sexta-feira, 11 de setembro de 2015

" ADIANTE ... SEMPRE ADIANTE !... "


Liga-se a televisão, e é inevitável.  Lêem-se os jornais e é inevitável.  Entra-se na Internet e é inevitável !

Não há como fugir às notícias, como ignorar a realidade, como esquecer o terror, como encolher os ombros à angústia.
A sangria rumo à Europa, de fluxos intermináveis de gente em fuga, de continentes em dor e sofrimento, lembra a escorrência incontrolável das avalanches monstruosas encosta abaixo, nas derrocadas e deslizamentos das altas montanhas.
Também aí o processo não se trava.  Também aí, o caminho é imparável ... e há uma inevitabilidade de morte e destruição, que não se detém.
O Homem não tem capacidade de freiar essa catástrofe.

O êxodo dos refugiados, a migração desesperada de milhares e milhares de seres humanos, em fuga da guerra, da miséria e da morte, configuram talvez já, o maior flagelo do século XXI, e reportam-nos de novo, aos tempos escuros e doídos, da Segunda Guerra Mundial.
As imagens eram então a preto e branco ... agora são bem coloridas. Mas os rostos de famílias inteiras em desespero, transportam em si, o mesmo tipo de sentimentos : horror, cansaço, medo, dor, angústia ... dúvida, incerteza ...
Mas também esperança, determinação e fé.
No limbo, entre o nada ter e o poder assegurar pelo menos a vida ... na divisória que separa o risco do que virá, e o nada ter já quase para  arriscar, há uma força interior que impulsiona  aquelas torrentes humanas,  que sem rumo ou norte definido, assumem que é proibido olhar para trás ...

Impressiona-me particularmente, o rosto dos milhares de crianças arrastadas no caudal, pelas mãos ( num esforço exigido, seguramente acima das suas reais capacidades ), aos ombros, em carrinhos, nos braços de mães e pais que tentam desesperadamente  aninhá-las, protegê-las, subtraí-las, se isso fosse possível, às agruras de toda a ordem a que são submetidas.

E seguem, em rios de gente ... seguem sempre ...

Que se passará nas suas cabecinhas infantis ?...
Que será feito dos amiguinhos de rua, da escola onde deveriam estar, da casa que habitavam, das bonecas e das bolas com que deveriam jogar ?...
Que lhes será dito, sobre a insanidade que vivem ?...
Que lhes será explicado, sobre os afectos que lhes ficaram pelo caminho ?...
Que lhes será exigido, para também elas não desistirem, não adoecerem ... não morrerem antes de tempo ?!...

E não há parança.  Não há remédio.  Não há solução.
A chaga social há muito aberta em África e Oriente Médio, continua a purgar.  O exsudado fétido corre inevitavelmente, como se os diques precários tivessem cedido ... como se fosse impossível estancá-los !

E nós por aqui, numa Europa humana, política e socialmente incapaz, sentimo-nos agoniadamente mal ... muito mal !
Os homens não se concertam nas políticas a tomar, nas acções a desenvolver, nos rumos a dar a esta gente.
Os esforços dos organismos de apoio humanitário são curtos, são gotas de água, são pequenos curativos, visando minorar apenas temporariamente, a dor e o sofrimento pungentes.

Erguem-se fronteiras, arames farpados,  constroem-se "campos de concentração", levantam-se muros ... outra vez !...
Engendram-se combóios, cheios ao milímetro, no transporte, por vezes enganador e desumano, dos migrantes. Lembram Auschwitz, Birkenau ... o caminho  para o horror !...
A Europa barrica-se de novo.  E barrica-se também em si mesma, porque os medos e os terrores, também lhe minam as entranhas !...

As sociedades e os países vivem crises inomináveis.  Sobre o nosso chão mesmo, também os nossos "refugiados" e "migrantes" se avolumam, com a ausência de recursos, a precariedade das condições de vida e oportunidades.
Também aqui, a maioria sobrevive ... Pouco se vive !
Os nossos velhos estão desprotegidos, e arrastam fins de vida indescritíveis.  Os jovens vêem horizontes limitados à sua frente, e confrontam-se com uma desvalorização e desaproveitamento das suas valias e capacidades ...  E partem, também eles !
A geração charneira, aqueles que estão etariamente pelo meio, vão percorrendo o trilho destinado ... um dia de cada vez, em cinzento e pardo ... de sol manso e enevoado ... esperando apenas, que nenhum maior sobressalto  lhes assombre a marcha, ou que de repente, lhes tire ainda o curto e incerto chão, que têm debaixo dos pés ...

Como se pode então pedir, que estas sociedades doentes, de doença crónica  contudo com dor controlada, se abram a amanhãs desconhecidos, imprevisíveis, com consequências inimagináveis, mas que se adivinham gravosas ?

Porque a chegada desta leva incontrolável de pessoas, é como o assalto de mais ocupantes, a um bote precário, de lotação há muito esgotada ... É como a chegada de um salvador,  junto de quem está na iminência de afogamento ...
São questões de sobrevivência ... e o desespero da sobrevivência, tudo permite, como sabemos.

Em sociedades com sérias precariedades, com desequilíbrios e assimetrias profundas sem resolução visível ... como assimilar uma sobrelotação que implica a todos os níveis, um agravamento do peso social, que não conseguimos carregar nas costas  ?!...
Como aceitar a entrada de povos, cujas raízes culturais e religiosas pouco conhecemos e nada têm a ver com as nossas, acarretando o risco inerente de maiores  clivagens e fracturas sociais ?!...
Como não recear, que estando conotados com fundamentalismos religiosos e políticos extremistas, estes povos ( que talvez  injusta e levianamente reconhecemos por norma, associados a actos bárbaros e de vandalismo absoluto ) ... não aproveitem esta infiltração encapotada, subscrita e aceite pelos países hospedeiros, para  aí  alcançarem os seus desígnios criminosos ?!...
E como tal, o racismo e a xenofobia recrudescem, como defesa, eventualmente  legítima !

E depois, há todo um aproveitamento político, que se joga nos bastidores e que o comum dos mortais não alcança, e que advém duma engenharia ardilosa, dos lobbies de que infelizmente tanto ouvimos falar ...
Passam-me pela cabeça infindáveis interrogações, cujas respostas não descortino com clareza :
porquê a Alemanha, super potência do velho continente, sempre tão rigorosa, pouco maleável e radical nas exigências aos seus parceiros europeus, encabeça agora uma posição de tanta tolerância, colaboração e disponibilidade ?!
De tanta filantropia e redenção?!...
Será mesmo e apenas, isto ?
Que interesses e manipulações menos louváveis, se escamotearão e presidirão por detrás de um "rosto" aberto e generoso ... franco e fraterno ?
Quem se "serve" também, de toda esta situação ? Porque será indubitável, que também se jogam economicamente interesses fortíssimos, em todo este xadrês ...

Depois, porquê os irmãos de "sangue" e de convicções religiosas, os parentes ricos do Médio Oriente, os que falam a mesma linguagem de coração ... não se chegam agora à frente, e não assumem a postura humana e religiosa expectável e propagandeada nos seus dogmas ?!
O que ditariam os seus Profetas ?
O que ordena o Alcorão, na questão em apreço ?!...

Enfim ... demasiado complexo para mim !
Demasiado obscuro para todos nós, acredito  !
Intencionalmente demasiado confuso, para o entendimento do maioritariamente desinformado e ingénuo cidadão ... ( com quem também se joga em chantagem emocional ) ... quer-me parecer !
Nada linear !  Nada exactamente o que parece !  Nada exactamente o que na verdade será ... seguramente !...

Enquanto isso, as hordas de gente perdida, atravessam mares, calcorreiam caminhos, engolem pó, engolem a fome, a dignidade e o desespero que os corrói ...
Enquanto isso, secam as lágrimas, carregam os filhos ... calam os gritos de aflição ... silenciam a revolta dentro do peito ...
Enquanto isso, enterram os mortos, pelo caminho ...
Enquanto isso, as crianças não mais adormecem as bonecas, na beira das estradas, não mais carregam os livros nas mochilas da escola ... não mais pontapeiam bolas, em campos passados e felizes ...
Enquanto isso, não mais escutam canções de ninar, em sonos que não são de paz e tranquilidade ...
Enquanto isso, os seus olhos incrédulos e sem luz, opacizam de cansaço e doença, os corações esvaziam de sonhos nunca vividos, e as suas almas desesperançadas e sem futuros, sufocam o medo ... e continuam em frente, sempre em frente ... ao ritmo do que as suas pernas pequeninas, as levam...

... adiante ... sempre adiante ...
Num suplício e num pesadelo, que nós, os que por aqui estamos, não sonharíamos ainda, ter que assistir, impotentes, nesta nossa existência !!!...





