terça-feira, 25 de junho de 2019

" A FRONTEIRA "







"O  HOMEM  DOS  OLHOS  LINDOS "

O homem dos olhos lindos
é lindo por dentro e fora
porque não há fora sem dentro
e não há dentro sem fora ...
O homem dos olhos lindos
tem doçura no olhar
tem um coração imenso
tão profundo quanto o mar ...
Tão imenso quanto o céu
sem horizonte a fechar...
pois não há dentro sem fora
nem fora sem adentrar ...
O homem dos olhos lindos 
é uma criança a sorrir ...
Tem ternura no olhar
e um coração a partir
com vontade de ficar ...
Tem uma alma gigante
e uns braços de albergar
os amigos e os amores,
os afectos e o sonhar
Um ninho dentro do peito
que é berço-maré de jeito,
sempre embala em qualquer hora ...
É lindo por fora e dentro ...
Pois não há fora sem dentro
e não há dentro sem fora !...


Este  poema  escrevi-o  há pouco  mais  de dois anos, e  apus-lhe  a  seguinte dedicatória  :   ( " dedicado com todo o carinho ao Pedro, amigão de tertúlias vadias ..." )

Hoje eu vi um farrapo humano.  E vi exactamente como, num piscar de olhos, aí podemos chegar ...

O Pedro era um desportista, de olhos azuis, rosto franco, disposição invejável, disponível em todas as horas e como eu dizia então, "um amigão de tertúlias vadias "...
Mais velho que eu cerca de meio ano apenas, costumava brincar dizendo que o ano em que nascêramos fora a época de ouro da década de cinquenta.
Nascido na terra que habitamos, não há quem não lembre o Pedro desde sempre.  Licenciou-se em psicologia, exerceu numa escola superior e apesar de ter tido uma vida afectiva muito conturbada de que lhe resultaram três filhos ( o mais novo actualmente com dezoito anos apenas ), vivia sozinho há largos anos.
Sempre se manteve ligado ao desporto.  Foi treinador de andebol, foi dirigente desportivo, de coração verde de nascença, amava o seu Sporting de paixão.
Não era fanático, tinha fair-play e interessava-se por todas as modalidades, nacionais e internacionais.
Praticava futebol inserido num grupo de amigos, de várias faixas etárias.
Dizia a brincar que o "leão da Gago Coutinho" ( a rua em que nasceu ), era imbatível ... e ria desbragadamente, como um puto travesso e irreverente, que desafiasse os coleguinhas de rua, onde em criança dera os primeiros pontapés na bola ...

2019 derrubou o Pedro e afastou-o do convívio de todos nós.  Um surto psicótico desencadeador de uma profunda depressão com posicionamentos obsessivo-compulsivos, jogaram-no para os serviços de psiquiatria de vários hospitais.
E aparentemente, de uma forma irreversível, o seu quadro clínico tem vindo a agravar-se.  A sua degradação física e mental têm-se acentuado.
Hoje o Pedro parece ter mais vinte anos em cima, não lê, pouco fala, descoordena as ideias, não elabora nenhum discurso assertivo, não mantém sequer um diálogo, e vive totalmente afastado do que ele chama de "o mundo lá fora" ...
Diz-se confuso, tem medos, vive o fantasma da não reabilitação. não concebe para si um dia de amanhã ...
Duas tentativas de suicídio falhadas, fala da solidão que vive entre as paredes do mundo alucinado da psiquiatria.  E repete, trémulo, compulsivamente :  " é o fim da linha, Margarida! "

Hoje, eu vi um farrapo humano.  E vi quão fácil é o atravessar dessa fronteira débil e ténue, entre o mundo dos ditos "normais" e o mundo dos "loucos" ...
Hoje, ele é um prisioneiro da Vida ... um refém do Destino !

Hoje, o homem dos olhos lindos, o "amigão de tertúlias vadias" está já do outro lado !...

Anamar

segunda-feira, 24 de junho de 2019

" TÃO SIMPLES ASSIM ..."



