preciso.
Poisas-me na almofada, esgueiras o teu corpo junto ao meu, embalas-me o sono ...
Chegas a sorrir, com os olhos iluminando o caminho. Com o abraço aberto. Com o beijo pronto. Com o calor oferecido ...
Por instantes recuo no tempo e na vida, não querendo perder-te outra vez ...
Breve ilusão !
Partes ... sempre partes com o dealbar da madrugada. Sempre te vais quando a última estrela se apaga no firmamento. Quando a lua cheia deita para dormir outra vez, e quando eu acordo para a realidade que me sobrou ...
Sem espaço para ti !
Anamar
sábado, 14 de maio de 2016
" VIDA "
Viver é desassossego que não cansa
Estrada de rumo errante, atordoada,
e por ela andar, feito criança
sem ter mãos, sem ter colo ... sem ter nada !
É olhar as nuvens ...
Com elas partir quando o vento sopra e as leva ... indiferente
Velejar pelo céu e deixar-se ir
nos braços do sol ... rumando ao poente
É por cada manhã fazer uma festa,
como se uma esperança florisse no chão
Com a lua cheia, cantar em seresta
alegria nova de nova canção ...
É morrer e renascer por cada dia,
é levantar, ganhar asas e seguir
É chorar ... mas no meio da ventania,
do choro fazer versos, p'ra sorrir
É não valer a pena, já valendo
É perseguir o mar que não desiste
É ser o falcão no rochedo,
que sendo um condenado no degredo,
frente à tormenta é um barco que resiste !...
E por isso, viver é um cansaço ...
É uma história com princípio, sem ter fim ...
Mas se não viver,
como saber a força que detenho
e conhecer um pouco mais de mim ?!
Anamar
sexta-feira, 13 de maio de 2016
" A CHUVA "
A chuva que chega e que bate a vidraça
leva p'ra longe a desgraça do meu coração
É chuva-doçura que vem e que passa,
que tem dó da dor desta solidão
A chuva conhece por dentro, aquela que eu sou ...
sabe o que não digo, finge não saber ..
Companheira-irmã da sorte que tenho,
conhece em segredo, este meu sofrer ...
Dos sonhos sonhados, não diz a ninguém
Bate na janela pela madrugada
A chuva que chega que vai e que vem,
poisa de mansinho na minha almofada !
Conversa comigo ... fala-me do mar
conta como é, nele navegar ...
Fala-me da ânsia, sonho de partir,
seguir mais além ... voar, deixar-me ir
com ela que chega, que vai e que vem
e que sempre me traz, notícias de alguém ...
A chuva que chega e que parte, meus sonhos embala
Segredos trocamos, ao molhar-me o rosto
A chuva que chega em silêncio, cala ...
mas sente e entende este meu desgosto !
Desgosto e cansaço desta vida vivida,
pedaços de vida não vivida, sequer ...
A chuva que chega, que vem e que parte
sabe como eu, o que é ser mulher !...
Anamar
segunda-feira, 9 de maio de 2016
" QUANDO OS ANJOS DORMEM "
Anoiteci-me por aqui.
Anoiteci com o cinzento fechado da tarde, com a chuva copiosa que tomba, numa Primavera indiferente.
Uma que outra gaivota plana neste céu amorfo de emoções, com nuvens obstinadas a cerrarem o horizonte.
Demanda guarida, local de poiso. Afinal, a noite assoma.
Há um silêncio perturbador, dentro e fora.
Lá fora, as famílias recolheram. Hora de jantar, fim de dia ... fim de semana.
Tempo prometido. Partilhas de "estórias" das histórias de cada um.
Aqui dentro, quatro paredes imensas, altas, frias, despidas ... como jaulas ou prisões.
Os gatos dormem há horas.
A música silenciou de tanto tocar. Também ela melancólica, dormente ... igual à tarde.
As teclas do piano embalavam, numa dolência estranha, como se quisessem adormecer-me a mente .
Mais outro dia no fim !
Arde-me a garganta do que não falo. Queimam-me os miolos do que não pronuncio.
Peso. O ar é pesado, sufocante.