Anamar

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

" VIAJANDO ... "





Gostava de voltar a encontrar-te ... Pensa nisso.
Que idade tens tu agora ??  Quarenta e quatro, e tu ? Conversa estrategicamente contornada.  Para quê, pensar nisso ?...
Cinquenta vai fazer o António, breve, breve ... e o João ... Sempre o João !
Reencontrei-o, tinha trinta e oito ... Como é possível ?  Ainda foi ontem !...

Tudo inacabado !  Esquinas e mais esquinas.  Ângulos rectos de vida, a impedirem o olhar de se insinuar outra vez, no trajecto percorrido.
Sim, porque nas curvas, a gente sempre espicha os olhos pela paisagem que foi, e pela que há-de ser ...
Assim o é, nas encostas das montanhas.  E nada se perde quase em definitivo !

Tudo estranho !

Saudades da Maria.  Esquisito saber-se alguém nosso, que já não é bem nosso.  Que anda por aí ... Bem ?  Mal ?  Vivo ?
Sim ... tem que estar vivo.  Ainda que longe.  Ainda que seja um filho nosso ( que dizem ser um pedaço de nós ... )
Então, como pode um pedaço de nós ter-se soltado, e voejar ... sem que o saibamos ?
E como existimos nós, sem esse pedaço ?!
Por que é a vida feita de amputações ?!

Esquisito ... tudo esquisito !

Quero ir e quero ficar ...

Como é que alguém pode dizer  que vai  lutar sempre ... insanamente ... numa  roda louca de hamster ?!
Assim, sem pensar.  Engrenado,  simplesmente ... atordoadamente ?!  Sem sequer querer sentir o que deixa, o que dispersa,  nos restos que vai largando pelo caminho ?!
E que um dia morrerá ... mas que até lá vai continuar adormecido, autómato de um destino, morto-vivo,  sem o saber ?!...  Como pode ?!...

Percebo-me numa varanda, numa mansarda ... E só olho os bocados de histórias semi-escritas.
Passam vertiginosamente, ligeiras ... umas ... Outras estão amodorradas nas soleiras dos bancos de jardim ... sem pressa.
Fazendo render os minutos, que têm a mania de escoar-se rápidos.
Essas são as histórias que mergulham em silêncios.  As outras, tagarelam pelas ruas, gargalham nas esplanadas, que são sempre lugares de sol.

Gosto de me perder no penedo, em frente ao mar.  Porque aí, eu mando no horizonte.
Levo o sol, devagarzinho, devagarzinho, a percorrer a descida, ao ritmo que eu quiser.  E só o deixo dormir, quando eu também estiver cansada.
Comigo, o vento no seu zunzum entorpecente.  Comigo, os pássaros que vão e que vêm.  Que são livres e soltos.  Comigo, os caminhos incompletos que percorri.  As veredas que me fizeram retroceder.  As estradas sem saída, os ziguezagues do destino ... os labirintos da vida ...
Vida !...
Como o vai-vem das ondas lá em baixo, onde o mar se faz mar a sério.
Sempre diferente, enganadoramente igual, na melopeia da sua canção ... Como os dias ...

Os olhos húmidos ...

Sem nexo ... quase tudo sem nexo !

Acordar, dormir ... acordar, dormir.  Que brincadeira mais sem norte !...
Marionetas ... palhaços ... robots ... sei lá !
Como aquele homem de olhar macerado, que naquele café, lavou o olhar na água fria, como se quisesse acordar ... como se quisesse lavar a alma ...
E saíu sem dar por nada, sem estar ali ... carregando na mesma, o pesadelo escuro que lhe pairava por cima , e não sabia ...
"Marionetas" ... somos só marionetas.  "Peões de xadrês", disse o João.  E o "Arquitecto", a divertir-se sei lá onde !
E as lágrimas a escorrerem-me.  Porquê ?  Porquê isso ?!
Perplexidade e impotência !  Triste ... demasiado triste !...
Há tanto tempo já !...
Será  que  o  homem  ainda  anda  carregando  por  aí,  aquela  nuvem  negra,  ameaçando  borrasca ?!
E aquela sombra de desesperança no rosto, que a água daquele café não lavou ?!

O João já não lembra ... seguramente.  Só se eu o recordasse.  Então, eu tenho a certeza que ele lembraria aquela longa conversa, de pequeno almoço fora de horas ...
A existência ... o viver ...
Esta coisa do acordar, dormir ... acordar, dormir ...
E nós, pequeninos, pequenininhos ... por cá, neste terreiro de feira ... a sermos olhados, sadicamente ... Só a sermos olhados ...

Tudo estranho, tudo esquisito ... tudo sem nexo !...

Quero ir e quero ficar ...

Os olhos húmidos ...

Anamar

terça-feira, 1 de setembro de 2015

" CURTINHA ... "




Setembro chegou.
Enfarruscado, mal humorado ... cinzentão !
Chegou com prenúncios de chuva, com ameaças de vento, com mercúrio a cair no aparelhinho.
Chegou uma coisa assim, mal convencida, com cara de quem não é carne nem peixe, apitando o fim da partida ... doa a quem doer !

Recomeça a azáfama.
A "canalha" já anda eléctrica, a antever aquilo que irá fartá-los, lá mais para a frente.
Os livros pintam-se de cores convidativas, por enquanto.  As mochilas, os ténis, os fatos de treino ... e mais os estojos, os cadernos e tudo o que faz e mais o que não faz falta, mas que se insinua das vitrinas, deixa os putos acelerados, em "palpos de aranha".
Os pais, esses fazem e refazem as contas de um mês que promete ser " longoooo " ...

Sempre assim ... sempre igual !
Ano após ano, a miudagem recém chegada do calorzinho dos areais ainda bem mornos  mas muito mais vazios ... tem uma urgência urgentíssima, de rever os amigos, os colegas, os companheiros.
As novidades de férias fazem-lhe cócegas debaixo da língua.  Há uma pressa no ar  que se percebe , que se sente, que se transmite.

Até o sol amarelou, com cara de parvo.
Não consegue mais pintar a bochecha radiosa, com todo o empolgamento dos dias decorridos.
Já só convence poucos !

Começa a olhar-se a roupa e os sapatos ... e a verificar-se como num passe injusto de mágica, as mangas puderam encolher tanto !..
A constatar-se como as biqueiras  se tornaram impiedosas ... E já que as sandalinhas, não demora estão de lado ... fazer o quê ???!!!...

Como foi possível os ganapos terem medrado assim, em escassos meses ?!
Será que os regámos de mais ?!...
Será que nos distraímos,  mergulhados que estávamos, no creme suculento das bolas de Berlim ?!...
Será que adormecemos nas areias mansas, e recusámos acordar antes de tempo ?!...

Sempre assim ... sempre igual !

E como tenho saudades !...

Anamar

sábado, 22 de agosto de 2015

" OCASO "





Aproveita este minuto
porque o depois, é depois ...
e o que passou, já não é ...
Logo, a flor vai  dar fruto
E o fruto morre no pé ...

Respira o ar do agora ...
Quando acordares, já é tarde
Mal nasce, o sol pousou...
Tudo passa e não demora
Quando vires, chegou a hora
O caminho já cansou !...

Prende bem juntinho a ti,
cada ilusão que tiveres,
cada sonho e cada crer ...
Colhe braçadas de esperança,
Ramos de cada lembrança ...
Tudo isso, foi viver !

E esgota todo o momento,
como sendo o derradeiro,
aquele que queres guardar ...
Um dia, ao virares a esquina,
a mulher, ontem menina,
não tem mais o que sonhar !...

Anamar

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

" PORQUE HOJE É DIA DE FESTA ... "




O Kiko comunicou-me que está num "parque temático"...  Que vai entrar agora, e depois logo me conta.

O Kiko faz hoje oito anos, e é o terceiro da "escadinha".
Talvez por ser o terceiro, é o mais descontraído, o mais desinibido, despachado e independente, dos três.
Não tem papas na língua, tem resposta para tudo e vive permanentemente "ligado à corrente" ...

Está de férias em Madrid com os pais e os irmãos, e pelos vistos, de visita a um "parque temático" ... ( rsrsrs )
Quando lhe perguntei se achava bem esta coisa de fazer anos e não estar ao pé de mim, riu-se com aquele riso complacente de quem dá o desconto a quem não sabe muito bem o que diz !...

É assim !...
Ainda nasceu "ontem", e pronto ... já está aí a fazer-se à estrada !

