sexta-feira, 7 de junho de 2013

" JÁ FAZ TANTO TEMPO !!! "




Lá longe eu sei que o sol se está a pôr.
As nuvens em novelos escuros, encerram este dia pesado, desenquadrado de um Junho, quase Santos Populares, que se quereria quente.
Aqui, a penumbra cerra e encerra na escuridão do fim de dia, este meu quarto, onde me sobra a janela, qual tribuna por sobre o casario ...  Queluz, Monte Abraão, Massamá ... Sintra, que mais se adivinha, do que se divisa.

Estou desconchavada de alma.
Sei lá o que é que isso é ...  Mas seja lá o que for, é exactamente o que eu estou, tenho absoluta certeza.
O sol foi descendo e compondo aqueles momentos mágicos, de sombras chinesas, em que vezes sem conta o supomos definitivamente desaparecido, e vezes sem conta, de novo, ele se anuncia no esconde-esconde de baile de máscaras, por detrás do encastelado do céu ...
Espreita aqui, segundos depois espreita ali, projecta caminhos de luz por entre as nuvens, como focos varredores, de farol no penhasco ...  Apaga-se, para se acender apenas num ai, altivo e poderoso, anunciando simplesmente que o rei vai dormir.
Estou meio amortecida, física e mentalmente.  Não me apetece pensar.  Parece que me sinto febril, e a cabeça lateja-me.

O Rodrigo morreu, no IPO.
O Rodrigo era um menino talvez de cinco anos, que sossobrou na luta contra a leucemia, que arrastava há tempos, num frente a frente titânico.
A fragilidade da sua figurinha  pálida, definhante, vinha anunciando que a batalha estaria a perder-se ...
A palidez do seu rostinho esquálido, onde dois olhões bem vivos pareciam jamais se poderem apagar, a ausência de cabelo, indiciador da Via Sacra percorrida, as maçãs do rosto salientes, exibindo a magreza que se estendia a toda a figurinha, contrariavam o sorriso que o menino da chucha sempre exibia nas fotos, onde pedia que alguém o ajudasse, na busca pela compatilidade de medula.
Hoje o Rodrigo, que eu nunca conheci, foi com o sol, neste dia pardo e penumbrento.
Cansou-se de esperar um milagre, e deixou-se levar nas asas do anjo que lhe bateu na janela ...

Silêncio ... demasiado silêncio por fora, mas sobretudo por dentro de mim.
Os crepúsculos em que até os gatos param, sempre me comprimem o coração.  E quando o coração se comprime demais, como um repuxo, pula o dique, e vasa.
Porque ... raios ... esta coisa estrangulante, tem que aliviar por algum lado, como o furo onde tínhamos o dedo, e que destapámos.

Gostava de ter um sentido na minha vida.  Não viver apenas porque os dias se sucedem, e isso é tempo, e tempo é vida que vai indo.
Gostava de ter uma linha de chegada qualquer.  Até podia estar lá longe, como este sol a pôr-se ... Mas haver uma meta a atingir ... Já era bom que eu a enxergasse.  Não ter apenas aquela sensação de ver o percurso a escoar-se, de virar esquinas, dobrar caminhos ...
O sonho chega, o sonho parte, e eu acredito já em muito pouca coisa.  Sinto que um  isolamento progressivo, bate diariamente à minha porta ...

Eu julgava que as palavras aproximavam as pessoas.
Mas não !
Senão, tu perceberias perfeitamente que quando digo que te amo, o meu amor vem embrulhado em mimosas e madressilvas.
Como antes ... Tal como no tempo das gaivotas, dos seixos no areal, dos dias azuis sem chuva, e horizontes laranja.
Tal como no tempo em que tu ainda me fazias sentido, e eu ainda te fazia sentido ...

Entretanto esquecemos as palavras ... curtas que eram !...
Esquecemos que elas nos punham em fogo, e desabrochavam sorrisos quentes, nos lábios ...
Esqueceste como era doce, a laranja amarga da minha boca, ao beijar-te ... e como eram cheirosos os bouquets de lavanda e rosinhas que jogavas aos meus pés, quando eu ainda era a imagem com que dormias, e que te aquietava os sonhos, nas noites distantes e frias ...
Já faz tanto tempo !...
Foi ontem ... mas parece um século !...

Entretanto o Rodrigo já brinca com as borboletas, no meio dos anjos e querubins, de bochechas róseas, nos jardins lá por cima ...
E juro ... não me parece nada bem, estar aqui a falar de mim !!!...

Anamar

terça-feira, 4 de junho de 2013

" BASTA ESTAR VIVO !... "



Já escrevi muito sobre este café. Ele também é casa minha, de todos os dias.
Pr'aqui caminho, à hora de sempre, para o pequeno almoço de sempre ( igual todos os dias ), encontro os rostos de sempre, irrito-me com as coisas de sempre ... e sempre penso, e sonho, e reflicto ... e até choro ... não sempre ... algumas vezes !
Este café é a casa possível, é a família próxima, possível.

Temos a outra. A que está lá fora. A que trabalha, faz a vida, tem os filhos, as responsabilidades, a realidade sempre corrida.
Aquela que se faz sentir, de longe, pelos telefones, quase sempre. "Mãe ... está tudo bem ?"... "Mãe, estás com voz chocha !"... "Não tenho nada ... que disparate ! Está tudo normal !"...

E o que é estar tudo normal ?
É garantir que os dias não trouxeram até ao momento, demais sobressaltos ou sustos, que a mansidão, a mornidão, o adormecimento, o entorpecimento ... a solidão e o desânimo, vão dando para aguentar por aqui.
É respirar, é dormir, acordar, é entrar, é sair de casa,  é rodar na engrenagem ( porque ela tem que girar, não pode parar ) ... é velar p'ra que nada significativo desequilibre, este instável e sempre precário equilíbrio, que é Viver...

E é tentar não remexer muito nos "baús" interiores. É conter a tempo e horas, esta onda corrosiva que tem a mania de amarinhar pelo peito, que acelera os tique-taques cá dentro, que estrangula a garganta, que continua a trepar, põe os olhos incontroláveis ... e sobe mais ainda ... e amarfanha a alma !
É quando tudo desaba, como aquele castelo que os meninos conseguiram construir com cartas, e uma corrente de ar matreira, deita por terra, juntamente com os seus sonhos e a sua alegria .
Quando isso acontece, tudo rebenta, como os diques de levada ... e nós ficamos sem condição de nos aguentarmos.

Hoje estou assim !

Cheguei ao café, e contaram-me que a D. Madalena, de quem já falei algumas vezes, e sobre quem já escrevi sobejamente, está hospitalizada, por ter sofrido um acidente doméstico, e ter ficado muito maltratada.

A D. Madalena, aquela senhora "pata-choca" no andar, com óculos de fundo de garrafa, de voz em falsete, que sempre ri atontadamente, que tem a bonomia da inconsciência dos apoucados ... vive só, com um cãozito, sua única companhia, depois da morte do marido, depois da morte da mãe, depois do caniche branco ... depois de ter envelhecido ... mais ...

A D. Madalena vive actualmente na minha praceta, frequenta os meus sítios, e é impossível não se gostar dela  ( um gostar envolvido em alguma benevolência, quiçá comiseração ... )
A D. Madalena era a última pessoa merecedora que lhe tivesse acontecido uma desgraça ( se alguém merece ter desgraças na vida ).

E agora ?  Como se irá desenrolar a sua vida, à mercê da boa vontade dos vizinhos, dos conhecidos, dos amigos de café ou de missa?
Como será estar tolhida na sua cama, talvez com o cachorro solidário aos pés ( porque eles nunca nos abandonam ), alongando o olhar pela folhagem das árvores da praceta ( que lhe alcançam o nível da janela ), vendo o azul do céu lá fora, neste Junho que amanheceu quente ... esperando que uma alma caridosa lhe meta a chave à porta, e lhe leve da rua, um pouco da vida que se faz cá fora ?

Como será fazer parar a correnteza do presente, pensar a incerteza do futuro, colocar o existir em banho-maria ...  assim, num ápice, do dia para a noite, como uma onda gigante que submergisse tudo ... até os sonhos que julgo a D. Madalena não ter ??!!

Chega estar vivo, p'ra se morrer a seguir ... verdade de La Palice .

Há muitas formas de se começar a morrer, em vida ...

Anamar

segunda-feira, 3 de junho de 2013

" ESTE MUNDO QUE ESCOLHEMOS ... "



Estamos no mundo do medo, do silêncio, da não aposta, nas relações humanas.
É um mundo de incoerências, é uma sociedade que se queixa do isolamento e do ostracismo, e os cultiva !

Sobretudo  nas  macro-realidades  sociais,  como  são  as  urbanas,  com  toda  a  sua  carga  de afastamento   físico  entre  as  pessoas  ( encurraladas em "colmeias", que têm  "quilómetros" de distância entre o esquerdo e o direito da cada andar, ou entre os andares do mesmo edifício ), ninguém conhece verdadeiramente ninguém, ninguém sabe verdadeiramente nada mais de ninguém, além do óbvio, do superficial e do socialmente correcto.

Depois há todo o mundo da solidão, as horas do vazio, a ausência física de vida à sua volta.
No fim de cada dia, cada um, carregando a sacola dos seus problemas, angústias e dores, fecha-se no seu espaço, e fecha-o, quando corre a lingueta da fechadura ... por mais umas horas.
A engrenagem retoma-se no dia seguinte, em que de novo, cautelosamente, os seres humanos se reaproximam na devida dosagem, sem grandes entregas, com partilhas controladas, com cautelas redobradas, com compromisso programado, com trunfos nas mangas, com aproximações dinamitadas ...