Escrevo pouco, ando dispersa, desligada, indiferente.
Acho que um pouco vazia de emoções.  Experimento uma certa acomodação à vida, que me desafiava e já não desafia como antes.
Penso que rotinei em excesso, amodorrei, indiferentizei-me com o que me rodeia.  Vivo num encolher de ombros, tanto me fazendo que o sol brilhe ou seja cinzento o dia ...
Cansada.  Cansada, parece ser o vocábulo que mais me vem aos lábios.  Digo-o e digo-mo, vezes sem conta.  Quase todos os dias ...

Será que quando atravessamos uma grande tempestade, pouco já consegue abalar-nos ?
Será que quando olhamos a morte de perto, quando a percebemos realmente e com ela conversamos, ainda que noutro corpo e noutro coração, ficamos meio dormentes, como com uma ferida aberta que já não sangra mas continua a doer ?  Um doer lento, manso, como um resto de anestesia que nos ficasse no sangue, circulando de alto a baixo ??
Talvez passemos a relativizar a importância de tudo, a importância até da própria vida.
E percebemo-la tão pequenina, tão insignificante ... tão frágil, que toda a importância que ao longo dos anos lhe atribuíamos, toda a inquietação com que nos atormentou, não passaram de fogos fátuos, que se apagam na noite escura.

Sinto-me "entupida" de um desconforto destrutivo, e sinto-me só comigo mesma, falando-me de estados de alma que só eu conheço, que só a mim interessam, que só para mim têm significância, e que os outros não entendem nem aceitam, simplesmente porque não entendem mesmo.
Vem aquela coisa de empatia solidária de alguns ... "sim ... tem dias assim, em que acordamos com uma insatisfação atroz com tudo, com uma inércia que nos tolhe até os menores movimentos e vontades ... Comigo também "... bla bla bla ...
Parece que oiço as vozes, distingo as palavras, até vejo os rostos de quem, complacentemente, o diz, no intuito de uma espécie de compensação, ajuda, compreensão ... simpatia ...

Ou oiço os outros que não entendem, simplesmente porque não entendem a linguagem ... como dizia.
Porque na verdade, na realidade ... porquê, sentir-me assim, sem alegria de viver, se a vida parece ser tão importante ?!

A vida, a sua justificação, o seu significado, o seu interesse, a sua lógica, são as tais questões existenciais que, se começamos a questioná-las, está tudo perdido ... para não usar um português mais vernáculo ...
Em tempos idos tive um interlocutor nesta mesma onda.  Talvez de nada adiantasse, mas pelo menos existia uma compreensão empática das dúvidas que nos tomavam ...
Acho que ele encontrou um "modus vivendi", e vai seguindo.  O trabalho é uma excelente terapia.  Pelo menos retira-nos tempos de ociosidade e introspecção.  E isso, ele tem muito.
Eu não.
É espantoso como, quando estamos no activo, ansiamos atingir aquele patamar de vida em que teoricamente iríamos finalmente realizar isto, aquilo e o outro, para que não temos então tempo ...
Tolice.  Nada se passa dessa forma.  O tempo está mais vazio, de facto, mas falta o resto.  E o resto é a centelha de vontade, a exuberância da frescura, o quinhão de loucura que parece termos perdido por aí ... Faltam objectivos, porque parece que pouco nos falta já, fazer.  Já está quase tudo pronto.
Os filhos têm vidas próprias e resolvem as suas próprias questões.  Os netos cresceram ou estão a crescer, depressa de mais, quase à nossa revelia, com padrões e linguagens que já não identificamos bem.  A casa ou as casas que haveríamos de adquirir, já quase só são, uma dor de cabeça, uma fonte de despesas e preocupações. Os nossos ascendentes, grosso modo, já partiram e libertaram-nos das exigências que lhes eram devidas.  Praticamente todos os amigos que tenho já não têm pai ou mãe ...
Começamos a perder conhecidos e amigos ... Alguns deles, inesperadamente.  E a sensação de "orfandade", torna-se assim mais abrangente ... Os amores ... bom, os amores também já os vivemos.
Quando pensamos, dizemo-nos como seria bom apaixonarmo-nos de novo !  Sorrimos, ao lembrar ... A vida também já nos roubou sonhos, esperanças, fé.  A vida já nos apagou as chamas que nos ardiam no peito ... e não há tanto tempo assim, afinal !!!