Tenho a sensação de que o Kiko tem uma estrelinha de " vencedor", a pairar-lhe no destino, face à postura que já lhe adivinho na vida.
É um pequeno-grande homenzinho, responsável, bem disposto, sempre em festa !
É o que se criou, sem que déssemos por isso.  É decidido e cumpridor na escola.
É adepto e aplicado nas práticas desportivas, no seu Sporting de coração, onde elegeu o judo, como modalidade no tapete, e eu acho que na vida também ...
Vai interiorizando os seus princípios subjacentes, no caminho do aperfeiçoamento pessoal, reforço do auto conhecimento e auto confiança.  Não no espírito competitivo agressivo, da sociedade actual, mas sim numa base de humildade, generosidade e acima de tudo, cooperação, tão fundamentais nestes tempos conturbados de hoje ...

Alguns destes aspectos, o Kiko já evidencia ter assimilado, felizmente !

Parabéns Kiko !
Que a vida te premeie, numa estrada que ainda só adivinhas, mas que terás que trilhar ... e que o seja, na senda da FELICIDADE !...

Anamar

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

" PORQUÊ ? "



Nunca me ofereceste um búzio ...
Vi isso agora, que vasculhei outra vez a gaveta das memórias ...

Por que será que eu colecciono memórias ?!  Devo estar a envelhecer !
Os velhos é que recuam no tempo, e vivem disso.  Os velhos é que obscurecem o presente que já não amam, e buscam aconchego no passado.
Nele, deambulam para a frente e para trás, e não o largam mais ...

Tenho conchas e seixos de todas as praias ... Tenho mesmo areia e corais.
Tenho até estrelas, que já haviam desistido de viver no mar ...
Mas não tenho um búzio !  Não, dado por ti !...

Já sei ... tiveste medo que ele me contasse segredos que querias invioláveis ... que me trouxesse notícias de outros oceanos ... me deixasse ouvir de novo, as confissões que me fizeste então, quando as falésias, os limos e as algas eram nossos, quando jogávamos à bola, no meio dos rochedos ...
Ou quando perdíamos simplesmente o olhar, no voo preguiçoso das gaivotas ...

Os búzios são indiscretos.  Contam sempre tudo.
Mesmo no pino do Verão, põem-nos a escutar o bater alteroso das ondas em dias de borrasca, quando o Inverno é agreste e impiedoso.
Basta chegá-los ao ouvido e escutar.  Saber escutar ... porque está lá tudo : os queixumes do mar que açoita a orla das praias distantes, o sopro do vento que embrulha a espuma e a joga em rendas entretecidas na rebentação ...
Está lá tudo !
E se escutarmos bem, os grasnidos das gaivotas, dos albatrozes, das andorinhas do mar e das fragatas ... também  lá  estão,  como  numa  fita  de  gravação.  Sempre,  de  noite  e  de  dia !...

Quem os tem, nunca está só.
Eles trazem as saudades de longe.  Lembranças dos mares do sul.
Lá, onde o calor é tórrido, lá onde os cheiros doces e os silêncios sábios nos tactuam a pele ... e o cruzeiro do sul governa o rebanho luminoso que pastoreia no escuro, bem escuro, do firmamento ...
Lá, onde o caminho é tão longo, quanto a liberdade do sonho ...

Mas tu nunca me ofereceste um búzio ... Vi agora.

Tenho as rosas e as madressilvas, tenho as pinhas e as flores sem nome ... tenho até as margaridas silvestres, já desfolhadas.
Tenho os caminhos e as sombras, e os muros, de pedras plantadas a esmo ...
Tenho os pores de sol e as amoras dos carreiros.  Os canaviais e todas as histórias infinitas que contavas ...
E a mata e o pinhal ... E o tempo todo do mundo, que eu achava que nunca se acabaria ...

Mas que tonta !
Não há nada que mais rápido se esgote, que este tempo já sem tempo ... porque o cansaço se abateu ...

Tenho tudo !
Tudo o que me povoava, naqueles dias soltos e leves.
Foi ontem.
E já passou uma eternidade !...

Pronto, vou ter que fechar outra vez a gaveta das memórias.
Vou ter que me conformar ... Não tem mais jeito !...
Aqui, de tão longe, afinal não posso mesmo ouvir o mar !...

Tu nunca me ofereceste um búzio !!!...

Anamar

domingo, 9 de agosto de 2015

" ATÉ BREVE ! "






O Alentejo tinha deitado para a sesta.

A quietude e o silêncio haviam descido à terra.  As sombras projectavam-se no chão, e era nelas que o  gado  que  pastoreava  se  acomodava,  na  fuga  ao  calor,  insuportável  àquela  hora ...
A boca de uma fornalha acesa !...

Os únicos verdes ainda viçosos que assomavam, eram das vinhas e dos campos de girassol.  Tudo o mais era um braseiro de castanhos, ocres e amarelos queimados.
O restolho e o feno ressequido, eram o que restava das searas já ceifadas.
Os ninhos das cegonhas, agora totalmente abandonados, continuavam encarrapitados nos postes de alta tensão e no alto das árvores esquálidas.
Surgiam-nos aqui e além, charneca fora, lembrando que ali houvera vida há tempo atrás.
Era então Primavera, e o Alentejo, verde e florido ...

Não há sons na paisagem.  A dormência abate-se.
O Alentejo respira paz ...
Não mexe uma folha, e apenas o som dos besouros e abelhões que parecem cirandar sem destino, atravessa a planície.  Até as cigarras deram uma trégua.
Também os pássaros recolheram.  Voltarão, quando a tarde descer e alguma brisa fresca abençoe a terra.

E do chão sobe aquela coisa que é berço, é colo, é útero e é eco ...
É um apelo sem voz ... é a terra que fala ... é o resfolegar do silêncio e da solidão ...
Não se explica ... só se sente !
É como um retorno aos braços da mãe ... É como o abraço do amante ausente.  É o ombro, é o afago, é a carícia no cabelo, quando a brisa mansa sopra do montado ...
É um convite ao embalo, como se uma canção de ninar nos desse arrego, nos convidasse a deitar a cabeça e a repousar ... simplesmente a repousar na eternidade, porque o Alentejo é eternidade ...

Volto lá, sempre que o peito sufocado precisa de ar.
Volto lá, sempre que a "fome" me aperta as entranhas, sempre que o coração mingua no peito e a alma fenece e me atormenta.
Volto  lá,  quando  preciso  reencontrar  as  raízes,  reavivar  as  memórias,  conferir  os  espaços ...
Quando preciso achar cada esquina imutável, no sítio exacto onde a deixei.
Quando preciso escutar o som das gerações, no lajedo das calçadas.
Quando preciso  rever as sombras que permanecem, ouvir a voz dolente e cantada de todos os que foram... Porque todos já foram ...

Quero encontrar a minha avó com o cabelo em carrapito, avental à cintura, com o negro perene da viuvez ... a chamar-me, ao portão ...
Quero encontrar o meu avô, comigo pela mão, a caminho do chafariz, na hora de dessedentar o Carocho ...
E a minha tia a migar as sopas da açorda, na mesa de pedra ... e o pratinho da romã para o lanche ...
Quero o queijinho seco e as azeitonas retalhadas, roubadas aos punhados, da "tarefa" da despensa, e comidas  às  escondidas, no  terreiro  do  quintal, por  onde  as  galinhas  ciscavam ...
Quero os pirolitos fresquinhos, da cesta mergulhada no poço, junto às avencas que cresciam espontâneas, nos rochedos do fundo ...
E quero que me façam de novo as tranças, me vistam o bibe, e me deixem jogar à "faia", riscada no largo de terra batida em frente à porta ... ou ao berlinde, na sombra das árvores de copa farta ...

E nunca chegam para saciar o que tenho aqui dentro, as horas que por lá fico ...
Nunca mitigo esta fome de reencontro.
Nunca preencho os espaços devolutos do afecto.
Nunca recupero os pedaços da minha identidade, para que possa reconstruir-me outra vez ... que não seja já, hora do regresso ...

E o Alentejo lá fica ... de novo, à minha espera.
De novo, aguardando que a voz da terra ecoe rumo ao horizonte, e me alcance ...
Aqui,  deste  lado  do  Tejo ... aqui,  nesta  terra  de  ninguém ... aqui,  onde  a  orfandade  dói  mais !!!...

Não é uma despedida.  Não é um fechar de porta.  Não é uma partida ...
É, e será sempre, um "até breve" !...

Anamar

terça-feira, 4 de agosto de 2015

" AQUELE LUGAR AO SUL ..."




De alguma forma, eu sou apátrida.

Nascida dos quatro costados na charneca alentejana, a vida encarregou-se de me saltitar de "déu em déu"...
Ainda não tinha dois anos e já deixava a aldeiazinha raiana, da qual obviamente não guardo nenhuma memória, e rumava a Évora.
Em Évora espiguei.
De Évora retenho as primeiras memórias doces de consciência a forjar-se, os primeiros creres, os primeiros sonhos, os primeiros amigos ... o primeiro amor ...
Amor de doze, treze anos ... Tão "sério" quanto o permitem  ser, toda a ingenuidade, toda a singeleza, toda a autenticidade dos sentimentos forjados no peito de uma menina metida a mulher !...