Eu diria que as únicas relações desarmadas e potencialmente verdadeiras que existem, são ainda as da adolescência.
Aquelas que se estabelecem entre pessoas "virgens" nas experiências relacionais, pessoas que ainda não foram magoadas, não têm cicatrizes, estão imbuídas de uma ingenuidade e de uma confiança, que a inconsciência do desconhecimento do que é viver, efectivamente lhes confere.
Depois o caminho desenrola-se, e essas mesmas pessoas, primeiro, de uma forma incrédula, depois sentindo-se injustiçadas, depois ainda, revoltadas, finalmente conformadas ... começam a formar o seu próprio espólio de mágoas, de desilusões, de descreres, de desaposta, de desinvestimento, e começam a ganhar a postura cabisbaixa do conformado perdedor, de quem vai carregando um fardo, gradualmente mais pesado, que não tem  alívio  possível...

E as pessoas isolam-se.

Ninguém está emocionalmente equilibrado.   As pessoas  sofrem, as pessoas anseiam outra coisa, outro futuro, outra janela ...
E esforçam-se, algumas até se esforçam.  Outras capitulam, e encontram sucedâneos para se "distrairem" da vida !

Entra aí o relacionamento virtual, muitas vezes ... a sacada mais próxima que se tem à mão, para se abrir.
Só que essa pseudo-solução, é isso mesmo.  Uma pseudo-solução, uma panaceia, um "analgésico" no coração.
Não é mais do que uma alternativa, um substituto, um "genérico" ... um faz de conta !

Efectivamente, por essa via, as pessoas "pensam-se" acompanhadas, mas "sabem-se" sozinhas, absolutamente sozinhas.
Nada é como parece, porque por detrás do "virtual", há obviamente o "real" ... e esse, quase sempre não confere !

E o vazio do cansaço instala-se, mais bravo ainda , mais destruidor, mais defraudante do que antes !...

Contudo, aparentemente de uma forma incoerente, o ser humano não arrisca pôr em causa a realidade de que desfruta, insatisfatória, sem horizonte e sem perspectiva ;  desgastante, desmotivadora, cansativa, desinteressante e sem cor ... para partir para uma outra, que teria hipóteses de ser gratificante ou não, na medida de meio por meio ... só porque essa tentativa lhe exige empenhamento, lhe exige esforço, lhe exige coragem na quebra de hábitos instalados, o força a romper rotinas que enjeita, e de que se queixa ...

E  cobardemente não aposta.  Comodistamente não avança um passo, e prefere apodrecer na insatisfação, no lamento, e na mediocridade da sua vida ...

Para mim, entendo-o como sinal de envelhecimento, de incapacidade de operar mudanças, de falta da saudável ingenuidade, e da fé, do querer e do crer muito, que tivemos um dia !
E por isso, há velhos aos trinta, aos quarenta, aos cinquenta, aos sessenta ...
E tenho pena !!!...

E assim vamos vivendo ... ou vegetando ... ou mascarando com uma pílula dourada, a incompletude, a frustração e a desilusão doída, deste "fazer de conta" que é viver ...

Até quando ??

Bom, até que nos convençamos que nada há mais a fazer, que a capitulação e o depor de armas é o que resta, que a falta de coragem será a nossa última companheira de vida, e nos acomodemos ... aparentemente nos conformemos ... e definitivamente encostemos  às "boxes" !!!...

Mas aí ... estaremos mofados, apodrecidos, mortos ... e fizemos de conta que não demos por isso !!!...

Anamar

sábado, 1 de junho de 2013

" VIAJANDO ... "


 

As "flores amarelas sem nome", ganharam um, de repente e inesperadamente.
As flores amarelas sem nome, que vivem largadas nas falésias, desafiando ventos, sol e tempestades, são as "cantarinas", afinal ...

Engraçado, como eu preferia quando elas eram simplesmente flores amarelas sem nome ...
Engraçado, como eu as preferia antes de se desvendarem.  Porque eram apenas flores amarelas, viviam nas falésias de vento enlouquecido, e pertenciam à minha história.
Agora, pertencem à história de toda a gente ... podem pertencer à história de quem as chamar de "cantarinas" ... porque de "flores amarelas sem nome", tenho a certeza que só eu as chamava ...
E o encantamento de apenas serem chamadas por mim, porque fui eu que as baptizei, quebrou-se.
A aura mística e adocicada de serem flores minhas, esvaziou-se ...

Muitas coisas nas nossas vidas, têm razão de ser, apenas enquanto são coisas nas nossas vidas.
Quando começam a ter nome, identidade ... quando se despojam do nosso "não saber" acerca delas, perdem metade do fascínio, e ficam doídamente vulgares .  Passam a ser para nós, exactamente o que são para muita outra gente.
Deixam de ter a exclusividade de apenas sorrirem para nós, de apenas iluminarem os nossos caminhos, de deitarem poalha de esperança, apenas nas nossas mãos.

E como nos sentimos importantes, quando temos coisas apenas nossas, quando merecemos participar dos códigos secretos que são isso mesmo, secretos, ou quando simplesmente, flores se dividem connosco ... mesmo que se chamem de "cantarinas" !...

É como o sol.
O sol que se deita sem pudor, todos os dias, no horizonte longínquo, frente ao meu sétimo andar, é o "meu" sol .
São os meus olhos, que o vêem, é o meu coração que dispara, no bate-bate, por cada minuto em que ele declina, é a sua fotografia, desenhada por mim, escolhida por mim, e vivida por mim, aquela que me extasia a cada passo do baile, com que brinca nas nuvens carregadas, de Sintra ...

Ninguém vê, ou sente, ou usufrui daquele sol, como eu, imóvel, estática, sem respirar ... não vá ele assustar-se e fugir mais depressa, naqueles momentos que eu desejo perpetuar.
Jamais serei capaz de "o" contar, a quem quer que seja, jamais serei capaz de explicar como ele é indissociável do meu viver, e como é por ele que espero acordar na manhã seguinte ...
Porque sempre penso que neste Mundo, muitos que o vêem adormecer, já não o vêem acordar ...

Por que será que o ser humano não pára, enquanto não conhece, não descansa enquanto não desvenda, não sossega enquanto não sabe ... ou enquanto não julga saber ??!!
Mas depois, quase sempre fica mais pobre, porque o limite do sonho fica a anos-luz da melhor realização.

Nunca o que vemos ou julgamos ver, é a verdade.
Não existe "a verdade".  Tudo é resultado de uma mera projecção nossa interior, fruto de tantos vectores condicionantes, que arrisco dizer, que hoje, um dia de sol e céu azul, é na verdade um rigoroso dia de Inverno ...
Apenas eu, preciso de luz na minha alma !...
Por isso, já Picasso eloquentemente dizia, que há quem num borrão amarelo, acenda um sol, e quem, reduza o próprio sol, a um mero borrão amarelo !!!...

Bom ... chega de insanidades !...

Acho que as "cantarinas" das falésias, não podem plantar-se em vasos.  São livres demais para isso.
Senão, eu faria com elas um viveiro, bem na minha janela, porque enquanto as olhasse, teria a secreta certeza de me passear nas arribas, frente ao mar e ao sol sobranceiro, tal qual como quando elas eram  apenas  "flores amarelas sem nome" ... e pertenciam à minha história ...

Anamar

quarta-feira, 29 de maio de 2013

" OS SILÊNCIOS "



O silêncio deste café, tem dias ...
Como todos os silêncios têm provavelmente dias, horas, anos ...
Há anos de muito silêncio, na vida das pessoas.  São aqueles em que o hoje é demasiado igual ao ontem, e o ontem, uma cópia do que fora há um mês atrás.
Quando a mansidão, a excessiva mansidão se instala, fica aquela coisa igual a um rio em tempo de seca, que mal corre, seca os charcos, apodrece, gera solidão ... mata a vida !
Aí, o silêncio instala-se.  O gorgolejo da água, que é sempre fresco quando ela corre, dança e serpenteia por entre pedras, deixa de se ouvir.  Tudo adormece.  E a Vida afasta-se ...

Eu não sei viver  "em silêncio".  Tenho a sensação de que ele sempre me encurta a vida.
Há gentes que vivem amodorradamente, sem turbulência.  Aliás, acredito que cada vez mais pessoas anseiam viver dessa forma, anestesiadas do percurso.
Eu sou demasiado inquieta e desinquieta, para ficar na beira do caminho, a sentir apenas o vento ... O vento e o silêncio que ele carrega.
Eu, sou da terra onde ele mais existe. Onde o espaço é longo e a vida é curta !

E por isso, silencio para dentro, quase sempre.
Embora o não deseje, há momentos que o decreto na minha existência .  É quando percebo então, que ela se escoa aceleradamente, e quando penso como o seu avanço nos remete mais e mais, inapelavelmente, para o tal silêncio ... o definitivo, o que ficará um dia ...

Neste momento da minha vida, ando um pouco assim .  Ensimesmada, cinzenta, meio morta ...

À minha volta, coisas que me mexem, me mexeram, reduziram-lhe a "velocidade" da marcha.
A morte de mais uma colega de trabalho, uma passagem pela escola, para confraternizar num aniversário de uma outra que ainda está no activo ... deixaram-me sensações estranhas, na alma e no coração !

Constato, sem surpresa, contudo, que a  "segunda casa" da  minha vida, se transformou num local penoso, neste momento, apesar  de, dele estar afastada, há três anos.
E isto deixa-me estupefacta e reflexiva, pois não seria espectável ... é logicamente inexplicável ...
Por outro lado, continuo a emocionar-me, numa emoção doce e terna, como se me me deixasse envolver numa espécie de útero de afectos, ao rever os colegas e amigos que ainda por lá estão.
É como se tivesse voltado ao encontro de um "chão", de uma "língua", de um coração gigante e colectivo, recheado de sentires, preocupações e partilhas, que foram nossos ...
É uma mescla de sentimentos, todos a atropelarem-se ao mesmo tempo, todos a quererem subir à garganta em uníssono, todos a levarem-me lá atrás, a um tempo que foi uma vida também ...