A solidão estrangula ... sobretudo o peito. Dentro dele, o coração.
Apetece-me gritar. Apetece-me chamar.
Não corro o risco de ser ouvida.
Às vezes penso que esta casa é uma tumba. É quando corro a chave na porta, quando cerro as cortinas, porque lá fora ficou igual ... a noite desceu.
E todas as almas se preparam para o silêncio e para a paz.
É quando as sombras se agigantam, é quando o ruído do nada amarinha pelas paredes, trepa por mim e me enleia, como as raízes ancestrais enredam as ruínas.
É uma hora de desesperança. É uma hora de desalento e de cansaço.
É quando os anjos dormem que ficamos mais sós ainda.
E acredito que a esta hora, quando o dia beija a noite de mansinho e as lamparinas do céu se acendem, eles esquecem os mortais por aqui perdidos ...
É tão só mais um crepúsculo da vida ...
Anamar
sábado, 7 de maio de 2016
" RESISTÊNCIA "
De que me serve ser guerreira do destino ?
De que me serve ser lutadora no vento ?
Para quê ser a águia lá da serra
que supõe que domina toda a Terra
e só vive a conquista de um momento ?!...
Porquê persistir nestes caminhos
e olhar a longa estrada, indiferente ?
E teimosa, enxergar apenas espinhos
quando tudo à minha volta é virente ?!
Não pode o cansaço derrubar
o ser titubeante que hoje sou !...
Porque sempre o rio procura o mar,
a ave não desiste de voar,
e depois do Inverno, o Verão se faz presente !...
Por isso é tempo de acordar e perceber
que por aqui só passamos uma vez
e que a vida que detemos, vale a pena ...
É tempo de olhar e saber ler
os sinais que a vida dá, e aprender
que esse, deverá ser o meu lema !
Tenho mais é que prender forte, o destino
Tenho mais é que enfrentar o vento norte ...
Porque se eu quiser e acreditar,
voarei bem mais alto e bem mais forte !
E resistir à tempestade, dia a dia,
deverá ser uma luta e uma vitória ...
Encarar a dor sem desistir,
esquecer as mágoas e sorrir ...
deve ser o rumo e ser a história ...
E das pequenas coisas, fazer grandes ...
De um botão, colher uma flor em cada esquina ...
Levantar, erguer do chão mesmo a doer
Tornar destino doce, a minha sina
terá que ser o norte em cada dia,
terá que ser futuro a alcançar ...
É tempo de acordar e perceber
que a vida nos foi dada p´ra viver
e que é tempo de a viver e de a sonhar !...
Anamar
sexta-feira, 29 de abril de 2016
" ESCRITA "
Esta coisa de escrever doce e doída,
é parir um filho pelo peito
é dor da alma, desmedida
é sofrer sem remédio e sem ter jeito ...
É ter as dores de um parto que se faz
é dar vazão à alma, incontida
é morrer um pouco e não ter paz
é ser um ser errante, sem guarida ...
É ser um rio que não conhece margem
é ser vento que açoita sem piedade
é deixar-me arrastar pela voragem
é escorrência sem destino nem idade ...
E esta coisa que se impõe doce e sentida
indiferente à minha sina e à minha dor,
é parte de mim, por mim parida,
é no meio das pedras, uma flor !
Anamar
" A MESA DO CAFÉ "
Essa mesa do café
daquele café de então,
tem muito de mim guardado,
do que trago amordaçado
no silêncio e coração ...
É também escritório de sonhos
onde co'as letras converso ...
é local de passagem
de amigos desta viagem,
quando o "tempo" é adverso ...
Aquele lugar é meu
de direito e por paixão ...
Nessa mesa do café
daquele café de então
onde os versos e a prosa
voejam livres no vento ...
lá me busco e lá me encontro
lá me rasgo e me aquieto
lá me falo e me lamento ...
E a palavra escorre livre,
nem respeita mote ou rima,
desce da alma ao papel,
ao sentir, sempre é fiel,
com coração de menina !...
Não é mais palavra de ida
nem é palavra de volta,
já não é palavra dita,
é palavra só sentida ...