Então, fica aquela coisa de "pão dormido" ... de "comida requentada" ... de balão furado ...
Falta gás, falta "élan", falta força, falta projecto ... faltam objectivos ...

Porque ...

Os objectivos norteiam a vida.  A falta deles amorfiza os dias e retira o ânimo e a vontade.
Nas empresas trabalha-se por objectivos que impõem ritmos, metas, orientam esforços, definem rumos.  A luta pelo alcance dos mesmos, estimula a superação, o aperfeiçoamento, o desafio pessoal, a capacidade individual. Diariamente devem ser condutores das nossas vidas, porque são o semáforo que, aceso no fim do trilho, chama, ilumina, facilita.  Sem eles, vive-se um pouco por viver.

O homem gera-os, por vezes por razões positivas, por vezes por razões negativas.
São eles que erguem diariamente o homem que clama por justiça, o homem que busca a vingança de ódios acumulados, o homem que luta pela reposição de direitos feridos ... o homem que pugna por ideais em que acredita.
São uma mola impulsionadora que nos empurra o sonho adiante, que nos alimenta o ego e nos dá força para continuar...

Deve então ser exactamente  tudo isto, e não mais !... Ausência  de  objectivos,  na  minha  vida ! Tão simples  assim !!!...

Anamar

segunda-feira, 17 de junho de 2019

" SIMPLESMENTE UMA RECAÍDA ... "



Um pardal cisca na mesa da frente, as migalhas por ali deixadas.  Reparo que as alfazemas já estão em flor e os jacarandás, eu sei que iluminam de lilás esfusiante as ruas, os largos e alamedas por toda a cidade.
Na mata, os "bordões de S. José" estão também a começar a florir, neste mês de santos, que não o seu ...
Tempo vai em que Junho era um mês de muitas ocupações.  Desde logo, os exames à porta, no quinto ou no sétimo ano, relegavam-nos ao reduto do quarto, em noites de estudos intermináveis, quando a rima dos manuais a serem dissecados, parecia infindável.  Três de História, três de Geografia, três de Física e outros tantos de Química dos terceiro, quarto e quinto anos, e por aí adiante ... em todas as disciplinas curriculares.
Eram noites para estudar e manhãs para dormir, já que o silêncio da concentração só nos ajudava pelas madrugadas. Eu vivia num rés-do-chão de uma avenida barulhenta e movimentada, e por isso, não era fácil durante o dia conseguir o sossego desejado.

Já aqui contei, creio, que a minha mãe entendia que se me fizesse companhia noite dentro, tudo me seria mais fácil. E por isso, vinha para junto de mim  fazer renda e obsequiar-me com miminhos constantes ... miolo de pinhão, bolachinhas a gosto, ananás em calda, pratinhos de arroz doce, frutas caramelizadas e tudo o mais que lhe viesse à cabeça.
Sempre gostei de estudar com música, baixinha, e nessa altura do ano, toda a noite as marchas populares ocupavam as estações de rádio.

Depois, Junho era o mês dos casamentos de Sto.António e assisti-los pela televisão, era um programa e tanto ... As  marchas  populares, no  desfile  pela avenida, eram  outra  "maravilha" !...
Os afazeres eram aligeirados ou acelerados mesmo, para que não se perdesse pitada !
O Festival da Canção parava o país ...
E a vida corria mansa e simples.  As tecnologias que nos absorvem e estupidificam hoje em dia, não existiam, e por isso, ler, escrever, desenhar para quem gostava e deliciar-se com o que um dos dois únicos canais televisivos exibiam, já estava de bom tamanho ...