E de repente, outra vez  linguagens iguais, gargalhadas comuns, beijos, abraços e promessas,  que nem o tempo, com a sua capacidade injusta de esquecimento, conseguirá adormecer para sempre ...

E tudo isso me deixou com a  melancolia que se experimenta, quando numa boa história, vamos voltando uma após uma, as páginas do livro, em direcção ao seu epílogo ... sem remédio ...

Hoje  precisava que um qualquer tsunami agitasse a minha "praia", precisava que me despejassem a "caixa de aguarelas" em cima, precisava de um software topo de gama, que me acelerasse os batimentos cardíacos ... porque, não "me gosto", como ando ...
Eu sou uma pessoa de exageros e de excessos.  Essa, a minha "marca" ...
Para me sentir viva, preciso de estar, ou muito bem, ou muito mal, de estar no auge da felicidade, ou na mais completa e inenarrável desgraça.
No fundo, preciso de um motivo para "me sentir" ... para "me valer a pena" saber-me viva ...
Quando deixo de o ter, quando fico invisível perante mim mesma, quando o indiferentismo me toma conta, quando o tal "silêncio" se me instala, alguma coisa não está correcta comigo ...
De alguma coisa eu estou a desistir.  A Vida ficou-me demasiado vulgar, parda e quieta, e começou a tornar a minha vida, numa "não vida" , como a que se respira todos os dias, à mesma hora, nos silêncios deste café que adormece ...
... Dia, após dia ... após dia !...

Anamar

quarta-feira, 22 de maio de 2013

"A LENDA DA MOURA"



Atingido o cimo da encosta, já se divisava bem, do outro lado, o que restara ...

As ruínas estendiam-se, abrangendo todo o espaço por ali abaixo, perdidas numa terra que parecia morta.
O mato rasteiro crescia seco, pelo meio delas.  Nunca mais, nada que valesse a pena, conseguira vingar naquele lugar.
Antigamente havia uma estrada que galgava a pequena montanha abrigada, ladeada então, de vegetação frondosa e confortante, na subida.
O alto daquele monte, por onde meia dúzia de casas rasteiras se empoleiravam a esmo, permitia uma vista deslumbrante, donde, em dias de céu limpo, se descortinava mesmo, o mar intensamente azul, em fundo, lá longe ...

Samira viera habitar aquela aldeia perdida em nenhures.
Ninguém a conhecia.  Não conhecia ninguém.
Chegara em silêncio, num dia de muito calor, em que nem o chilreio da passarada, se deixava ouvir.
Viera ocupar a última casa do povoado, a que ficava no fim do caminho, com uma cisterna de água límpida debaixo da tileira de copa generosa e verdejante, e uma figueira como as da sua terra, mais além ...

De pele tisnada pelo sol que castiga os tuaregues no deserto, cabelos longos e crespos, largados pelas costas e envoltos no manto, quase sempre descalça, usava vestidos compridos e soltos, que tocavam o chão.
Por que viera, quem era, o que procurava, o que escondia ... ninguém sabia !

Samira deambulava pelas encostas, prendia uma ou outra flor do campo, nos cabelos, e sentava-se à tardinha, no alto dum penedo, sempre virada para o mar.
Estática, esfíngica, silenciosa, ali se perdia, até o sol tombar na linha azul do horizonte.

A história de Samira virou mistério, naquele povoado ínfimo, encosta acima.
Havia quem garantisse que, pelas noites dentro, ela chorava, num pranto de dar dó ...
Havia  quem  garantisse que ela falava com alguém, numa língua hermética e não perceptível pelas gentes dali ...
Havia quem garantisse que a via bailar como louca, quando a lua subia no céu e ficava imensa, clara e luminosa ...

Naquela noite medonha, as casas foram acordadas por um clarão laranja que acendia o firmamento, e tornava dia, a noite de breu.
Uma fornalha parecia escancarar as goelas, e querer engolir tudo e todos.  Os estalidos da madeira crepitante, as faúlhas incandescentes arremessadas em todas as direcções, e as línguas das chamas alterosas, desenhavam um monstruoso fogo de artifício, num quadro dantesco e alucinante.
As gentes fugiam, e os animais desciam a encosta, em desnorte, enquanto o vento que então se levantou, espalhava mais e mais as labaredas, num prenúncio de Inferno, em total descontrole...
Tudo cessou, apenas quando não restava mais que pedra sobre pedra, quando o negro do desespero cobriu tudo, quando até a terra parecia ter ficado queimada, e um cenário apocalíptico se abateu naquele lugar !

De Samira,  nunca  mais ninguém  ouviu falar ...
A tampa da cisterna jazia no chão ... Porquê ?  Nunca se soube !...

A aldeia das seis casas, amaldiçoada por um qualquer  desígnio inexplicável, tornou-se um lugar fantasma e deserto.
As ruínas ficaram entregues à sua sorte.  Apenas a erva rasteira e seca, persistiu em medrar por entre elas.
O trilho que levava ao topo da colina, sumiu, por indefinição de percurso.  As silvas, os galrachos, os cardos e os carrasquinhos, tomaram conta de tudo.
O mar continuava azul intenso, no limite da terra, lá longe ...
O sol era castigador no tempo do calor.  Não se ouvia um som.
Até os pássaros, pareciam evitar aquele lugar maldito. Apenas os grilos e as cigarras inconscientes, o profanavam com indiferença ... ou o zumbido de uma abelha ou de algum moscardo, em passagem ...

Contudo, apesar de penoso o acesso, havia quem não desistisse de subir ao topo do monte ... às ruínas ...
... lá, onde a lenda dizia, que no resmalhar do mato se ouvia o lamento de uma moura, e no gorgolejar da água cristalina da cisterna, os soluços de uma mulher ... quando o silêncio pesava, ou a lua cheia subia no céu  escuro !!!...



Anamar

sexta-feira, 17 de maio de 2013

" E ESTAMOS ASSIM ... "






A tarde estava ventosa, endiabradamente ventosa.

Na rua, as pessoas vestidas de Verão, de um Verão que se recusa, circulavam encolhidas com frio, abanando a cabeça desaprovadora, a cada rajada de vento que soprava.

O café, não obstante, colocara na mesma, a esplanada na rua.  Os chapéus de sol, as mesas e as cadeiras, esperavam vazios, algum cliente mais intrépido.
Eu passei em passo estugado.  Afinal o sol nem se sentia, sequer.

Ouvi ... porque  inicialmente  nem  vi  donde  vinha,  a  frase  a  meia  voz : " Cada vez estou mais farto de mim e deste país " !

Olhei para trás, para ver quem desabafara daquela forma.
Tratava-se de um homem de meia idade, vestido modestamente, com um boné na cabeça, o único ocupante da esplanada do café.
Não tinha nada na mesa à sua frente ... parecia indiferente à tarde desagradável, ensimesmado "na dele" ... desalentado, derrotado, talvez revoltado ...

Momentos antes eu recebera uma sms de alguém próximo, que me dizia : "Estou cansada, sem ânimo, amargurada e sem forças.  Não sei o que fazer à minha vida " !...

Duas pessoas anónimas, , duas vozes apenas, a darem voz ao coro de vozes desta terra, que diriam exactamente a mesma coisa ;  a darem eco à turba de gente, que em encruzilhadas confusas, em ruas de volta atrás, em rotundas imparáveis, entontecem, sem se libertarem e saírem do mesmo lugar.
Gente que já não encontra horizonte esperançoso, escapatória salvadora, objectivo por que lutar ...
E a estagnação a que está condenada, destrói, desespera, tira as forças, e em última análise, mata, porque derrota, vai aniquilando aos poucos, como um verme silencioso e persistente, a corroer a carne sã.

E as pessoas morrem todos os dias um bocadinho, as famílias desestruturam-se, as relações claudicam, e os indivíduos estão cada vez mais sós, mais amargos, mais agressivos, em células sociais insatisfatórias, incapazes de os acolher com o mínimo de conforto afectivo, ou laços que os espaldem contra a imtempérie da vida, que os escudem contra marés alterosas e os reveses diários.

Hoje, quando chegou a hora de me levantar, e sem ânimo para o fazer, dei por mim a dizer para "dentro", uma outra vez : "mais um dia de luta" !...
Porque eu também tenho a minha luta, a minha angústia de vida, a incerteza do depois, a impotência face à tempestade que não se contém, porque não se pode conter ... que são minhas, mas que assimilam em si as dos que me estão perto, de coração, e a quem não posso valer.
E diariamente carrego um peso angustiante, exactamente por não saber o que fazer, como fazer, não ter soluções para nada.
E como sou muito pouco pragmática e racional, emocional e psicologicamente sinto-me acoada, desequilibrada, em pânico, quase sempre ...

Ontem, o primeiro impulso que senti quando ouvi aquela frase largada ao vento, por um desconhecido, foi de me sentar na sua mesa vazia, olhá-lo, e dizer-lhe : " Olhe, não está só !  Aqui e agora, eu sinto exactamente o mesmo " !...

Mesmo sabendo que de nada adiantaria ...
Tal  como  de  nada  adiantou  a  resposta  ao  sms, que  levei  tempos  a articular ( eu, que até escrevo com alguma facilidade ),  porque não encontrava  palavras  adequadas ( penso que simplesmente não existem, se perderam ...)