é palavra que se solta !...
Essa mesa do café
tem em si segredos meus ...
Nela, eu rascunho a vida,
escrevo o "guião" da partida,
como quem diz um adeus !...
Anamar
segunda-feira, 25 de abril de 2016
" HOJE ... ABRIL "
42 ANOS DEPOIS ...
197 42 016
Abril é poesia
coisa de um dia, de um só coração
Abril foi aquele ...
Abril-geração !
Que falta me faz lembrar esse Abril
p'ra levantar e partir
rumo ao futuro e sonhar ...
Já não te entendem, Abril
Vives na nossa memória
estás a perder-te na História
cansado de caminhar ...
E hoje, o Abril que amanhece
é um Abril que anoitece
na madrugada de então ...
Abril foi poesia ...
foi mesmo coisa de um dia ...
teve a cor de uma nação !
Anamar
domingo, 17 de abril de 2016
" NAÏF "
Queria enviar-te um beijo,
dos que guardo por aqui,
nas asas de um beija-flor
que conhece, meu amor,
o caminho até aí ...
Mas na verdade não sei
se o poderás aceitar,
porque há muito já esqueceste
todo o amor que prometeste
teres guardado p'ra me dar !...
Nas cambalhotas da Terra,
do nascer ao por do sol,
eras tu que me guiavas
e do chão me levantavas,
eras bússola e farol ...
E fui vivendo por ti
sonho a sonho, dia a dia ...
fui aprendendo a esperar
o que não sabias dar ...
e fiquei assim vazia !
Hoje, restaram-me uns beijos
na arquinha do destino ...
O beija-flor já passou
nem sequer aqui poisou ...
acha que eu perdi o tino !...
Anamar
segunda-feira, 11 de abril de 2016
" A MINHA MÃE "
Ternura é a palavra que a define. Ou talvez seja generosidade ...
Fica difícil falar mais sobre a minha mãe, sem que me repita ... tanto já escrevi sobre ela ...
Tenacidade e combatividade enquadram-lhe o perfil de guerreira, de lutadora que não desiste, de mulher inteira, com M grande ... lugar comum, tão banal no seu caso ...
Porque ela é muito maior ... ainda assim !
Noventa e cinco anos de uma vida simples, sem exigências ou pretensões. Uma vida de desapego, vivida em função de, e para os outros.
Uma existência de missão que cumpriu a sério, numa família da qual sempre foi o esteio.
Os últimos tempos têm sido demasiado duros.
Tempo de mais, a minha mãe teve os "circuitos" cortados com a vida. Vivia porque respirava, falava e pouco mais. Sobretudo, sofria.
A demência tomou conta do seu cérebro, reduzindo-a a um farrapo humano, a um vegetal.
Um esgar de gente, um ser grotesco que me aterrava ver, me destruía, me indignava, me enraivecia e revoltava, por impotência ...
Aquela mulher não merecia terminar assim !...
Várias vezes ansiei que a sua estrada alcançasse rapidamente o último porto de abrigo, e que finalmente a paz a pudesse envolver, como pedia ...
Contudo, e porque o destino tem desígnios que desconhecemos, como uma fénix, uma ganhadora, uma atleta de alta competição, apaga agora as 95 velinhas, renascida, uma vez mais !
A minha mãe virou mais uma página, dobrou mais uma esquina, com a bonomia dos fortes, com a paciência da aceitação, com o gosto e a graça pelos dias ... de novo ...
Muito embora os seus dias sejam passados entre uma cadeira de rodas, um sofá e uma cama ...
Muito embora os seus horizontes se tenham confinado às lembranças que, com alguma nitidez, agora voltaram a acompanhar as suas horas.
Lembranças da sua casa que sempre foi o seu mundo, lembranças de todos quantos amou e há muito já partiram, lembranças da sua tão remota juventude, lembranças da sua vida pregressa, da infância das netas ... da minha própria meninice ... ou se calhar, saudades maiores dela própria ... quando ainda era a "Margarida", como costuma dizer ...
Ainda assim, neste momento ela escolhe viver, acordar por cada dia ... ela escolhe outra vez o convívio dos que a amam ... e satisfaz-se com o possível ... enquanto for possível ...