Os horizontes passavam muito pelos desígnios norteados pelos pais, que ansiavam que os filhos fossem mais além do que a bitola e a fasquia das suas próprias vidas !
Os objectivos a atingir eram por isso óbvios.  A vida era modesta, aparentemente sem grandes surpresas ou sobressaltos.  Os valores eram aqueles que a boa formação que nos era transmitida, impunha.
As casas eram lares, as famílias eram clãs, os sonhos eram direito da existência, os relógios pareciam correr devagar, e os anos pareciam mais generosos do que agora.
As estações estavam definidas, e sabíamos perfeitamente que grossas camisolas de gola alta eram imprescindíveis no Inverno.  Sabíamos que as andorinhas e as cegonhas haviam de emigrar, quando os primeiros tremores da estação se fizessem sentir.
Sabíamos vagamente que no mundo havia conflitos, e que existia um fantasma que se chamava "guerra fria" ... Mas tudo isso era lá longe !... O muro de Berlim parecia dividir o mundo, e tudo se passava entre a América e a Rússia, que assustava, e onde existia uma gente estranha, dura e má ...
Por cá, convinha ser discreto, andar na linha, não fazer politiquice ...
As férias do Verão eram intermináveis e passavam-se por aqui mesmo. Quem tinha "terra", recolhia uns dias ao chão onde nascera e donde no regresso vinham as batatas, as chouriças, até o azeite e o vinho, da colheita do ano ...
As roupas faziam-se nas modistas.  Pronto a vestir era ainda uma ideia estranha.  E não havia marcas. Todos usávamos mais ou menos indumentárias semelhantes, sem luxos ou exibicionismos.  Não existiam as "jeans" e as raparigas quase sempre usavam saias.
Víamos o Flipper, golfinho inteligente que sempre nos deliciava, e a Bonanza entrava-nos em casa na garupa dos cavalos dos Cartwright ...
A mãe comprava a Crónica Feminina, a Flama, os Lavores Femininos e nós líamos os "Caprichos" meio à surrelfa. Amor e sexo, pertenciam um pouco ao imaginário de adolescentes como eu ...
Passávamos o cabelo a ferro na tábua de engomar, e em vez de condicionador usava-se cerveja para o fortalecer ...
Começávamos a reivindicar os primeiros biquinis, que não o eram, mas sim os púdicos "duas peças" ...
Sonhávamos ouvindo Roberto Carlos, delirávamos com o romantismo de Adamo, Hardy, Silvie e o seu romance escaldante com Hallyday ... Bécaud, Aznavour ...
Livros existiam, alguns ... não muitos ... os clássicos ... Eça, Herculano, Guerra Junqueiro, Florbela, Camilo e outros. Encadernados, com bordaduras e letras a ouro, davam requinte às estantes que os exibiam ...

Enfim ... o pardal acabou voando, o perfume das alfazemas impregna-me o coração e eu ... acabei "acordando" desta recaída nostálgica a um tempo já esbatido, como o são as imagens a sépia que ocupam ainda muitas das nossas molduras ...

Saudades do que era ... das que éramos ...

Anamar

sexta-feira, 24 de maio de 2019

" PÁSSAROS "



Aqueles tocadores de sonhos começaram cedo pela manhã.  E não arredaram pé, por todo o dia, da calçada junto à porta do prédio, zona de passagem de quem se faz às compras diárias, aos autocarros e aos comboios.
Por certo, esperançavam-se ser ali, lugar de generosidades dos passantes.
Duas bicicletas, um  atrelado por cada uma, mais umas tralhas logísticas, mais um cão ... mais a magreza inerente à escassez adivinhada, mais a sujidade dos trajes e das "rastas" nos cabelos imundos ...
Ah ... e um pífaro.  Um deles tocava uma espécie de música, sempre a mesma, extraída daquele instrumento.
Esse, em pé, bamboleava o corpo como quem experimenta uma  dança nos acordes musicais.  O outro, sentado no chão, num pano estendido sobre as pedras, fazia uma qualquer bricolage que expunha na calçada, sonhando talvez que alguém pudesse comprar aquelas peças, cuja serventia não descortinei.

O sol esteve agressivo por todo o dia.  Forte de mais, apesar do céu se mostrar nublado a espaços.
E eles ao sol, alheados do que os rodeava.  Silenciosos.  No seu mundo, apenas.
O cão dormia, o pífaro tocava aquela lenga-lenga, o rapaz da bricolage terminava acabamentos, o rapaz do pífaro ora num pé ora noutro, parecia não estar por ali .
Não pediam esmola, não pediam comida, não falavam com ninguém.
Dois perfis esfíngicos, alheados do contexto à sua volta, numa postura total e absolutamente zen ... eu diria ...