Ou, porque todas as palavras e frases que eu escolhia, eram "feitas", ocas, vazias, sem convicção ou consistência ... Apenas porque não consegui sentir em mim a mínima credibilidade no discurso, ( por eu própria nele não acreditar ... )

Porque nenhuma capacidade persuasiva, promissora de soluções ou saídas, eu fui capaz de transmitir, por forma a acalmar o receptor da minha mensagem, ou pelo menos de lhe incutir algum ânimo ou fé em melhores dias ...

E estamos assim !...

Os suicídios aumentam, o desespero leva à loucura, e cada vez temos mais gente a viver marginalmente à sociedade, em franjas de subsistência, ou sobrevivência indescritíveis ...

Entretanto o Benfica jogou em Amsterdão, e perdeu tão importante prova.
"N" autocarros lotados, deslocaram adeptos ferrenhos, membros  do  governo,  e  gente  que  deveria  estar a  trabalhar  ao  serviço  do  povo ( porque fora um dia útil ), e que à nossa conta, e sem o mínimo pudor, não abdicou de ir.
Por cá, os outros, muitos dos outros, alienaram-se, fizeram de conta que a vida é mansa, entorpecendo-se com a transmissão, vomitada por várias estações de televisão.
E vibraram, e esqueceram ...

Abençoado futebol, que enquanto render, esquecer-se-á o crédito atrasado da casa, as despesas escolares dos filhos, a prestação do electrodoméstico já vencida, e os parcos tostões na algibeira, que dificilmente fazem face ao sustento, que diariamente há que pôr na mesa ...

Anamar

quarta-feira, 15 de maio de 2013

" A PROPÓSITO DE UMA CANÇÃO "



Eric Clapton lança no ar aqueles acordes meio dolentes, meio mágicos, de "Tears in Heaven"...

As canções, algumas canções, marcam as vidas das pessoas, por esta ou aquela razão.
Na  M80 dizem : "Se a sua vida tem uma canção, ela passa aqui, na M80" ! - um spot publicitário da estação de rádio, repetido vezes sem fim !

Eu acho que não se tem "uma canção" na vida ... Têm-se algumas canções, na vida.
De repente, estamos no café, no Metro, na rua, e escutamos esta ou aquela, que se solta do ruído de fundo, e nos alcança os ouvidos...
E sorrimos, quase sempre sorrimos com o coração, e sentimo-nos "quentinhos" por dentro, como se uma nesga do cobertor da vida, nos tivesse aninhado.
Sim, porque nem sempre a vida nos estende esse abrigo, em horas de maior frio e desamparo !...

São quase sempre temas, que obviamente já passaram, que são "passado", essa fatia do destino, a única, que conhecemos bem demais !
Como um cometa que corta os céus, o rasto de luz nas nossas histórias é o que fica para trás, meio difuso, meio obscurecido já, meio prestes a apagar-se ... mas sempre para trás.
À frente, no céu a desbravar, só existe escuridão desconhecida, misteriosa e imprevisível.
O que ficou para trás, foi certo , bom ou mau, doído ou feliz, doce ou agreste, lá ficou.  Já o vivemos, e nunca, nunca mais voltará, porque se escoou juntamente com os segundos do tempo, implacavelmente imparáveis.
E tem por destino, apenas o esbater das cores e das emoções, como a redução do volume do tema musical.
Até porque os nossos ouvidos também reduzem a acuidade, na percepção das notas, e a canção acaba por se perder por aí ... como a Vida !

Às vezes, as canções da nossa vida, conseguem retransportar-nos a dias bem ensolarados, a céus luminosos e transparentes, a montanhas verdejantes, a mar azul e profundo.  Conseguem levar-nos a gargalhadas despreocupadas, a vida que ri, e é leve ...
Outras vezes, levam-nos ao crepitar de lenha que arde em noites escuras, com chuva a bater nas vidraças, e vento que sacode as ruas desertas ...
E a uma cama desfeita, que espera horas que virão, e corpos que se fundem, perdendo identidades ...
Outras ainda, é o mar a bramir nos rochedos lá em baixo, é a brisa mansa que com particular doçura desalinha os cabelos, afaga os rostos, acaricia os corpos.  E há um entrosamento tal, uma unidade tão absoluta e tão magistralmente desenhada, que nos emociona e faz rolar uma lágrima, agora ... à distância ... só de lembrar !...

E as canções vão passando, indiferentes, tocadas na vitrola dos dias, dos anos ... das épocas ...

E as flores adormecem, porque as Primaveras se recolhem, os animais regressam às tocas, as aves migram, as borboletas morrem pelo chão das alamedas dos jardins, o sol chama a lua p'ra dançar, e as estrelas espalham-se num dossel azul escuro, por cima de todo o planeta ...

A canção pára, termina ...
Como tudo, afinal ... Porque ao que parece, tudo o que começa tem esse desígnio ... terminar mais cedo ou mais tarde, como os sonhos, como a Vida, que apenas nos deixa as canções, nada mais !!!...

Anamar

segunda-feira, 13 de maio de 2013

" NAQUELE TEMPO ... "


 
Nesta semana que passou, viveu-se  o "Dia da Espiga", ou a comemoração religiosa da Ascensão de Jesus aos céus, quarenta dias depois da Ressurreição Pascal ... se ainda me lembro.
Fora as raízes católicas que já perdi nos meandros do tempo, lembro a quinta-feira "da espiga", vivida em miúda, no Alentejo, claro, e que só pode ser privilégio de quem viva no interior rural, ou perto dele.

Na altura eu vivia em Évora, era menina de tranças e vestidinhos rodados.
As meninas à época, ao contrário de hoje, não vestiam calças nem calções, no dia a dia.  Quando muito, isso era traje da época balnear.
Não obstante, lembro de ter tido umas calças e camisa, em vermelho liso e risquinhas condicentes, "à pirata", que é como quem diz, as nossas "bermudas" de hoje, feitas pela costureira que ia quase semanalmente a casa, fazer os arranjos e roupas simples.
As de maior responsabilidade, ou mais elaboradas, iam para a D. Soledade, a modista da classe "fina" de Évora ... senhora bem apetrechada de figurinos, onde a minha mãe escolhia criteriosamente os modelitos.

Eu vivia então, na Av. dos Combatentes, que ficava num extremo da cidade .  Esta avenida terminava na estação dos caminhos de ferro, e atravessando as linhas férreas, do outro lado, continuava numa estrada que cortava os campos, até ao Bairro de Almeirim.
Era um caminho quase sem trânsito, ladeado por campos cultivados, com searas a perder de vista.
Era montado de sobreiros e azinheiras, e olival com azeitona a formar-se ;
Eram "jardins" de papoilas, malmequeres e flores roxas ... de urzes, estevas e giestas ;
Eram postes de alta-tensão, com os ninhos das cegonhas empoleirados a desníveis ;
Eram varas de porcos, ou rebanhos adormecidos por ali, quando o calor apertava, e o convite, era a sesta para o gado e para quem o pastoreava ;
Era o pipilar dos pássaros pela seara ... os cucos, os melros, os tordos, as alvéolas ... as andorinhas rasantes, em bandos volteadores ...
Era o cantar dos grilos à desgarrada, e a melopeia dormente das cigarras ...
Eram os cheiros adocicados trazidos pela brisa mansa, dos cereais de espiga a formar-se, e dos pólens, a darem-se ao zumbido dos zângãos e das abelhas atarefadas, do meu Alentejo !...
Era o chocalhar lá longe, de quando em quando, dos badalos das vacas, que se misturava ( ao crepúsculo ), com o sino de alguma igreja da cidade, nas "Avésmarias" ...
Era o céu azul de uma Primavera quase Verão, nas terras quentes ...
E era eu, menina, sem saber, sem imaginar, sem sequer sonhar o que a Vida é ...

Apanhava-se o "ramo da espiga", garante de pão na mesa, azeite, "luz", paz e alegria na casa, por todo o ano.
Para isso, deveria ser formado por espigas de trigo ( pão ), um raminho de oliveira ( azeite e paz ) ... e flores, todas as flores dos campos, e de todas as cores que pudéssemos apanhar ( os malmequeres amarelos e brancos simbolizando respectivamente o ouro e a prata,  e  as papoilas, o amor e a vida ).
Era atado com uma guita, e dependurado na despensa ou na cozinha, até ao ano seguinte, até à próxima  "5ª Feira da Espiga", para que o "clima" fosse favorável a um ano de abundância, paz e felicidade na família.

Hoje, na cidade ( sinal dos tempos ), também há "ramos de espiga", onde a contrafacção já chegou.
Longe de searas à séria, o lisboeta que quer fazer uns trocos, vende ramos atamancados, em que as espigas são praganas, apanhadas nos baldios que bordejam os grandes centros.
O resto, bom, o resto é mais fácil de encontrar.  Sempre há umas oliveiras aqui ou ali, meio adormecidas e tristes, fora do "seu" olival ... e flores ...
Desde as papoilas e macelas, a todas as flores selvagens e coloridas, a Natureza não regateia generosamente oferecê-las, em qualquer canto, mesmo agreste.

Ainda que o silêncio dos espaços não impere, ainda que o ar seja poluído, ainda que o chilreio das aves  não se faça ouvir por todo o ruído envolvente ...
Ainda que não haja cegonhas encarrapitadas nos postes de alta-tensão  ...
Ainda  que eu já não seja a menina das calças "à pirata", vermelhas ... e também já não tenha tranças ...

... ainda  que eu já tenha "descoberto" o que a Vida é ... continuará a existir a "Quinta-feira da espiga" !!!...


Anamar


EM JEITO INFORMATIVO :

Consultei este artigo que infra-cito, a propósito, e que achei muito interessante.