A minha mãe tem a tranquilidade dos que estão em paz, dos que cumpriram uma tarefa com sabedoria.
Tem a felicidade da transcendência ... daqueles que colocam além de si , a felicidade dos outros ...
Tem uma bondade infinita num olhar que ainda irradia luz ...
As suas mãos descarnadas não esqueceram o afago e o carinho, e o coração cansado ainda é colo e ninho ...
Tem a alegria simples de uma criança com um brinquedo nas mãos, e o sorriso travesso de quem acabou de colher braçadas frescas de estrelas da madrugada, e que trepou ao fim do arco-íris ... numa tropelia de menina-pintora do destino !!!...
Enfim ... a minha mãe é tão só ... a MINHA MÃE !!!
Anamar
terça-feira, 5 de abril de 2016
" MELANCOLIA "
Quase noite, em mais um dia que se fez ...
No horizonte, o sol cansado já poisou
O silêncio e a penumbra vão descer
no caminho de quem caminho muito andou
Mais um dia que o destino já cumpriu,
menos um, nessa estrada a percorrer ...
Pássaro livre que me deixou e partiu,
um regato que correu veloz p'ro rio,
foi flor solta no vento, a fenecer !
Porque quem já caminhou, não tem p'ra caminhar ...
nem sonhos e ilusões tem p'ra viver ...
E quem muito cansou sem nunca descansar,
é barco que veleja à toa pelo mar,
é sol que busca o ocaso p'ra morrer ...
Ontem já é hoje, hoje é amanhã ...
Pressuroso, o tempo varre o coração
com uma impiedosa e insensível fria aragem,
como um incontrolável e rude furacão,
que nos arrasta os sonhos como em turbilhão,
como um caudal insano que galgou a margem ...
Assim a nossa vida vai partindo ...
Os dias, o destino vai cumprindo
um a um ... vão seguindo a sua vez ...
A quietude e a paz do fim do dia,
são embalo, são doce melancolia,
em mais um fim de tarde que se fez !...
Anamar
sexta-feira, 1 de abril de 2016
" AS NOSSAS ESTAÇÕES "
Os primeiros farrapos verdes já assomam nas árvores e arbustos, com a doçura deste sol fraco da Primavera recém chegada.
Olhando de longe, ainda parecem despidos, com os ramos aparentemente nus, contra o céu, em contraste. Mas olhando melhor, lá estão os brotos verdes, tenros e viçosos, promissores de cabeleira farta que se irá compor .
Mais um ciclo de vida a recomeçar, depois da sonolência do Inverno ...
Este renascimento que sempre acontece ano após ano, quando a Primavera ladeando a Páscoa promete a tal renovação da Natureza e do Homem, patenteia-se no mundo que nos rodeia e no coração do próprio ser humano.
Este, eclode de um período sonolento, entorpecedor e escuro de um Inverno que nos hiberna, que nos introverte e de alguma forma, nos recolhe.
Foi um tempo de portas fechadas, de intimismo, de regresso, de reflexão e de silêncio ...
E depois, a explosão prometida anuncia-se, e há um deslumbramento generoso e excessivo, no mundo à nossa volta.
As cores, os cheiros, os sons, a magnanimidade de tudo denuncia-se, mostra-se ... dá-se ...
Caminho pela mata, silenciosa e contidamente.
Maravilho os olhos, os ouvidos, o nariz, com a gratuidade da oferta em torno de mim.
A vida explode com a pujança de alma nova, com a irreverência de toda a juventude, com a força indomável das seivas revigoradas ... com o despudor de seios entumescidos ...
O "sangue" novo lateja, irrequieto e imparável. A escorrência da perenidade exibe-se, cumprindo desígnios ...
Pensava para comigo : todo o ano o ciclo se repete ! A Natureza se concede uma nova chance. A vida "emenda a mão". A perfeição emerge do nada para a luz ... O caos e a ordem coexistem, na composição da realidade ... E a realidade se faz em milagre !...
Todo o ano, a árvore adormece, dorme e acorda.