Em Évora comunguei  a História, a tradição, senti as raízes cravadas na planície, aprendi a liberdade de horizontes sem limites, entendi o som do silêncio das searas ondulantes, partilhei a melopeia  das cigarras no meio de tardes escaldantes ... ou segui o voo largo da cegonha, demandando o ninho ...

Em Évora,  miscigenei-me com os sentires de Florbela, embalei-me no som dormente dos cantares do monte ... suspendi a respiração, com a sonoridade do sino da aldeia distante, às avé-marias ... ou confundi-me  simplesmente, com os chocalhos do gado na sossega do fim de dia ...

Em Évora, ouvi o som dos passos no lajeado das travessas e alcárcovas solitárias, escutei o eco das palavras nos claustros silenciosos ... bebi a seiva, que trepa o corpo de quem nasceu no Alentejo !

Em Évora, senti a intangibilidade do carácter vertical de um povo !
Palpei o tamanho da solidão, no monte perdido no nada, o inconformismo das eras, e a força de um sangue que não verga !...

Mas  arrancaram-me da minha cidade, como quem arranca a flor da esteva nascida sem ser perguntada, na  planície sem fim ...
Extiparam-me  a liberdade de potro solto no montado ...
Cortaram as asas à garça que plana na terra recém-revolvida ...
Apagaram  a estrela do boeiro, no meu céu afogueado da canícula da tarde.  E todas a miríades estelares que ponteiam as madrugadas escuras, e que só lá, naqueles campos se desvendam ...

E trouxeram-me para a cidade grande.
E na cidade grande eu tornei-me órfã de coração.
Na cidade grande, eu entristeci de alma ...

O apelo da terra povoa as minhas noites despovoadas !  O chamamento do chão  corre-me quente nas veias !  A simbiose dos genes  leva-me inapelavelmente para o sul ... como um suão que soprasse, e ao qual eu não quisesse resistir !...
Lá, onde o branco é muito mais alvo, o ocre e o cobalto, emolduram as vidas ...
Lá, onde repousam todos os que eram eu, antes de mim ... e que hão levar além, a minha linguagem da carne ...
Lá, onde as memórias estão inscritas em cada pedra da calçada, em cada esquina, em cada sombra que se alonga ...

Irei ao Alentejo muito em breve.  Não sei como, mas sei porquê !

Como uma febre sazonal  que me toma, me invade e  me domina, a minha mente não pergunta, não questiona, não resiste  ...
Leva-me ... simplesmente me leva !!!!

Anamar

sexta-feira, 31 de julho de 2015

" AQUELE AGOSTO ... (memórias idas ... ) "



Era assim ...

Chegava  Agosto, e o destino estava traçado !...
Iríamos  enfrentar  a  Nacional  nº1 ( ao  tempo, a  autoestrada  era  só  uma  esperança  remota )  !...
Uma odisseia e tanto !

Nada, que umas sete ou oito horas não resolvessem ! Isto, se a praga dos camiões TIR, não se plantasse bem  à nossa frente na estrada ... Aí, o pára-arranca seria  inevitável, e o tédio da viagem, crescia.

Nada, que nos livrasse de cinco, seis ou mais paragens, distibuídas entre  o xi-xi, o pão caseiro da Benedita, os panados com arroz de tomate malandrinho do Manjar do Marquês, as especialidades doceiras de Penacova, e mais as pausas  p'ra um cigarro fumado  e os músculos desentorpecidos ...

Nada, que evitasse sermos  massacrados cem vezes, com a pergunta recorrente e desesperante :  "Ainda falta muito " ??!!

Carro atulhado ( parecia o "camião das mudanças" - dizia o pai ), um calor exasperante, a raparigada no banco de trás, dividindo ao milímetro o espaço.
7 e  3 anos, não davam paz a ninguém. Discussões, gritaria, puxões de cabelos, choros e ofensas, exigiam permanente  necessidade  da  interferência  da  mãe, a  pôr  ordem  nas  hostes ...
Sem alternativa, depois de esgotados todos os jogos possíveis, todas as cantorias imaginárias, vistos todos os livros de histórias, e sem que o sono desse tréguas ... depois de todas as  tentativas de entendimendo, com uma guerra desenfreada das almofadas, e já semi-despidas, as pestinhas eram silenciadas, em desespero  de  causa,  com  a  arma indiscutível  de  uns  quantos  oportunos  tabefes, distribuídos a eito ... acerta  aqui,  acerta  ali !!!

De nada adiantava lembrarem o rio, que corria lá no finzinho da terra . Nem os "alfaiates", que planando adormecidos sobre a água fresca, provocavam gritinhos de pirataria entre a miudagem menos habituada a nadar no meio deles ...
De nada adiantava lembrarem a pilhagem das maçarocas de milho, nos milheirais dos vizinhos ... que nunca da avó, claro ...
Ou as uvas, que já maduras enfeitavam os muros do caminho, a prometerem doçuras gulosas para o lanche ...
De nada adiantava lembrarem a brincadeira sem fim, descalças na terra, os "bolinhos" feitos  com a farinha das galinhas, desviada à surrelfa, para "venderem" nas quitandas do sonho ...
De nada adiantava degustarem por antecipação, os jogos de cartas, ao sete e meio, ao burro deitado e em pé ... que  a mãe  haveria  de  deixar,  contra  os  horários  da  cidade,  debaixo  da  tileira,  na  mesa  de pedra, e  os  meninos  todos  do Vau  em  roda,  chilreando de felicidade !...

De  nada  adiantava ... porque  a  maldita  viagem  era  uma  Via  Sacra, que  nunca  mais  tinha  fim !

"Ainda falta muito" ???
"Quantos  quilontros" ?  - dizia  a  mais  mindinha, com  língua  de  trapos  pouco  desembaraçada ...

Era assim, Agosto !
Eram os grilos, as bicicletas, as amoras, as abóboras para retalhar e fazer carantonhas ... e tudo, tudo o que ficaria a ser lembrado o ano inteiro !
Era a Júlia, a Rita, o Rui, o Alberto e o João, amigos que o serão até morrer !

"Venham almoçaaaaarrrrr .... "- gritava a mãe na porta da cozinha.
Vá-se lá saber por onde as crias andavam !!!....

O martírio da viagem já ficara para trás.  Valeram  a pena as traulitadas, os berros e as promessas de castigos, logo esquecidos pela mãe...
Valeram a pena, porque era  Agosto ... e  aquele Agosto ... acontecia só uma vez no ano !!!

Anamar

" BALANCEANDO A VIDA ..."





Há vinte e três anos que o meu pai partiu.  Há seis, partiu o Óscar.  No dia de hoje, 30 de Julho.

Não ponho obviamente as duas efemérides, em igual patamar.  Nem poderia.
O Óscar era "só" um gato, que partilhou comigo toda a sua existência, desde que ainda tinha os olhinhos azuis do leite, até que a doença implacável lhe findou a vida, talvez com dezasseis anos, ou perto disso.
Meu companheiro, contudo !
Foi-me oferecido no aplacar da dor da ausência do meu pai.
Mauzinho, bravio, sobranceiro ... safado, guardou para mim, o melhor de si.  A única ternura que tinha por alguém, era a mim que a dava.  As festas que recebia com alguma bonomia, eram também as minhas ...
Amei aquele gato !

A vida entretanto roda, roda, faz-se todos os dias ... ou não se faz.
A minha está parada, mortalmente parada.
É interessante, ou talvez não, constatar como neste momento as minhas emoções estão totalmente embotadas.  À excepção de uma, que vale por todas, e me toma por inteiro, sem remédio : uma profunda tristeza, desalento e cansaço.
Uma espécie de limiar de nada.  Uma espécie de antecâmara de coisa nenhuma !...

E não estou a conseguir já, enfrentar nada disto.  não estou a conseguir reunir munições para esta guerra !
De dia para dia me sinto mais no fundo, com um fundo que eu julgava fixo, e que se afasta sem remédio, levando a descida a continuar sem limite.
Cada vez o "buraco" é mais longe.  Cada vez o túnel escuro avança mais, o poço fica mais frio e profundo, e a progressão da queda não pára !...

Conheço estes sentires.
Identifico claramente este "não viver", esta desistência, esta insatisfação que dói horrores, este desnorte que nauseia ... este fazer de conta que existo !
Conheço este atoleiro, esta astenia anímica ... esta incapacidade de me ajeitar por aqui ... esta vontade louca de ir embora ...
Conheço esta sensação de me saber perdida no meio de gente, aturdida no meio do caos, estonteada como no vórtice da montanha russa, esgotada como nos labirintos sem saída, aterradores, que nos atormentam nos pesadelos ... sufocada, como se uma mão gigante me espremesse o peito e tapasse a boca !...
Conheço demais !!!