  • O Dia da Espiga
     ( Informação recolhida junto do Município de Évora - Núcleo da Cultura )
Coincidente com a Quinta-feira da Ascensão


O Dia da Espiga

O Dia da Espiga, coincidente com a Quinta-feira da Ascensão, é uma data móvel que segue o calendário litúrgico cristão.
Mas, se actualmente poucas são as pessoas que ainda vão ao campo nessa quinta-feira, abandonando as suas obrigações, para apanhar a espiga, ou que se deslocam às igrejas para participar nos preceitos religiosos próprios da data, tempos houve em que, de norte a sul do país, esta foi uma data faustosa, das mais festivas do ano, repleta de cerimónias sagradas e profanas, que em muitas zonas implicava mesmo a paragem laboral. A antiga expressão “no Dia da Ascensão nem os passarinhos bolem nos ninhos” deriva dessa tradição.
A origem gaudiosa deste dia é, contudo, muito anterior à era cristã. Este dia é um herdeiro directo de rituais gentios, realizados durante séculos, por todo o mundo mediterrâneo, em que grandiosos festivais, de intensos cantares e danças, celebravam a Primavera e consagravam a natureza.
Para os povos arcaicos, esta data, tal como todos os momentos de transição, era mágica e de sublime importância. Nela se exortava o eclodir da vida vegetal e animal, após a letargia dos meses frios, e a esperança nas novas colheitas.
A Igreja de Roma, à semelhança do que fez com outras festas ancestrais pagãs, cristianiza depois a data e esta atravessa os tempos com uma dupla acepção: como Quinta-feira de Ascensão, para os cristãos, assinalando, como o nome indica, a ascensão de Jesus ao Céu, ao fim de 40 dias; e como Dia da Espiga, ou Quinta-feira da Espiga, esta traduzindo aspectos e crenças não religiosos, mas exclusivos da esfera agrícola e familiar.
O Dia da Espiga é então o dia em que as pessoas vão ao campo apanhar a espiga, a qual não é apenas um viçoso ramo de várias plantas - cuja composição, número e significado de cada uma, varia de região para região –, guardado durante um ano, mas é também um poderoso e multifacetado amuleto, que é pendurado, por norma, na parede da cozinha ou da sala, para trazer a abundância, a alegria, a saúde e a sorte. Em muitas terras, quando faz trovoada, por exemplo, arde-se à lareira um dos pés do ramo da espiga para afastar a tormenta.
Não obstante as variações locais, de um modo geral, o ramo de espiga é composto por pés de trigo e de outros cereais, como centeio, cevada ou aveia, de oliveira, videira, papoilas, malmequeres ou outras flores campestres. E a simbologia de cada planta, comumente aceite, é a seguinte: o trigo representa o pão; o malmequer o ouro e a prata; a papoila o amor e vida; a oliveira o azeite e a paz; a videira o vinho e a alegria; e o alecrim a saúde e a força.
Além destas associações basilares ao pão e ao azeite, a espiga surge também conotada com o leite, com as proibições do trabalho e ainda com o poder da Hora, isto é, com o período de tempo que decorre entre o meio-dia e a uma hora da tarde, tomando mesmo, nalguns sítios do país a designação de Dia da Hora. Nas localidades em que assim é entendida esta quinta-feira, acredita-se que neste período do dia se manifestam os mais sagrados e encantatórios poderes da data e nas igrejas realiza-se um serviço religioso de Adoração, após o qual toca o sino. Diz a voz popular que nessa hora “as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não leveda e até as folhas se cruzam” . Nalgumas povoações era também do meio-dia à uma que se colhia a espiga.
Noutras regiões ainda, esta data é dedicada ao cerimonial do leite. Na aldeia da Esperança, no concelho de Arronches, este é aliás o “Dia do Leite” e os produtores de queijo ordenham o seu gado e oferecem o leite a quem o quiser. Também em Guimarães, e em muitas freguesias do concelho de Pinhel, o leite ordenhado neste dia é oferecido ao pároco. Em Santa Eulália, no concelho de Elvas, esse leite é dado aos pobres, acreditando-se assim que a sarna não atingirá as cabras.
Nas zonas onde esta data é associada à abstenção laboral, cessam-se muitas actividades como a cozedura do pão ou a realização de negócios. Na Lousada, em Penafiel, não se cose nem se remenda e há quem deixe comida feita de véspera para não ter de cozinhar neste dia.
No que diz respeito ao sul do país, e sobretudo na actualidade, a maioria das tradições do Dia de Espiga resume-se à apanha do ramo da espiga, ao qual, em muitos sítios, se adiciona também uma fatia de pão, para que durante todo o ano não falte este alimento em casa.



Consultei ainda informação, que diz deverem ser em número de cinco, cada uma das espécies presentes no ramo, e outra que afiança que duas espigas de trigo, duas papoilas, dois malmequeres brancos e outros tantos amarelos, e uma haste de oliveira em flor, são a quantidade certa para "não ser demais nem de menos" ...
Há também zonas do país, em que se junta videira ( simbolizando o vinho e a alegria ) e alecrim ou rosmaninho ( simbolizando a saúde e a força ).

Acredita-se que este costume associado à recolha da "Espiga", e que prevalece primordialmente no Centro e Sul do país, teve origem num antigo ritual cristão, que era uma bênção dos primeiros frutos.
No entanto, tendo tanta ligação à Natureza, supõe-se que vem bem mais de trás no tempo, talvez das antigas tradições pagãs, associadas às festas da deusa Flora, que aconteciam por esta altura, e às quais se prendem também as tradições dos Maios e das Maias.

Há zonas de Portugal em que por cada ano, o ramo velho, digamos, é queimado numa fogueira no dia de S. João.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

" ENTRE PARÊNTESIS" - uma curta metragem ...



Repentinamente, aqui, nesta  mesa  de café,  tive  umas  saudades  loucas  da  minha  vida,  ou  de  pedaços  da minha  vida ... assim  é  que  é !...
Repentinamente, a minha cabeça viajou lá atrás, percorreu outros tempos, vasculhou outra época, dobrou esquinas, seguiu túneis ... outra vez.

Eu tinha menos anos, tinha uma garra imensa que não é a de hoje, queria acreditar sem acreditar mesmo, que tudo o que então vivia e tinha, era o enredo de uma "never ending story" ...

Comparo ( olhando para trás ), esses anos que percorri, com aquelas nesgas de sol que espreitam por vezes, quando num céu escuro, as nuvens se ajeitam, como que a mostrar-nos um "flashzinho" de esperança, lembrando que nem sempre haverá tempestade.

Costumo dizer que dava anos da minha vida, para tirar anos à minha vida, e adoraria ( como se toda a gente não adorasse também ...),  pôr a engrenagem a trabalhar em marcha-atrás, e o tempo em modo "rewind" !
Quando mergulhados nas coisas, raramente temos o distanciamento necessário, para as analisar e vivenciar com discernimento, com objectividade, desassombro, isenção e sabedoria.
Sempre colocamos a nossa vertente emocional, de permeio  à  racional, o que impede maior lucidez e clarividência, para análises, e entendimento de muitas coisas.
Depois, quando as emoções deixam de estar em campo, quando a distância permite ver de fora para dentro, quando o tempo esfria a cabeça ... normalmente desce uma luz, ou seja ... normalmente "faz-se" luz !

É então que "viajamos" às vezes, é então que revemos a "película", é então que somos transportados na máquina do tempo, e "baixamos" noutra realidade  que  já  foi  nossa, e  voltamos  a  vê-la, com um carinho particular, porque as mágoas e o sofrimento foram diluídos.

Eu, consigo desencavar com tanta nitidez, tudo o que já foi, que como uma verdadeira  "espeleóloga afectiva" , revisito com uma acuidade total, os cheiros, os sons, as imagens, as palavras, o vento ou a brisa, o calor tórrido de sol, ou a sua amenidade, dos dias escaldantes de mar e areia, ou dos dias serenos de picos e planícies ... numa perfeita reprise !...

E não amaldiçoo o que foi, apenas porque foi ...
... bendigo o que vivi, como um privilégio ... apenas porque me foi dado vivê-lo !!!...

Anamar

terça-feira, 7 de maio de 2013

" O CHICO "



À noite, chega a "hora das bruxas" ...

Quando as luzes se acendem e as sombras se projectam no chão, e mexem, o Chico fica louco.
E rodopia desvairado, na caça da sombra da sua cauda.  Nem é da própria cauda, como muitos gatos fazem ... é da sombra da mesma, desenhada no chão, que lhe saracoteia aos bigodes, provocando-o, e deixando-o confuso.
É essa, e todas as outras sombras que mexem !...
O Chico não aprecia bolinhas, ratinhos, e outros brinquedos demasiado vulgares.  O Chico, gosta mesmo é do domínio das sombras, que fazem e desfazem fantasminhas, no mármore do pavimento ... E que por não serem figuras fixas, lhe dão a adrenalina do que é e deixa de ser, no momento seguinte ... lhe dão a emoção do visível e do escondido, numa fracção de segundos ...
Isto, para um felídeo, é um desafio provocador à caça, por emboscada, quase sempre!

O Jonas olha para ele, com um ar surpreso e de comiseração, como quem diz : " Olha-me ... olha-me o marmanjo ( porque o Chico faz dois do Jonas, em tamanho ) ... Este gajo, passa-se "!...

Mas o Chico está na dele, e não liga a "mal vestidos" ...

Chegou a minha casa, envolvido num invejável casaco de pêlo negro e luzidio, com reflexos acobreados, quando o sol lhe dá.
É uma panterinha, em tamanho XS.
De pantera, só o aspecto, porque a doçura do Chico, não tem medida.
Habituada ao "bom feitio" do Óscar, que lembro com nitidez ainda, e do qual guardo gratas e indeléveis  "recordações" tactuadas nas pernas, pasmo, por neste momento ter dois doces felinos, a viver comigo !