Todo o ano se despe, para se engalanar outra vez, mais ricamente, se possível .
Todo o ano floresce, pomposa, frutifica, lança sementes na garantia da continuidade ...
Todo o ano atravessa Primaveras, Verões, Outonos e Invernos ... E recomeça, para voltar a atravessar mais ciclos de vida ... muitas e muitas vezes ainda ...
Não precisa ficar saudosa da Primavera que partiu. Voltará uma outra, no próximo ano ...
O Homem não !
O Homem dispõe de uma única oportunidade.
O Homem usufrui de uma única vida, onde esgota sem retorno, todas as estações da existência.
E sempre sabe que a ordem que as sucede, jamais é subvertida. E sempre sabe que esgotados os seus tempos, a inevitabilidade do mesmo, lhe impõe, sem volta, a que se segue.
E que a que partiu, partiu para sempre ...
O Homem sabe que tem ao seu dispor, um único ciclo ... e não mais.
Finda a sua Primavera, jamais "farrapos verdes" lhe brotarão de novo, no coração e na alma.
Jamais novos pássaros saltitarão nos seus galhos enfeitados. Jamais novos ninhos habitarão as suas ramagens frescas. As flores fenecidas não poderão eclodir outra vez, e os frutos maturados no pé, foram-no uma só vez na vida ...
Um ano ... um só ano nos é dispensado !...
Penso que tomamos consciência disso, frequentemente tarde de mais.
Penso que reflectimos pouco, a propósito. Penso que esgotamos mal a vivência de cada "estação"...
Deveríamos sorvê-la à exaustão ... sabendo-a única ...
Deveríamos extasiar-nos sabendo-nos vivos, a atravessá-la ...
Deveríamos colher todas as braçadas de flores frescas, com que a Primavera nos prestigia ... todas as espigas das searas loiras dos nossos Verões ... todas as frutas maduras dos Outonos doces e pródigos ... e toda a serenidade e paz dos rigores dos Invernos destinados ...
Mas quase nunca o fazemos !... Quase sempre o esquecemos !...
Anamar
quinta-feira, 17 de março de 2016
" DIVAGANDO "
"As pessoas são como as casas. Precisam de quem as habite " ...
Aquela casa está silenciosamente vazia.
As janelas cerradas não deixam que a luz penetre. As portas fechadas não deixam que os sons a invadam.
Ainda está repleta, mas está vazia. O único sinal de vida que ali persiste é dado por duas plantas sobreviventes à hecatombe da existência. Continuam a resistir com algumas gotas de água e com a claridade generosa da marquise.
Resta o som dos passos quando por lá ando, restam as memórias percorridas quando deambulo de divisão em divisão, feito um zombie dos tempos.
Sobram demasiadas imagens a desenrolarem-se diante de mim, quando me quedo e simplesmente penso ...
Há uma degradação lancinante, naquele espaço. Há um abandono instalado. Há um vazio atroz. Há um silêncio sufocante ...
Àquela casa só sobram recordações de tempos idos. Hoje, ela é uma tumba de histórias, de pessoas e de emoções.
Andam risos por ali, a esconderem-se pelas esquinas. Andam vozes por ali, a negacear atrás de cada porta. Andam rostos a brincar de duendes na floresta, entremeio ao arvoredo ...
Juro que os vejo, os oiço ... os escuto mesmo !
Basta-me fechar os olhos, por momentos ...
Mas a casa está silenciosamente vazia. Escura. Triste. Só. Decrépita. Doente ...
Aquela casa está agonizante ! Perdeu, obviamente, a alma !...
As pessoas também.
As pessoas precisam habitar-se para estarem vivas.
Precisam povoar-se dia a dia, com sonhos, emoções, projectos, desejos, metas ...
As pessoas precisam abrir as janelas da alma, precisam inundar-se de afectos, lotar-se de amor, preencher-se de vida ... Impregnar-se de pessoas ...
O Homem é um ser gregário. Não nasceu nem existe, para ser um edifício devoluto.
Desabitadas, as pessoas ficam inapelavelmente sós, estiolam e morrem !