E quando sonho, sonho sonhos azuis , de horizontes translúcidos, e águas cristalinas em fragas ensolaradas ... apesar de tudo ...
Porque, bem no fundo, eu sonho ...  Às vezes eu sonho !...

E nesses momentos,  recupero a esperança de reverter  a minha vida.  Porque eu ainda hei-de ter uma vida que valha a pena !
O pano não poderá descer, sem que eu tenha vivido uma derradeira cena feliz, digna de quem tanto apostou, se digladiou e apesar de tudo, acreditou ...
Seria injusto demais !...

Anamar

segunda-feira, 27 de julho de 2015

" ERA O TINTO, MEU BEM ERA O TINTO !!! "




Sabem aqueles dias, que não se "salvam" de nenhuma forma ?
Sabem aqueles dias, em que dizemos: "não deveríamos ter saído da cama" ?
E aqueles em que temos a sensação que, em desespero de causa, só os salvaremos, fazendo uma asneira monumental ??!! Porque, perdido por um, pedido por mil ???.... ihihih

Pois é ! O meu dia de hoje, foi mais um, "destes"... valha-me a santa !

Chegada a casa, depois de uma perda de horas sem tamanho, que devo cumprir, por inerências familiares, e em que me desdobro a inventar algo interessante que mas ocupe, e em que o estado de espírito em que mergulho, não propicia sequer fazer alguma coisa de que goste ( como ler, escrever ... não  exactamente  contar,  mas  ouvir  música  por  exemplo ... ) ...
Horas essas em que o melhorzinho que consigo, é olhar perdidamente a paisagem, que é muito tranquilizante e bela, mas sempre a mesma, todos os dias ...
Consultar o relógio de meia em meia hora ( para constatar como certo e determinado tempo custa a passar !... )
E esfalfar-me a apanhar sol ( o que também não é muito ortodoxo, porque estamos em Julho, porque os dias estão quentíssimos ... e por todas as razões  que conhecemos, desfavoráveis à saúde, ) ...
uma sensação de vazio e tempo perdido, preenche-me.

Compensações procuradas, em desvario, pelos armários, lembram-me que :
as cerejas já acabaram, desgraçadamente ...
nem um chocolate esquecido, habita esta casa ...
nem um biscoito, quiçá um bolo, por aqui se perdeu ...  O máximo de que disponho, é um triste pacote de bolachas  de água e sal, desenxabidas e desconfortantes ... ( maldita mania das dietas !!! Agora é que vejo !...) Até  como  sucedâneo,  o  meu  espírito  as  enjeita !...
batatas fritas de pacote, também não há !
nem uma goma ... talvez uma pastilha elástica .... Nada !...

Espero que conheçam, este "desespero", este "destempero", esta "aflição" surreal, talvez tipicamente femininos ... não sei ?!

Bolas, que desassossego ! Parece castigo imerecido, creio ... punição do além !...

Desalentada, mexo e remexo no esconso dos miolos, na busca de uma qualquer outra ideia luminosa, que me solucione este problema existencial ...

Numa das dez idas ao frigorífico ( parece que acredito em milagres ... :), deparei-me com uma tímida garrafa de tinto alentejano, reserva especial, colocada meio adormecida, numa prateleira, à espera de melhores dias !
Não acredito em coincidências ... mas, talvez a dita estivesse ali para salva os restinhos do meu dia !...

Acho que os meus olhinhos, que primeiro constataram, depois analisaram, e depois ainda reflectiram ... piscaram e sorriram malandros e felizes ... com aquele ar debochado, de menino prevaricador ...
Tenho a certeza que se eu fosse um boneco animado, era a altura exacta em que uma lâmpadazinha sugestiva, se acenderia sobre a minha cabeça !...

"Eureka" ... Aqui está o x da questão " !... - foi o que pensei !

Cálice de pé alto, vidro fino ao melhor estilo ... e, olhem ... já vou no segundo copo !!! ihihih

Um único senão : isto com uma companhia boa, é que era !!!!  ihihih

Ah..... Uma última informação : juro que, em momento tão solene,  não me trajei tão a preceito, quanto documenta a foto que acoplei ao meu texto  !!!! ihihihih

Anamar

domingo, 26 de julho de 2015

" DEVANEIOS "




Aqui donde estou, eu vejo o mar ...

Vejo-o, sempre que fecho os olhos.  Vejo-o, sempre que olho o céu aqui por cima.
Depois, caminho mais além, derrubo as serras, os montes, afasto a cortina do arvoredo cerrado, e de repente, lá está ele ... no fim daquela encosta sobranceira .
Está calmo ou agitado, conforme o olho.  Não começa, nem acaba nunca.  É de mil tons. Tem as cores do arco-íris ... mais todas aquelas que ainda não inventaram !...

A mata de pinheiro manso termina no topo da falésia, a vegetação rasteira, de solo arenoso, forra a rocha agreste por ali abaixo.
As flores silvestres, que não pedem para nascer, pintalgam aqui e além, com tufos coloridos.
As amoras bravas adocicam os viajantes, e o sol aquece, envolve e embala ...

E está tudo lá, que eu sei.  Nos mesmos sítios.
Os muros com  as pedras empoleiradas, os caminhos tímidos e o verde matizado.
As gargalhadas e as palavras que por lá esqueci ...

Por que não posso eu ver o mar, daqui ... ora essa ?!
Eu sei que os meus olhos já não enxergam direito.  Eu sei que os contornos nítidos, já só são coisa da minha mente e do meu coração ...
Tudo, porque o tempo anda a brincar comigo !
Mas o meu querer manda no sonho.  E eu sonho sempre que quero.

Basta que cerre os olhos, ou que olhe o céu aqui por cima ...

E  também  invento  gaivotas ...  E  oiço-as  nos  voos  planos  que  fazem,  bailando  na  aragem ...
E sorvo o cheiro intenso da maresia, porque essa, eu transporto no bolso da alma, na caixinha dos segredos.
E escuto, nítido, o vai-vem das marés que nunca cansam, que nunca dormem, mesmo quando os Homens repousam no cólo das mães .
Sou salpicada pela espuma que rendilha a beira do mar ...
Abro a porta à brisa da tarde, e deixo-a ir, solta e leve, bênção e paz de corações atormentados ...
Como eu, ela vai sempre mais além.  Como eu, ela rompe distâncias, busca caminhos, procura destinos.
Não há correntes que a prendam.  Não há prisões que a amarrem.  Não há cansaços que a demovam ...
Ela vai sempre mais além !...

Eu quero dormir no mar! 
Tem que ser o mar, o meu berço de eternidade ... Onde mais ?!
A  minha  terra  tem  mares  de trigo, a minha mente tem mares de sonhos, o meu sonho tem mares de infinito !...

Um dia, eu quero dormir no mar !!!...

Anamar

sexta-feira, 24 de julho de 2015

" NÃO HÁ VOLTA A DAR ... "




A gente não gosta de confessar que vive em solidão.  E não gosta, por muitas razões.

A solidão pode ser uma mera circunstância do destino, mas admiti-lo, pode também ser o reconhecimento de uma incapacidade pessoal : a inabilidade para "reter" junto de si, laços afectivos, empatias ou afinidades, ao longo da vida.

De alguma forma, quem se ama nunca se separa verdadeiramente, quem tem empatia ou reconhece afinidade com alguém, normalmente não se afasta desse alguém, porque com linguagens próximas, interesses similares ou gostos idênticos, o eco emocional que retorna da partilha, é gratificante e ajuda a viver.

Poder reflectir junto, sonhar junto, olhar na mesma direcção com alguém ... fazer planos, arquitectar futuros, ou simplesmente não dizer nada e apenas "sentir-se" ... aliviam a carga que nos é destinada diariamente, atapetam caminhos difíceis, amaciam veredas sinuosas, dão-nos vitaminas para a alma ... devolvem-nos a esperança !
 A divisão do fardo, alivia esse mesmo fardo, enquanto que a partilha de uma emoção cúmplice, potencia essa mesma emoção !...

E por isso, o aceitar-se que não se alcançou esse desiderato, o colocarmo-nos alvo de alguma comiseração ou "simpatia solidária", de alguma forma inibe e fragiliza, porque estigmatiza socialmente.
E o Homem silencia em si, a mágoa dessa incapacidade !

Neste momento, calculo que a solidão seja uma das maiores "pragas" à superfície da Terra.
Nos grandes centros populacionais, é mesmo gritante.
A grande metrópole cria muros, nunca pontes, entre os indivíduos.  As pessoas cada vez vivem mais sós, em verdadeiros guetos, entrincheiradas nas suas colmeias, reduzidas à célula quase anónima das suas casas.
O ser humano vive embiocado em "construções de lego", impessoais e descaracterizadas, e com um bocadinho de jeito, não conhece sequer os que partilham consigo o seu espaço próximo.
Pode estar feliz, pode sorrir, pode chorar, pode desabar entre as suas quatro paredes ... pode sofrer ... pode morrer ...
Dificilmente alguém o pressentirá ... dificilmente alguém o saberá.  Pelo menos, atempadamente ...