O Chico já me chegou com cédula pessoal e tudo, que é como quem diz, com o devido registo de baptismo.
Ora bem ... para quê então, baralhar o neurónio de serviço do bicho, trocando-lhe o nome ??!!
Não carecia !
E Chico era, Chico ficou !
O veterinário acrescentou-lhe o "apelido", quando o viu, na primeira vez.  E o Chico, passou mais completamente, a chamar-se de "Chico Escuro", que aliás, tem tudo a ver ...

Tenho portanto, um gatalhão preto, que persegue as sombras, de uma forma um pouco endemoninhada.
E acresce que chegou, no passado dia 13 !!!
Com este cúmulo de coincidências interessantes, o Chico só pode ter entrado, finalmente, para ser portador de sorte, aqui para casa ... que bem precisa é !!!

Gosto de todos os animais.
Dos chamados "de estimação", já tive um pouco de tudo.
Começando com peixes de água fria, peixes de água quente, tartarugas, hamsters, canários e periquitos, até gatos e cães, hierarquicamente subindo na escala inteligente .
O meu voto vai, de facto, para os felinos.
Talvez porque eles sejam um pouco parecidos comigo, ou eu com eles, na forma de estar na vida.
Os felídeos são animais com uma independência invejável, que é coisa de sobrevivência mesmo.
São inteligentes, são curiosos, não se acobardam, são desafiadores, nunca subservientes ...
Mas sabem dar e partilhar afecto.  Claro que, quando querem, não, quando lho pedem !
Dispensam-no sem regateio, a quem elegem.  E uma vez eleito alguém, no seu coração, é amor p'ra todo o sempre !

"O gato escolhe o dono" ... sempre se ouviu dizer.  E o dono deixa-se escolher pelo gato, numa partilha inquestionável.
O gato, ao seu jeito, protege o dono.  Perante estranhos, assume comportamentos que indiciam a espécie de gente, que temos à frente.
Têm códigos de comunicação inteligíveis, para quem a  eles esteja atento.
E depois, para quem acredita, no domínio do oculto, possuem  mesmo, parece, uma capacidade de comunicação, com entidades que escapam à percepção dos humanos .
Dizem, que quando o gato parece olhar o vazio, ou fixa um determinado ponto  no espaço, onde aparentemente nada existe, essa inexistência, é isso mesmo ... "aparente", simplesmente ...

Bom, o meu Chico acaba portanto de ser socialmente apresentado.

E eu, que até aqui, tinha o fetiche inexplicado de possuir ainda na minha vida, um gato preto  ( tendo entretanto estabelecido uma cumplicidade já, com o meu "Farrusco do fiambre" dos terraços  das  traseiras - como já muito contei ), concretizei assim, o meu desiderato.
Tenho "à mão de semear", "ao pé de semear", e "ao cólo de semear", um Chico Escuro que faz as minhas delícias, e  que é um porreiraço de companhia !!!...

 Anamar

sexta-feira, 3 de maio de 2013

" UMA ESPÉCIE DE LOUCURA "...



Passaram Verões, Invernos e Primaveras.
Passaram sonhos, esperanças, convicções.
Vieram sóis, e depois luas e mais luas ... E estrelas ... todas as noites, estrelas ...
Veio o céu escuro e os dias de luz, gloriosos ...

E o mar, esse, não veio, porque esse vem e vai.  Nunca fica.
Tal como o vento ...
Esse, só vai.  Só passa, e sempre me desalinha os cabelos.

Os sorrisos chegaram há muito tempo, e fugiram-me do rosto quando te perdi.
Ainda fui atrás, até àquela esquina. 
Mas  eles  eram  mais  ágeis,  e  foram.  Nem  se  voltaram ... para  sorrir ...
Para quê, se eles já eram sorrisos apagados ?!...

A vida ...  Essa, também foi com eles.
Esta coisa agora, que me levanta e me deita todos os dias, incessantemente, não é bem vida ...
É uma escorrência de tempo, simplesmente.
É um tempo que escorre ao contrário dos caminhos, que sempre têm princípio e fim.  O meu tempo, é um tempo de infinito, e sem norte ou rumo.
Nem eu sei para onde ele vai, sabendo embora donde ele vem ...

Não te alcanço por mais que porfie.  Não tenho passada para te agarrar.
E também já não te avisto, porque teimas em penetrar o nevoeiro.
E  o  nevoeiro  é  aquilo  que  nunca  conseguimos  agarrar,  entre  as  mãos ...
Bem tento afastar os seus fios gélidos e translúcidos, como cortinas de fumo ...  Em vão !...

Tal e qual como as sombras.  Só existem, enquanto o que as faz, continua lá, de costas p'ra luz.
Eu, continuo de costas p'ra luz.
Sempre estou do lado do crepúsculo, virada ao ocaso.  Por isso me anoitece tão cedo !...

Não entendo por que me deixaste seguir na maré, envolta nas franjas brancas das ondas !!...
Não entendo por que não esperaste que as alfazemas florissem, para me vestires de novo com elas, antes de eu partir !!...
Não entendo por que não bebeste comigo, o último cálice daquele vinho morno, para que também a nossa última gargalhada, se nos soltasse do peito, a brincar de felicidade !!...
Não entendo por que me cantaste canções de ninar, enquanto eu repousava a cabeça no teu cólo, e descia as  pálpebras,  mansamente,  julgando  que  o  Mundo  estava  na  minha  mão ... se  era  tudo  mentira !!...
Não entendo por que deixaste que eu acreditasse outra vez, que tinha tranças e saias de roda, e atasse na garganta um nó, com o espanto e a pureza de um amor virgem !!...

E  passaram  Verões,  Invernos  e  Primaveras,  e  a  estrada  percorrida  era  longa ... e  a  estrada  a percorrer,  curta ...
E o cansaço que eu carregava nas costas, era imenso ...
E a cerração que se abatia sobre mim, escurecia o caminho ...
E os olhos cegaram, e o coração parou ...
Nas minhas mãos, o bouquet das últimas rosas, dos últimos dias ...

... e uma curva no limite do horizonte, que não me desvenda, o que depois dela virá ...

Anamar

domingo, 28 de abril de 2013

" RELENDO ... "



Reler  Manuel  da  Fonseca  levou-me  Alentejo  fora,  até  àquele  casarão.
Aquele casarão que ficava no largo principal da vila, local de passagem dos veraneantes que quisessem seguir até Vila Viçosa, Alandroal, ou  simplesmente até ao alto da Serra, de seu nome "d'Ossa", tão fresca quanto a água nos cântaros de barro, onde se mantinha, tapada com um testo de madeira, ou um simples pires de loiça, quase sempre já "gatado" ...

O casarão era a casa dos meus avós, com paredes de meio metro de espessura, com tectos altos, chão  de tijoleira de barro, e janelas com portadas de madeira por dentro, mantendo a semi-obscuridade, garante da frescura, na canícula dos Verões alentejanos.
As janelas e as portas eram guarnecidas pelo azul-cobalto, das molduras típicas.
Havia todo um terreiro lateral à habitação, o quintal, que abria para o Largo, através de um portão grande, zincado, pintado a vermelho escuro.
Com chão de terra batida, acomodava, quando parados, os carros de muares dos hóspedes.
Isto, porque a casa dos meus avós era uma estalagem, aberta a hóspedes, que normalmente se faziam transportar à época, em carros puxados a "bestas".
Estas eram desatreladas, os carros ficavam adormecidos, no "descarregador", inclinados, com os varais pousados no chão ...
Faziam por isso, as minhas delícias, e dos meus primos, já que neles seguia, em viagens imaginárias, aos tirantes de mulas e burricos, por estradas inventadas, acomodada nos assentos do cocheiro, revestidos quase sempre, a pele, ou com mantas de Reguengos.

No quintal havia um poço, com rochas no fundo, onde as avencas cresciam, e onde o meu avô mantinha os pirolitos fresquinhos, dentro de um cesto, que fazia subir e descer à hora do almoço.
A água do poço, tirada com o caldeiro, dava de beber aos animais, que na cocheira, a "Quadra", como se chamava, repousavam da viagem, e onde nas manjedouras, a palha puxada do palheiro com a forquilha, lhes matava a fome.

O palheiro ... Lembro o palheiro de brincadeiras intermináveis, de saltos e cambalhotas.
Lembro do carregar das gorpelhas de palha, "torres" douradas enredadas, nos carros que as transportavam.
Lembro que a palha descia pela "manga", e era espalhada pelas manjedouras, frente à cabeça das "bestas".
As galinhas e os patos, que ciscavam soltos, colocavam os ovos "a salvo", no calor da palha.
E por isso, a criançada, em gozo de férias, tinha por incumbência recolhê-los, na cestinha que a avó nos enfiava no braço.

No palheiro, o meu avô, quando estava de "boa catadura", deixava pernoitar gratuitamente os malteses, que perambulavam pelas estradas, como pardais à solta, sem eira nem beira.
Figuras errantes, sem chão ou grilhetas que os prendessem a nada nem a ninguém, os malteses, na minha cabeça de criança, eram a perfeita imagem de liberdade, e só me lembravam as borboletas que volteiam de corola em corola.
A "Quadra" acoitava-os, e era vulgar, lá pela meia-noite, o meu avô abalar-se até eles, para verificar se não haveria "beatas" acesas, que lhe pusessem fogo ao palheiro, já que era o vinho que quase sempre os aquecia por dentro, e lhes apagava os desgostos das mentes ...