Eu não quero saber-me uma casa mofada.
Eu quero escancarar as portadas, abrir as janelas, deixar-me ensurdecer de sons, de cheiros e de cores.
Eu quero deixar o sol e o vento adentrarem-me.
Eu quero que a chuva me abençoe e que a lua me visite, sem esquecimentos.
Quero a música dos pássaros, num embalo dolente, e o afago púdico das borboletas, em beijos roubados.
Eu quero um coração latejando, vivo e transbordante. Um coração pulsante, que saiba rir, mas não esqueça o que é chorar. Que saiba emocionar-se, sofrer e ser feliz ...
E que o único ar que me falte, venha da sua batida descontrolada por vivências abençoadas ...
Quero uma alma que confie e acredite.
Quero sufocar-me de sonhos ... ainda.
Quero empanturrar-me de vontades ... sempre.
Quero acreditar que continua valendo a pena ...
Quero remoçar-me nas ilusões da juventude ...
Não preciso ter tudo. Basta-me alguma coisa ...
Mas sobretudo quero saber-me uma casa com gente ...
Quero sentir-me uma casa HABITADA !...
Anamar
domingo, 13 de março de 2016
" POR QUE ESCREVO ? "
Por que escrevo ? E eu sei lá !
Por que corre o rio p'ro mar,
nasce o sol em cada dia,
canta cedo a cotovia
e não cansa de cantar ?!
Por que acasalam as aves
se chegou a Primavera ?!
Por que despertam as flores,
renascem novos amores
e a Natureza não espera ?!
Alguém pergunta ao pardal
por que salta, em vez de andar ?
Alguém pergunta à gaivota
que notícias traz do mar ?
Alguém sabe por que a serra
sobe e desce de cansada ?
E nas planícies, os trigos
levam vida espreguiçada ?
Nasce a urze pelos montes ...
Entre pedras, o ribeiro ...
A água corre das fontes,
recusa ter horizontes,
desconhece cativeiro !
E a aurora sempre desponta
mesmo da noite mais dura ...
Entre as nuvens, o luar
desce à Terra a iluminar
toda a madrugada escura ...
Não se prende a borboleta,
ou cala o melro, que trina ...
Se das pedras desabrocha
a flor que rompe a rocha,
é porque era a sua sina !...
Eu escrevo porque respiro ...
e escrevo para respirar...
Como as ondas lá do mar
deixam na praia um suspiro,
com saudade de voltar !...
Escrevo, porque o que escrevo
e é espólio do meu viver,
se alinha, sem perguntar ...
sempre que estou a escrever !...
E assim sendo, não perguntem ...
porque não sei responder ...
Escrevo, porque ao nascer,
minha mãe ao dar-me o peito
percebeu este meu jeito ...
e deu-me a escrita p'ra viver !...
Anamar
sexta-feira, 11 de março de 2016
" A GRANDE FAMÍLIA "
Eu pertenço à equipa dos "singles".
Digamos que não é bem isso, mas quase. A "minha gente" de sangue, está um pouco longe. Alguns quilómetros apenas, mas não aqui, debaixo do meu tecto.
Aqui, comigo, tenho o Chico e o Jonas. Bastam-me, alegram-me e até me amparam. Tanto quanto os animais o sabem fazer.
Tenho as "minhas coisas" ( porque sempre nos rodeamos das nossas indefectíveis coisas ... ), os meus livros, a minha música, as minhas fotografias, os meus escritos ... fragmentos de memórias ...
Aquilo que constitui o meu espólio ao longo de alguns, já razoáveis anos.
Tenho as minhas paredes, o meu "ninho" ... tudo onde a minha "pegada" foi deixando rasto.
Mas também tenho o céu à minha frente, dado ... incondicionalmente, pelo privilégio de, vivendo bem alto, não ter muros ou barreiras adiante de mim.
Tenho a minha gaivota, que às vezes traz a "família" se a borrasca assoma do lado do mar.
Tenho o plátano das traseiras, que começa agora a engalanar-se de roupagem verde, já que o sol espreita e a Primavera está aí ... e que há meses atrás se doirou de folhagem quente e melancólica ... Ciclicamente ...