Na generalidade, o mundo é de indisponibilidades.
O Homem, nesta época de tecnocracia exacerbada, da sociedade massificada, da competição desenfreada, da formação para o sucesso fácil, da ascensão a qualquer preço, da valorização do supérfluo em detrimento do essencial ... o "salve-se quem puder", num egocentrismo sem tamanho, a ausência de escrúpulos e de solidariedade  ... isolam as pessoas, centram as pessoas em si mesmas  e nos seus interesses, e privilegiam a solidão.
A correria da vida actual, as necessidades prementes, impostas por uma estrutura social excessivamente musculada, que não se condói, promovem o afastamento progressivo, por reais incompatibilidades de figurinos ajustáveis, semeando uma solidão muitas vezes acompanhada, mas real !

Por outro lado, também o avanço da faixa etária tende obviamente a instalá-la.
Numa fase da vida em que muito do melhor que possuíamos nos vai sendo sonegado, em que já perdemos fisicamente muitos dos nossos afectos, em que a pujança, a robustez e a frescura nos falham, em que os sonhos começam a assombrar-se com a realidade objectiva, em que o crer e o querer também claudicam face às naturais e irreversíveis leis biológicas, a solidão será então a mais devastadora, injusta e dolorosa pena, que algum ser humano poderá em cúmulo, sofrer !!!...

A gente não gosta de confessar que vive em solidão, por muitas razões ...
Mas na verdade, se mais não for, como seres gregários que somos, jamais nos habituaremos a conviver com ela !!!...

Anamar

segunda-feira, 20 de julho de 2015

" QUASE SEMPRE VOU ... "





Todos os dias eu vou.

Vou para qualquer lugar ... onde o pensamento me leva.  Onde o coração me conduz.  Onde o sonho me transporta ...  aonde a saudade me desencaminha ...

Bato asas, olho o galho onde poiso, e lanço-me no azul.
E voo na brisa da tarde, além, além, e mais além.  Há muito que não tenho horizontes que me limitem.  Não tenho muros, paredes ou barreiras que me tolham.
Nem os caminhos sem sinais que os orientem, me constrangem.
Não tenho desertos, sequer dunas ociosas  com veleidades de prisão, que me demovam ...

Basta-me o ramo da cerejeira ... porque de lá vejo o Mundo.  E o Mundo passa a ser meu, refém da minha vontade, submisso ao meu desejo, escravo daquilo que invento.
E invento todos os dias.  E espero todas as horas.  E respiro esta ânsia marinheira de barco sem amarra, cada minuto !
Sou viajante de destinos sem destino, que desenho na mente, que imprimo no espírito, tactuo na pele e grito no vento !

Os meus pés pesam infernos.  Praguejaram-me raízes fundas, que tentam em vão prender-me na rocha ...
Cortaram-me as asas, pensando que me esqueciam o caminho ...
Cerraram-me os olhos, julgando que me faziam desistir da emoção da viagem ...
Taparam-me a boca, achando que me sufocariam o grasnido solto de gaivota livre na aragem ...
Ataram-me os braços, para que desistisse do abraço quente, do universo infinito ...
Esfacelaram-me o coração, não sabendo que ele continuaria a pulsar sangue quente, nas minhas veias ...

Mas até os caramujos são livres, e em cada onda que os afaga, enviam recados de esperança ...
Até as algas que pernoitam as marés, devassam os fundos e passeiam à bolina, pelo mar de Deus ...
Até as árvores milenares não se condenam ...
Silenciosamente, sobem acima de todas as copas, na floresta fechada ...
Corajosamente, engrossam troncos de vontade, e espreitam o sol, garante de vidas que ainda hão-de viver ...

Esqueceram-se que me reinvento.  Esqueceram-se que tenho mil vidas numa só ...
Esqueceram-se que sonho ...

E que todos os dias vou ... Vou para qualquer lugar !!!...

Anamar

quarta-feira, 15 de julho de 2015

" O DESFAZER DO NINHO ... "




Que sensação estranha, esta que experimento !...

Desde o afastamento definitivo da sua casa ( por razões irreversíveis de saúde ), da minha mãe, que eu passei a ir lá, com a mínima frequência possível.  Apenas o indispensável à retirada do correio, e ao regar das plantas que enfeitavam a cozinha.
Não consegui abandonar  flores que sempre cuidou com esmero, gosto, e muito carinho.  Eram para ela, "companheiras" da vida, como fazia questão de dizer.  Havia pois, que tratá-las !

E era de facto um "jardim" lindo, o que existia junto à janela larga, de parede a parede, naquele apartamento de rés-do-chão, sempre estranhamente obscurecido, à excepção daquele espaço.
Ali, a luz que entrava a jorros, propiciava plantas saudáveis, verdejantes, denotando um "astral" muito positivo.
Sempre invejei aquele "verde", eu, que não tenho o condão de conservar junto de mim, plantas felizes ...
"Carecem de uma conversa, de uma carícia ... " - dizem.  Eu não sou muito dada a essas coisas ...

Não me fazia bem encarar a escuridão daquelas divisões fechadas, olhar a imobilidade daquele espaço inerte e silencioso, a acumular poeira, a denotar abandono, a transpirar solidão.
É um espaço adormecido, a morrer, também ele, aos poucos, como se o tempo lá tivesse parado,  como se apenas as recordações, as memórias, as imagens do passado, ali circulassem.
Como se apenas os fantasmas ainda ali vivessem ...

Foi uma casa de mais de cinquenta anos.
Para ali fui viver ainda menina.  Dali saí, casada ... menina ainda.
Ali, estudei madrugada adiante, na ciclópica empreitada das férias de ponto, nos exames.  Lembro os do quinto ano, que com matérias  a perder de vista, nos matavam a cabeça...
Ali, verti as primeiras e sentidas lágrimas, nos primeiros, e por isso "grandes" amores.
Ali, pintava os olhos com lápis de cor, às escondidas da minha mãe, antes de sair para o liceu, nos meus quinze aninhos de então ...
Para lá entrei com a minha filha mais velha nos braços, acabada de nascer.
Lá, ficava com a avó enquanto eu trabalhava.  Lá, almoçávamos diariamente, os petisquinhos da minha mãe.  As crianças chegadas da escola, eu, do liceu ... o meu pai presente ainda ... parando já muito por casa ...
Lá, tive o meu pai numa cama, dois anos, até que um dia nos deixou.
E tantas, tantas outras histórias, que mais não são do que a história de vidas, as vidas que por ali se fizeram, por ali se cruzaram ...
Se calhar, afinal como com toda a gente, se calhar como com todas as casas ...

Hoje, tenho em mãos a dolorosa e ingrata necessidade de desfazer aquela casa.

E o retirar das peças da sua impecável arrumação, o violar das gavetas e dos armários com recheios desconhecidos, o simples profanar daquele ar, são uma violência sem tamanho, na minha alma.
Entro, e fico parada, hirta, sem forças ... quase petrificada, tolhida, incapaz ...
Parece que procuro alguma coisa, sem encontrar.  Parece que saqueio.  Sinto-me um ladrão de sonhos, de emoções, um salteador de vida vivida ...
Sinto-me numa viagem inglória, de regresso ao passado, sem o resgatar, num presente demasiado doído.  Sinto o peso da tristeza ali instalada ... e "vejo" as janelas abertas, a luz a entrar ...
Escuto os sons, as vozes, as conversas, os risos e até as discussões de antanho ...
Oiço os bifes da minha mãe a frigirem na cozinha, e o seu cheirinho denunciador, a alcançar a escada ...
Lembro a surpresa das farófias no frigorífico, ou a taça da salada de fruta ...
E lembro o meu pai, agastado com a correria das netas em torno da mesa, perigando as benditas "jarras" ( que sempre achei horríveis, mas que ele amava ), sobre o aparador ...

Não sei como será, passar por lá, um dia destes, percebendo outras vidas naquele espaço, outra gente naquelas janelas, adivinhando-a a deambular naquele chão ... secando roupa naqueles estendais, atravessando a soleira daquela porta ... Não sei !...
A casa dos meus avós, tornou-se já "lenda" na minha história.
A dos meus pais, breve será uma memória sangrante !...

Hoje, é já um pesadelo ir àquela casa.
É um desencavar de tudo o que já não existe há muito, é um vasculhar nas sombras idas, é um perturbar a quietude dos silêncios, é um chamado longínquo às lembranças distantes, é um acordar dos que partiram ... é o arrastar do peso monstruoso de mais uma perda na minha existência !...