O largo da vila era de terra batida.
Dividia-se ao meio pela estrada, por onde à hora do almoço e ao fim do dia, passava a camioneta  "da carreira", que vinha de Évora, e trazia alguns, poucos passageiros.
Sempre corríamos em bando, a acenar-lhe !...
A estrada era ladeada por árvores frondosas, de folha perene, cuja sombra era uma bênção no Verão.
Por debaixo delas, no pavimento de terra, fazíamos as três covinhas alinhadas, do jogo do berlinde, com os calcanhares das botas ;  negociávamos os nossos "tesouros" de arco-íris, cautelosamente saídos de um saquinho de pano, exibíamos orgulhosamente o nosso "abafador" invencível, brincávamos de roda, à Cabra-Cega, à Linda-Falua, às Estátuas ... e claro, ao "agarra", que terminava quase sempre, com joelhos esfolados e sangrantes ...

E depois havia a vila, e depois havia o campo ...
O campo de horizontes perdidos, de searas que resmalhavam no roçar das espigas maduras.
Havia o pintalgado do vermelho das papoilas, do branco, do amarelo e do roxo, que são as cores das flores do Alentejo !

E havia as gentes ...
As mulheres,  geralmente  de escuro, embiocadas num lenço de cabeça, atrás dos postigos, ou sentadas pela tardinha, em cadeirinhas baixas, de fundos de buínho, junto das portas ... Os homens, pelas soleiras ou nos bancos da praça, junto à fonte, chapéu inclinado adiante, para sombrear os olhos, e queixo apoiado no cajado que lhes ajudava o andar já trôpego dos tempos, pareciam adormecidos no sossego  que pairava.
A "pirisca" do cigarro, era colocada atrás da orelha, para ser aproveitada até ao fim.  Quase sempre eram cigarrinhos enrolados pacientemente na mortalha, e que morriam no canto dos lábios, esquecidos ...

Por vezes, só os zumbidos de algum abelhão, ou de uma varejeira impertinente, quebravam o silêncio parado ali.
As ondas de calor junto ao solo, distinguiam-se no ar, com nitidez, e para amenizar, regava-se a rua, até que a fresca descia.
Só então, as andorinhas que faziam ninho nos beirais da Câmara, desciam em bandos rasantes, num bailado de prima-dona, e chilreios ensurdecedores.

Era Alentejo ... era a minha infância !...
Lembro bem !!!



 Anamar

" TERGIVERSANDO " ...


Postei ontem que tive um "acesso", um "surto", uma insanidade notória, uma maluqueira incontrolável ... e resolvi viajar, resolvi ir embora, voltar costas, tentar esquecer isto por aqui, numa operação de cosmética à minha vida ( pura cosmética , simplesmente ), numa manobra de faz de conta, numa brincadeirinha em que a menina acredita ser uma das princesas da Disney ...
Assim ... absurdamente, infantilmente, com a ingenuidade de quem acredita, não acreditando na verdade, numa  ânsia  absurda  de  que  com  isso,  conseguisse  mesmo  ir  embora  de  mim  própria,  isso  sim !...

Óbvio que eu adoro viajar.  Isso é indiscutível.
Mais do que todos os luxos imagináveis da vida, para mim, uma viagem é, por todas as razões, uma espécie de lavagem à alma, uma espécie de transmutação de mim própria em qualquer outro eu, uma anestesia a toda a insatisfação com que permanentemente vivo.

É um parêntesis nos meus dias ;  é exactamente a brincadeira em que se entra, em que nos travestimos livremente do que quisermos, em que tanto somos heróis como vilões, bonitos como feios, fadas como demónios ... assim ... num passe de mágica !
Como as crianças fazem, nos seus jogos oníricos.

Uma viagem, é para mim efectivamente, um sonho meu enquanto adulta ;  um sonho que inicio sem querer pensar que acaba, que vai terminar, como todos os sonhos ;  sem querer  consciencializar quanto tem de fugaz esse lapso de tempo, em que o  forço , exactamente a parar, a suspender-se ... como se eu fosse mágica e o pudesse manipular.

Mas também, não vale a pena fingir que não percebo que esta viagem, esta mais ainda que muitas outras, é uma fuga minha "para a frente", como "soi dizer-se".
É um fingir que acredito que se curam cancros com pensos rápidos, fingir que a felicidade é um dos prémios do euromilhões que pode sempre calhar, fingir que a salvação nacional só passa pela nossa vontade !

É a ilusão que se vive, quando na tela do cinema se projecta um enredo no qual mergulhamos, porque nos dá paz, nos faz sentir bem, nos aliena ... e nós gostamos ... e nós deixamos !...

Eu sei que é isso tudo, apenas isso tudo, e também sei que vou encontrar à chegada, a mesma que eu sou, e que simplesmente ficou em "marinada" temporal ...
Sei que vou voltar a vestir o casaco incómodo da minha vida, que deixei dependurado no cabide, atrás da porta, ao partir ...

E tudo inalterado,  seguramente !...
Só que já será dia outra vez, a noite terminou, e o sonho sonhado, também !...

Mas pelo menos ... FUI !...

Anamar

quinta-feira, 25 de abril de 2013

" SEMPRE 25 DE ABRIL " !



Uma semente ficou
na floreira do jardim
Continua a dar-me cravos,
e molhinhos de alecrim ...
São cravos do nosso sonho
sonhado naquele dia,
são sinais de um homem novo,
são a vontade de um povo,
foram um rumo, e um guia !

E os sonhos que Abril abriu
pelas madrugadas fora,
foram paridos na dor,
foram vividos no amor,
estão vivos até agora !
Nas algemas da desgraça
ninguém mais nos vai  prender,
enquanto o coração sonhar,
tiver fé, e acreditar
na força do nosso crer !

São cravos que a alvorada
entregou na nossa mão,
rostos erguidos de gente
com coragem, resistente,
e que sabe dizer  NÃO !...

E por isso, Portugal
que acordaste à claridade,
não adormeças teu chão !
Vem p'ra rua, vem dançar,
faz ouvir a tua voz ...
Lança ao vento a liberdade,
acorda toda a cidade,
como o eco de um trovão !!!

Anamar

terça-feira, 23 de abril de 2013

" DEU - ME A LOUCA" !!!!



Decididamente, deu-me "a louca" !

O Mundo está a preto e branco, o país está mais a preto que branco, as pessoas sofrem, angustiam-se e não dormem, com tanta escuridão à sua volta ... eu, decidi ( em total insanidade, e sem que fosse prudente fazê-lo ... ) marcar uma viagem.

Preciso respirar.  É-me  quase  vital  p'ra  não  sufocar,  partir,  ir  embora .
Por pouco tempo, é certo, mas inventando para mim, que é muito.
Basta que seja outro ar, outro céu e outro mar, para que eu já me sinta num conto de fadas, num qualquer paraíso perdido, com o condão de me deixar arquivado numa prateleira distante, tudo, tudo, o que é a minha realidade descolorida, de uma Europa e de um Mundo  "de gaita"  !

Não se vê nenhuma "luz" nos tempos próximos.
Acho  mesmo, que  já nem será para a minha geração, poder-se voltar a viver com alguma descontracção, ou pelo menos voltar-se a "respirar" até ao fundo, de novo.
Estamos, e continuaremos a estar, num arame sem rede.  Vivemos sobressaltos constantes.
Deitamo-nos hoje, com a insegurança do acordar de amanhã.  As nossas noites são assoladas por pesadelos.
E se, surge uma doença ?   E se, surgem obras no condomínio ?   E se, temos um acidente a que tenhamos que responder economicamente ?   E se, um filho derrapa  além da conta ?
E se,  e se,  e se ???

Nunca vivi a "tapar buracos", que é como quem diz, a esticar a manta do palhaço, como diz um amigo meu.
P'ra tapar a cabeça, destapam-se os pés, e para tapar os pés, falta na cabeça, porque sempre é curta ;   não dá para repousarmos tranquilamente, que não arrisquemos constipar-nos.

Tento acalmar-me às vezes, a pensar que à minha volta, "grosso modo", o cidadão comum que me rodeia, vive um pouco da mesma forma.
E ouve-se dizer : "desde que dê para o mês " !  "é assim : este mês faz-se isto, e aquilo espera para o próximo" !...
Deus do céu !  As gerações actuais, porque têm idades diferentes, resistências diferentes, e até formas de pensar diferentes,  têm uma flexibilidade maior, uma adaptabilidade a estes esquemas, mais folgada.
Eu, venho do tempo do "pé de meia", da "segurança" para o dia de amanhã, para a doença futura, para a velhice próxima.
Eu, venho do tempo de que o passo teria que acompanhar a perna, e nada de megalomanias, de deslumbres ou malabarismos desavisados.  Nada de aventuras suicidas, nada de "desvios" permitidos ...
E pronto ;  esse era o espírito dos meus pais, e o espírito sempre existente, enquanto  "fui gerida" economicamente, em lar matrimonial.

Depois ... bom, depois bagunçou-se tudo !
O Mundo "embananou-se" quase logo  ( eu acho até, que havia uma qualquer conspiração astral, programada contra mim ... rsrsrs ) !
E como sem ovos não se fazem omeletes, nem das cartolas, os coelhos saem assim sem mais nem menos ( porque deram em ficar espertos ), eu, "embananei-me"  também !
Eu, e mais quase dez milhões de portugueses, que eu sei !

Claro que há quem esteja a dar-se muito bem nisto tudo.
Como há sempre quem se dê muito bem, e seja muito sagaz no mexer dos cordelinhos certos, em qualquer altura.
E normalmente são sempre os mesmos !...
E isso é que me dá uma raiva desgraçada !  Porque há efectivamente gente, cujos horizontes são privilegiados, e com uma capacidade, eu diria inata e singular, para da "merda fazer ouro" ...
E são de novo, sempre os mesmos !!!...