Tenho também o gato farrusco nos terraços lá de baixo, que não é de ninguém e é de todos os que o olham ... nem que seja assim, bem de cima, como eu.
Sempre sorrio se da janela o vislumbro, "esparramado" ao sol, com a felicidade dos que são livres, e sempre me interrogo apreensiva se o não vejo, por dias ... "Será que ?!..."
Bom, depois tenho os pores de sol ... porque a minha vista o alcança até que ele dorme, lá para os lados de Sintra.
São inenarráveis, todos os dias. São uma aguarela indescritível que a Natureza me pinta, generosa, para me alindar os tempos.
O casario de desenho irregular e em desalinho urbano, tem dias que me atiça a ira ... "Irra ... que selva esta, sem beleza ou graça ! Cogumelos mal nascidos, sem "rei nem roque" ! "
Mas pronto, nada a fazer ... Emolduram-me inapelavelmente a paisagem, e são os únicos limites que tenho, à vontade e ao sonho !
Descendo à rua encontro depois, os vizinhos. Um ou outro ... sempre me cruzo com alguns.
No mesmo prédio há mais de quarenta anos, conhecemo-nos desde jovens casais, como marinheiros de primeira viagem quando os rebentos começaram a despontar, depois como pais responsáveis com a prole a avançar na vida ... e já com histórias para contar.
Vimo-nos a maturar e logo depois a envelhecer.
Convivemos com "deserções", por muitas razões.
Partilhamos angústias pelas doenças, pelas dificuldades, pelas "partidas" e pelas preocupações ...
Sempre queremos saber uns dos outros, sempre nos regozijamos pela ventura e sempre nos afligimos pela desventura... Somos afinal extensão da família natural.
Há depois o café de sempre, para o pequeno almoço tardio. Porque isto de não ter pressas tem as suas vantagens.
Também aqui os frequentadores são os mesmos. Rostos conhecidos de há anos, no café das mesmas horas.
Consigo saber exactamente quem está de "penetra". Identifico facilmente os frequentadores de ocasião.
Pergunta-se pelos ausentes, sobretudo se essa ausência já é notória. E vamos sabendo dos acontecimentos, Quase sempre de saúde, porque a faixa etária da grande generalidade, já é respeitável.
Tem-se atendimento mais que personalizado ... rsrsrs ... Afinal ganha-se estatuto de antiguidade. E antiguidade confere privilégios, como sabemos ...
Local de encontro ( há quem apareça apenas porque sabe que aqui estou invariavelmente à mesma hora, numa espécie de "escritório " inventado ... ), local de leitura quase sempre, local de escrita, às vezes ... local de "fareniente", em que apenas deixo a cabeça vaguear, num alheamento distante, em dias menos felizes ...
Estou como que numa segunda casa, estou numa espécie de novo prolongamento familiar, estou de alguma forma, noutro espaço de afectos ...
De mais longe os amigos às vezes telefonam, joga-se conversa fora, comentam-se as últimas.
Estão longe, mas sempre se mantêm presentes ... sortilégio da amizade !...
E pronto ... faz-se a hora de regressar ...
Afinal os dias são preenchidos de pequenas coisas.
A vida é feita de uma diversificada teia de afectos que deveremos cuidar, que deveremos preservar e privilegiar.
É ela a "grande família" que nos foi disponibilizada para o caminho a palmilhar ... Também apoio, também suporte, também carinho, de certo modo ... Ela é extensão da família real, da biológica, da sanguínea, não escolhida obviamente, e tantas vezes menos presente, pelas imposições reais da existência.
Porque o amor não vem do sangue, não vem de nenhuma regra ou determinação social ... vem do cuidado, do respeito, da troca ... ou seja, " o amor vem de amor " ... é que cada vez mais se não justifica a separatividade que os laços sanguíneos determinam, entre os que são e os que não serão tão credores dos nossos afectos.
Por isso, com ela, com toda a nossa "grande família", vamos cumprindo o destino, com ela vamos percorrendo o caminho ... com ela vamos fazendo a VIDA !
Anamar
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