Afinal, nada mais é do que o derradeiro voo da ave, que abandona para sempre, o ninho desfeito !!!

Anamar

sexta-feira, 10 de julho de 2015

" MORRE-SE ... "




Morre-se um pouco quando se perde alguém.
Seja alguém que nos deixa fisicamente, seja alguém que a vida nos rouba, por muitas e quase sempre injustas razões.

E as pessoas morrem-nos talvez mais doídamente em vida, do que partindo pela inevitabilidade da mesma.
Para isso, acho que estamos mais preparados, pois afinal esse é o destino a que ninguém escapa.
Esse é o destino que a todos espera, pelo simples facto de termos nascido.

Contudo, perder pessoas pelo caminho, perder pessoas que desviaram da nossa rota, porque fizeram encruzilhadas em sentidos diversos ... porque mercê de tantas circunstâncias não puderam ou quiseram seguir-nos lado a lado no mesmo trilho ... ou ainda, perder pessoas que nos morreram nas "mãos", nos morreram no coração e acabaram secando na nossa alma ... é excessivo, é monstruoso ... é quase insuperável !

Morre-se ... embora eu não saiba bem, o que também parte de nós.
Não sei se é a saúde, a alegria, a vontade ... não sei se é a esperança, o sonho, o sorriso, a paz, a força de viver ...
Sei é que não voltamos a ser os mesmos.  Sei é que nos sentimos amputados em algum lado, e pela profundidade da dor lancinante, a ferida só pode ser no coração.
Lá, onde todo o repositório da nossa vida descansa ... nem sempre em sossego.

E fica-se assim ... vazio, exaurido ... com um buraco cavado no peito, com uma ausência na alma, como se de repente o único horizonte que nos resta, fosse um écran gigante, branco, totalmente branco e despido.  Um horizonte desesperançado que não convida ao caminho, à progressão e ao esforço.
Um horizonte que não tem sol a nascer nem a pôr-se ... que não tem estrelas ou luas brancas ...
Que nos remete a uma hibernação interior, que nos mergulha num estádio letárgico, que nos coloca a alma em quarentena, como um feto aninhado no útero materno.

E uma escuridão abate-se, uma cerração fecha-se, e só o sono é retemperador, só ele apazigua, só ele alimenta, só ele parece proteger.

E nele nos refugiamos.  Quando também ele não nos falta !...

E o mundo fica a preto e branco, e as cores esbatem, esbatem, até que indefinem os contornos e a luz dá lugar à sombra, em olhos que apenas estão abertos, só olham, mas não vêem mais ...
E um cansaço atroz desce, envolve, cerra, como se portadas de janela se fechassem, como se penumbra densa invadisse a sala e escurecesse a tarde, como se um crepúsculo antecipado, gélido e petrificante, caísse e findasse o dia ...

E então, mesmo as tais flores amarelas que por engano floriram no canteiro, não terão mais razão para sorrir !...

Anamar

terça-feira, 30 de junho de 2015

" POR AQUI ... "




Estou seca !
Seca de ideias, de emoções, de sentimentos ... vazia. Totalmente vazia !
Tão estilhaçada como aquele vaso de porcelana que tombou, e reconhecemos irremediavelmente perdido !
Tão esfiapada como o trapo velho, que desacreditamos  possa ter ainda algum préstimo !
Tão vazia quanto o pode estar o balão que acaba tombando no chão, por perda de todo o ar que o preenchia !

Passeio-me por aqui.  E até o pensar me cansa, e recuso.
Tento voltar esquinas perdidas, procurando no ontem, justificação para o hoje, esperanças  para o amanhã !
Procurando lógicas, fios condutores ... caminhos esquecidos, veredas ou atalhos que pudessem ter levado a algum lado.
Procurando erros, sentidos dúbios, avaliações mal calculadas,  raciocínios mal medidos, ideias mal desenhadas, esperanças infantis, ingenuidades absurdas ... culpas não encaradas ...
Procurando por onde andei lá atrás, que criança fui, que imaturidade me invadiu, que parece ter-me tolhido o crescimento ...  
Interrogando-me, por que razão tão mal me sei mexer sempre, neste percurso ?!
Procurando divisar justificações p'ra tanta inépcia perante a vida, tanta falta de habilidade para vivê-la, tanta incompetência e estupidez, ou burrice a encará-la ...

Em vão !

Não descortino nexos, sentidos, razões que justifiquem tão rápida, cruel e eficazmente, a destruição das perspectivas, das expectativas e das vontades, na vida de alguém ...
Sobretudo da vontade aniquilada, da ausência de capacidade, força ou inconformismo... que esse sim, seria motor impulsionador em cada dia.
Não !  Estou amodorrada, como velha encarquilhada à lareira.

E como  em terreno pantanoso, não me soergo.
Como em areia no deserto, não me desenterro e perco o horizonte.  As estrelas não me dão norte, e as dunas fazem-se e desfazem-se adiante de mim ...
Como em mar encapelado, não lanço mão de madeira à deriva ...

Não !  Sinto  que tudo  já fugiu ao meu controle.  Que tudo já ultrapassou a minha resiliência.  Que tudo atropelou até a minha vontade, a minha coragem e o último resquício do meu lado guerreiro.

Capitulei.  Depus as armas.  Não me rebelo, não me indigno, não me insurjo,  não me puno ... não me digladio ...
Não me surpreendo, não sorrio, não sonho, não luto ... não vivo !...

Estou cansada.  Só sei que estou profundamente cansada.  Desesperadamente cansada.  Doentiamente cansada !
E só !
Com a solidão do náufrago, que percebe que a  última onda possível ... acaba de passar, rumo à praia longínqua !...

Anamar

sexta-feira, 19 de junho de 2015

" NÃO SEI O QUE FOI ! "




Não me perguntem porquê ... mas de repente, fiquei em paz.
Em paz comigo ... mas sobretudo em paz com o meu coração !

Há momentos na vida, em que ela nos dá sinais !
Não me perguntem porquê ... mas há !

Por outro lado, quando se desce tanto, tanto, que se bateu num qualquer fundo ... diz o povo que depois, só poderá ser a subir.
De facto, há instantes em que claramente se atingiu um limite, um limite de cota positiva, ou um limite de cota negativa.
Há instantes, em que subir mais, não se pode ... mas cair mais, também não !

Hoje, estranhamente, sinto-me assim.
E até tenho medo do que sinto, pois pareço ter finalmente desatolado, pareço ter recebido um complexo vitamínico  qualquer, pareço ter sido injectada de esperança, de força anímica, de confiança ... e consequentemente, inundada de paz !!!

Hoje, pela primeira vez ao fim de muitos, e muitos, e muitos meses, em que os dias me amanheciam cinzentos e anoiteciam negros ... eu acredito que nem tudo se perdeu na minha vida, que estou num momento mágico de superação, de clarividência, de reversão, de aposta e de fé.
Eu acredito ( e digo-o com uma serenidade que não sei onde fui buscar, mas que  baixou claramente no meu caminho ), que estou num momento em que, de consciência tranquila, apenas me cabe esperar.

Esperar um pouco mais.
Não me deixar soçobrar.  Procurar perceber além do curto horizonte que ainda me espreita, e ter fé que outro céu, outro mar, outros sonhos, outra vida, me aguardam mais além !
Acreditar que há-de vir outro tempo.  E que o tempo de borrasca e tempestade brava, de cerração profunda, sem sol no meu firmamento, terminará ...
Simplesmente porque, pior do que está, não poderá ficar, e eu terei forças para vir à tona !

Sempre assim foi na minha vida !  As minhas histórias de luta, visíveis, mas também as invisíveis, foram por mim digladiadas, esgrimidas, enfrentadas e superadas ( por vezes com excessivos custos) ... mas por mim, apenas ... por mim, só por mim .
E fui capaz de muitas coisas, que não pensaria sê-lo.  E fui muito além das forças que julgava ter.  E reformulei-me, e rearticulei-me ... e juntei as peças ... e apanhei os cacos ... e como uma espécie de fénix ( aos trancos e barrancos ), ainda assim renasci ...

Hoje ... não me perguntem porquê ... de repente deixei de ter mais medo do tempo, e da safadeza que ele comete, ao fugir-me .
Logo eu, que quero ainda viver tanto na minha vida !  Logo eu, que pressinto ter direito a mais um lampejo de felicidade !  Logo eu que sou sedenta, sequiosa, impaciente para agarrar o mundo com as mãos !
Logo eu !...