Eu não fui "fadada" com essas capacidades.
Nem ninguém com escrúpulos, ausência de jeitinho para  expedientes,  ou  outros  esquemas  pouco transparentes,  o  consegue ...
E por isso, olhem ... já não sei o preferível ...

Depois, desgraçadamente, na minha época, também se acabaram os "tios do Brasil", figura vetusta, parda e sovina, que "abrilhantava" com os "níqueis" aferrolhados, as famílias, em gerações passadas.
O "tio do Brasil", era o frequente benfeitor, quando partia, e enchia os cofres dos que por cá ficavam.
Dava sempre jeito, um qualquer desses "tios", que nunca víramos, não conhecíamos, nem lembrávamos ... mas que fiel ao sangue a correr nas veias, não nos renegava a herança choruda, no dia do ajuste final !...
Pois nem esse  bendito "tio", eu desencantei ... bolas !!!
Por mais que esquadrinhasse a árvore genealógica, ninguém, dos meus, se demoveu a ir para Terras de Vera Cruz, em busca de outros horizontes.
Oh gentinha !... Mania dos alentejanos, ao contrário de portugueses mais aventureiros e inconformados de outras  zonas  do  país,  se  agarrarem  ao  torrão  natal,  num  saudosismo  e  masoquismo  idiotas !...
Passar miséria, talvez, mas nunca deixar o seu chão e os seus, também !...

Sei é que me deu  "a louca" !...

E pensei : "Perdido por um, perdido por mil !  Qualquer dia, bato a caçuleta e vou-me embora ...
Qualquer dia, o "lar" está à minha espera ...
Qualquer dia, o cancro, o Alzheimer, a esclerose não sei das quantas, as cataratas nos olhos e a surdez nos ouvidos, esperam-me ao virar da esquina.
As artroses, as pernas que ficam madraças,  as últimas mais-valias físicas e mentais, vão à vida ...
Qualquer dia, qualquer dia, qualquer dia ...
Quase já ... me transformo num "esgar humano", num "simulacro de pessoa", numa "sombra passante"  ... numa tontinha, a quem, à mesa, têm  que  por  o  guardanapo  no  pescoço  e  os  talheres  na  mão ;  numa incontinente  de  líquidos  e  gases,  nos  locais  inapropriados  ( para vergonha, dos que se haviam habituado a  verem-me  como  "invencível",  como  "gente",  como  "gigante",  quase ... )

Qualquer dia, ninguém  mais me quer escutar, porque baralho as conversas, não oiço os diálogos, fico porca na higiene, e chantageio emocionalmente tudo e todos  ( como é apanágio de um "velho" que se preze ) ...

Qualquer dia "embico" nos próprios pés, refino a tão "requintada" maneira de ser que já tenho, apuro a "raiva" de vida, que já sinto ... e lixo a vida a todos os que me rodeiam ...

Então ... se qualquer dia é isso tudo, que se vai passar ... que se   "f.... a taça" !!!
Tenho todo o direito  que  me "dê a louca" !!!...


Anamar

segunda-feira, 15 de abril de 2013

" IL TROVATORE "



Baixei a  S.Carlos, naquele domingo, pelas quatro da tarde.
Lisboa, estava tão adormecida quanto o dia.
Um dia de meio de um Abril incumpridor, que há muito deveria estar a festejar a Primavera, e ainda não lhe vira a cor !

A carruagem parou finalmente ... uma caleche azul portentosa.  Dei uns trocos ao cocheiro, alguns mil réis, peguei a sombrinha, calcei as luvas pretas de doze botões, que tirara, porque afinal também não estava frio, e encontrei-me na calçada.
Havia algum movimento, apenas junto ao Teatro, porque os passantes no Chiado, eram avulsos
Uma tira estreita de água e monte, avistava-se entre dois prédios de cinco andares.
No Tejo, uma vela de  barco da Trafaria, fugia airosamente à bolina, e uma galera toda em pano, trazida pela aragem, passava envaidecida.
De resto, apenas algumas tipoias de praça, circulavam pelo Chiado e pelo Loreto.

À passagem, ainda olhei para o Grémio Literário.  Quem sabe estava por ali o Ega ?!...
Mas não ... Aquele malandro deveria estar ainda a dormir, depois de mais uma noite de esbórnia, talvez lá por Sintra.
Afinal, o Lawrence's costumava prendê-los, a ele e a Carlos, naquelas longas reflexões e filosofices, madrugada adiante, sobre a política tão atormentada, dos tempos que se viviam ...

Em S.Carlos, esperava-me "Il Trovatore".
Certamente a élite intelectual de Lisboa, não perderia a Trilogia de Verdi, que corria, na temporada.
Como sempre, eu afrontava as damas da sociedade, e espicaçava-lhes a curiosidade e uma pitadinha de inveja, atrevendo-me a escutar Verdi, sozinha, no camarote recatado, que Carlos mantinha reservado para mim.
Os binóculos e o leque, encontravam-se obviamente, na bolsinha de mão.
Com o   meu vestido de cauda de "côrte", decotado, de seda da cor do trigo, duas rosas amarelas e uma espiga  nas  tranças,  que  me  compunham  o  rosto  ruborizado,  não  passava  contudo,  desapercebida !

S.Carlos estava um "mimo" !
As cortinas pesadas, "marron", com pendentes dourados, os florões trabalhados em talha, as pinturas nos tectos e nas paredes, os lustres e a profusão de apliques fabulosos, com abundantes pingentes em cristal, eram inigualáveis.
O  camarote real, frente ao palco, encimado pela coroa régia, rodeava-se dos restantes, adamascados em rosa  velho. As efígies de compositores, nas paredes,  os baixo-relevos de um bom gosto indiscutível, as estatuetas da "Virtude" e do "Costume",  ladeando o palco , o relógio adormecido nas horas ... tudo era perfeito !
Nas frisas, os cavalheiros, de colete branco, camisa frequentemente adornada com pregadeira a rigor, sob o paletot , os sapatos irrepreensivelmente envernizados, luvas e bengala de cana da Índia, encastoada, davam um toque "raffiné", quando regressavam do "fumoir", nos intervalos . Era vulgar trazerem o seu monóculo devidamente assestado, para a "função".
As damas da sociedade, como convinha, ostentavam delicada saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma  infinita  languidez  em  toda  a  sua  pessoa,  e  um  ar  sonhador  de  romance,  e  de  lírio  meio  murcho ...

Ainda faltava um pedaço para que o pano subisse ... e contemplando a sala, absorta, relembrei as últimas conversas tidas com Carlos, a propósito do país ... a propósito de Lisboa.
"Um navio fretado à custa da nação, em que se mandasse pela barra fora, o rei, a família real, a cambada dos ministros, dos políticos, dos deputados, dos intrigantes ....
Porque, suprimida a cambada, o país ficava desatravancado, e podiam começar a governar, os homens do saber e do progresso, porque estes, não são maus ... estes, são umas cavalgaduras " !... - dissera-me, preocupado com o estado da Nação.

Enquanto isso, Lisboa está um marasmo !
"Aqui,  importa-se tudo.  Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias ... tudo nos vem em caixotes, pelo paquete !
A civilização custa-nos caríssima, e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas "...
"Vive-se em meio de uma choldra ignóbil !
Predomina uma visão de estrangeirado, de quem só valoriza as civilizações que julga superiores. Principalmente os políticos, que são mesquinhos, ignorantes ou corruptos !...
Enfim  ...  um  país  que  se  dissolve,  Maria  ... Incapaz  de  se  regenerar" !!!...

Interessante esta dissertação de Carlos.
Lúcida, sempre lúcida.
Era forjada nos longos serões de cavaqueio, passados no Ramalhete, depois do avô se recostar ( após o seu whist indispensável, na mesa de pano verde, junto à chaminé, onde agora a chama dos carvões escarlates, não brilhava.  Afinal, era Abril, não esqueçamos !... )
Serões onde não faltava, claro, o Ega, o Craft ( um "doido" a conhecer ), o Cruges ( um geniozinho adoidado ), o Taveira sempre muito correcto, o Marquês de Souselas ... todos em cavaqueira prolixa, à volta de um St. Emilion ou dum Porto, puxando o lume ao charuto .

Pena que tais serões não incluíssem senhoras, presentes ...  Isso seria um desaforo seguramente !
Contudo a curiosidade, o interesse, o gosto por essas tertúlias, em que também se tocava Mendelsshon ou Chopin, aguçava-me o apetite desde há muito, e incendiava-me arroubos contra a discriminação social, como se as mulheres, não fossem também cabeças pensantes, e tivessem apenas como "obrigações", os bordados, o piano, as recepções, quais  bibelots decorativos, de "pose" irrepreensível ...
Tudo demasiado entediante !...
Maçante, o perambular pela luz difusa dos palacetes, cultivando a palidez nacarada nos rostos e cólos !!!...

E assim foi !
Despertei deste torpor, quando o Conde de Luna  lamentava,  que a sua amada Leonora preferia as serenatas de um certo trovador ... que ninguém sabia verdadeiramente quem era ...
E a música de Verdi, transportou-me então, em sonho, até ao final do quarto e último acto !...

No regresso, ainda passei pela Brasileira.
Tinha um encontro marcado, anos depois, com Pessoa ... e ele não faltou !
Nas madeiras, nos tectos trabalhados, nos espelhos e nas telas sobre as paredes adamascadas ... nos grandes lustres suspensos, e mesmo nos balcões ... ele escrevinhava por lá ...

Juro que o vi, e trocámos algumas  "impressões" literárias ...
Proseámos um pouco, e ele confidenciou-me que ... virados os séculos, o país continuava exactamente a mesma ignomínia !!!...
Afinal, tinha acabado de escrever o seu "Nevoeiro" ...

Nevoeiro

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ansia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!






Anamar