Hoje, não me perguntem porquê ... olhei para trás e fiz as pazes com o meu passado.
Aceitando-me, primeiro que tudo. Redimindo-me das minhas falhas e omissões.
Percebendo-me, e às minhas incapacidades e limitações !
Olhando com serenidade  os dias, as pessoas, as vivências que fizeram parte de mim e da minha estória  ... Recebendo no coração o que foi, sem reclamar do que podia ter sido .
Não chorando pelo que terminou ... mas bendizendo ter acontecido !
O bom e o mau ... numa aprendizagem permanente e incessante !

Hoje, não me perguntem porquê ... reconciliei-me com a minha existência.
Hoje, algo de novo,  acaba de se me anunciar ... uma página experimentou começar a viragem ...
E eu acredito, sinceramente acredito que alguém que nunca me falhou, esteja onde estiver, "percebeu", "sentiu" que o trilho destruidor e sem rumo que eu pisava, tinha que ter um fim, que  a escuridão na minha alma tinha que cessar, que a minha resistência física e anímica  estavam a esfiapar-se ... e abriu-me finalmente uma janela ... soprou-me uma lufada de ar fresco !!!

Há momentos na vida, em que ela nos dá sinais !
Não me perguntem porquê ... mas há !...

Anamar

quarta-feira, 17 de junho de 2015

" O GRANDE DITADOR "




O tempo é o grande decisor.
É o homem da batuta, é ele que dá as directrizes, os comandos, as ordens, assume as determinações.
Ele decide, à revelia das vontades.  Ele resolve.  Manda e desmanda, mostra, ensina ...
Premeia e castiga.
E é sempre impiedoso e autoritário.
Nada o demove, com nada se compadece ...

Por aqui andamos, ao sabor dos seus caprichos.
Tanto nos ilumina a vida ... como, pirracento, nos desagua no coração, uma tempestade devastadora.
Quando estamos felizes, aziaga-nos a felicidade !  Não descansa enquanto não acaba com ela.
"Não há bem que sempre dure"... diz o povo.
Também, diz ainda o povo que "não  há mal que  nunca  acabe".
Só que esse tempo é sempre tão longo, tão longo, que parece não ter fim ... e o seu estrago também não !
Ensombra-nos a existência, e parece rir da "partida", com indiferença e distanciamento !
Coloca-nos no "mato sem cachorro", como baratas tontas, às cabeçadas ao destino !...

O tempo escreve, rescreve e apaga.  Sem perguntar nada.  Sem pedir opinião.  Indiferente às mazelas. Distante da hecatombe  !
E como um ditador, faz e não justifica ...

Assim é o meu tempo, neste momento da minha vida ...
Brinca a cada momento.  Obscurece-me o coração e extirpa-lhe as mais bonitas emoções, que eu jurava  não mais de lá sairiam.
Agride-me e destrói-me , numa manobra de amortecimento do espírito, colocando-me num estádio sonolento de vigília, face à vida.
Quase deixo de sentir, quase estou incapaz de me envolver com a minha própria história ... quase me descomprometo da realidade.
E sinto-me estranhamente irreconhecível.  Identifico-me a custo, e sinto-me como alguém em hibernação fora de estação ... desligada, apagada ... semi-morta !
"Zombie", em cada dia que passa ... como se não percebesse sequer se é manhã, se é noite, se a noite já repegou outra manhã ...
Prisioneira, tolhida de liberdade, amputada do livre arbítrio sobre as minhas escolhas !...

E ele passando ... avançando !
De ampulheta na mão, olha-me de lado ... sobranceiro ... altivo ... insensível, disfarçando o riso amarelo de escárnio ...
Ditador ... um ditadorzinho de meia tigela !
Porém, poderoso, dono e senhor ... gélido e impassível ... como todos os ditadores !!!
Reféns ... nada mais que reféns ... Eis o que somos, neste jogo desleal, desigual e absurdo, de poder ...

Este é o meu tempo !
Este é o tempo que vivo !
Este é o tempo que me mata, todos os dias um bocadinho !
Este é o tempo que me tiraniza, e de que estou farta, absolutamente farta !!!...

Anamar

domingo, 14 de junho de 2015

" VÓMITO "





Aquilo que vou escrever é absolutamente chocante, controverso ... se calhar revoltante.
Sobretudo para quem o leia pela rama, se ligue à leitura superficial do texto, se prenda ao significado simplista das frases .

Não importa !
Como afirmo na apresentação deste blogue, escrevo-o fundamentalmente para mim, coerentemente com o meu pensar e sentir.
Imune  a  preocupações de censura, ou a opiniões dissonantes ( até porque as pessoas que a ele acedem, quase nunca, ou nunca, fazem comentários sobre o que lêem ... ).  Sequer ainda, a  juízos de valor.

Estou mergulhada num processo irremediavelmente destrutivo  e sem outro tipo de solução, alternativa, ou saída.
Costuma dizer-se que "o que não tem remédio, remediado está" !  É um pouco assim de facto, embora pelo menos, o direito aos sentimentos e às emoções, qualquer ser humano tenha.

Tenho a minha mãe, com 94 anos, semi-acamada, sem mobilidade, com demência progressiva, e com um coração que "preso por arames", parece aguentar tudo ...
Tenho à minha frente, todos os dias e /ou noites, um quadro terrífico de alucinação, de descompensação cerebral, de descomando do resto da racionalidade que aquela cabeça determina.
A minha mãe ... aquela que o foi, obviamente que há muito aqui não está.
E esta, a que raramente me conhece, mas sobre quem lança a raiva de por mim ser "controlada", é uma caricatura triste, é uma figura patética, é um esgar de ser humano ... é uma tristeza ... num "espectáculo" de vida, a que ninguém deveria ter obrigação de assistir.

A impotência que sinto, face à sua destruição como pessoa, a raiva que sinto contra uma degradação irreversível, a mágoa e a dor que me assolam face a um "apodrecimento" incontrolável, deixam-me em desespero, em ódio e em revolta,  vivem comigo de dia, e pernoitam comigo na almofada que não consegue conciliar-me o sono ...
Porque "viver", não é apenas acordar, respirar, e adormecer de novo.
Porque viver não deveria rimar com sofrimento, com dor ... com piedade e comiseração ... com solidão de alma ...

E digo para mim mesma : " eu não quero acabar assim ... eu não posso acabar assim !!!"
Nenhum ser humano deveria ... ninguém mereceria ... NÃO  É  JUSTO OU POSSÍVEL !!!

Que é feito da dignidade, que é feito da essência, que é feito da "vida", centelha da luz que distingue o Homem dos outros seres irracionais ?

Neste momento, dou por mim a olhar os velhos com quem me cruzo.  Olho-os, além de vê-los.
Não consigo olhá-los, que as lágrimas me não caiam.
A velhice é de facto feia, parda, cinzenta ... descolorida !
A velhice não comporta risos, esperança, futuro ... amanhãs ...
A  velhice  é  uma  partida  de  mau  gosto ... é  uma  piada  jocosa  de  humor  negro  e  desrespeitoso !
Os rostos pregueados, romanticamente conotados com "histórias de vida" ... podem, na verdade, não ser motivo de orgulho ... mas tão somente, sinais de uma inevitabilidade desesperada, que tem que se carregar.
Os velhos olham perdidamente o vazio, porque não descortinam nada mais para ver. Param os olhos, muito para além do que os rodeia.  Escarafuncham na vida, quando era vida e não morte !
O olhar opacizado vagueia ... entre o passado e um não-futuro ...
Fogem do sol, e buscam a penumbra ... porque estão a recolher-se ao útero telúrico donde saíram .
Procuram o silêncio, porque o "ruído" com que a vida se veste, é excessivo e descontextualizado do estadio que habitam.
A velhice "fede". Tristemente "fede" ...
É um grito amordaçado em gargantas que já não ousam fazer-se ouvir.
É um cansaço arrastado, que se quer parar, e não é possível.  É um pedido lancinante de arrego, é uma ânsia do colo que não se alcança mais ... é o estertor de quem sufoca no coração e na mente, quando a crueldade de alguns momentos de lucidez lhes devolve a "imagem"...

É duro ler isto ... é duro ouvir isto ... é duro escrever isto ...
Sobretudo quando convivemos impotentemente com esta realidade, exactamente  num "romance" sem fim à vista, um romance que não podemos rescrever, aligeirar, modificar ... que sabemos sem fiabilidade, sem futuro, sem esperança ... sem "happy end" possível !!!...

É isto, o destino ?
É esta "tragédia", o corolário da vida do Homem ?  É isto, o que lhe é concedido ?  É isto, tudo a que tem direito na saga que calcorreou, arrastando seguramente correntes e grilhetas, num percurso esforçado, cansado ... penitente ?

A minha garganta sufoca um grito tão grande, que ultrapassa o além !
A minha garganta queima, com o vómito de fogo que me sobe das entranhas, me entorpece a mente e me cega os olhos ...
O meu coração não se compadece desta realidade crua e dura ... Não consigo !!!


Estarei a ficar louca ???!!!...

Anamar