Conhecemos gente assim. Vagueiam nas cidades, pedalam nas estradas, acampam nas falésias frente ao mar.
"Hippies", marginais, "outsiders" ... gente estranha ... vá-se lá saber ... era o que se adivinhava na postura selectiva e xenófoba de quem os olhava e rapidamente desviava os olhos.  Eram incómodos, sem o serem ...

O ser humano, sem querer obviamente generalizar, reage mal ao diferente, ao que desafia as estruturas, ao que questiona, ao que mexe com o instituído, ao que quebra regras ...
E a presença daqueles jovens, assumidos na forma comportamental escolhida, confrontava quem passava, se mais não fosse, porque acenava com a coragem de se mostrarem livres. Independentemente de serem ou não aceites numa sociedade  toda ela articulada, desenhada em figurinos musculados e "correcta", enjeitam literalmente o estabelecido, ainda que este os hostilize.

Do meu sétimo andar, onde chegavam os acordes daquela melopeia repetida, espreitei-os vezes sem conta.
Certamente serei demagógica ... mas aquelas figuras descomprometidas causavam-me alguma inveja. De certa forma, despertavam-me simpatia e admiração ... a nós, que acomodados ao conforto das seguranças na vida, nas certezas dos trilhos desejados e escolhidos, optamos pelo imobilismo de ir ficando por aqui ... ainda que os sonhos fiquem quase sempre  da  "porta" para fora !

Transportam mundo nas costas, carregam estrada nas pernas ... e asas ...
Pousam nas grades da nossa "gaiola" e sorriem.
Não sei se são tocadores de sonhos, não sei se são adoradores de sóis e de luas, amigos do vento e da chuva ... filósofos da vida ...
Não sei se serão só isto, se serão exactamente isto ... ou muito mais que isto ...
Ou apenas, pássaros !...

Anamar

quarta-feira, 22 de maio de 2019

" DESABAFO "




Ando a escrever pouco ...  Menos ainda, poesia ...
Hoje, foi "dia" ...


" DESABAFO "


Se de girassóis, tivesse um mar,
e o sagrado silêncio da alvorada,
deixaria a minha alma atormentada
nas asas de um pássaro, voar ...

Se eu tivesse do céu, o infinito
e deixasse o coração falar tudo o que cala,
partindo com a nuvem que se abala,
soltaria no vento, este meu grito ...

Porque eu sou alguém que não se entende ...
e só quem sabe, pode adivinhar ...
Sou caule e sou raiz que à terra prende
um barco, que se quer fazer ao mar ...
Uma flor que brota da semente,
e que querendo partir, tem que ficar ...

Anamar

terça-feira, 7 de maio de 2019

" CARTAS DE AMOR ... "






“Cartas de amor, quem as não tem ?...“   cantava  Francisco José ... 

Ainda sou capaz de trautear a melodia, embora ela pertença mais à geração da minha mãe, do que à minha. Era eu então uma criança, quando este tema, à semelhança de outros mais, que alguns recordarão, fazia estremecer os corações à boa moda do romantismo da época.
Exactamente a época das "cartas de amor"...

Escritas, trocadas, lidas, relidas, cheiradas, suspiradas e guardadas em laço de seda e fitas acetinadas, nos baús e nas gavetas, formavam o espólio dos apaixonados de então.
Devolviam-se também, quando os romances punham fim aos sonhos daqueles que as escreviam.
Eram cartas longas, cheirosas, osculadas muitas vezes pelos lábios da mulher que as endereçava, transportavam juras, promessas eternas, levavam sonhos pueris, desejos inconfessáveis ... e flores meio secas, como um bouquet de sentimentos ...

Eram clandestinas, às vezes.  Corri atrás de algumas, à posta restante dos correios, à revelia da vigilância da minha mãe ...
Era o tempo da adolescência, dos amores nem sempre aprovados, muitas vezes contrariados ... escondidos, por isso.
Mas sempre se arranjava forma de driblar os esquemas...
E tudo era por isso, de uma dimensão de fogueira descomandada.  Tudo se vivia  no ímpeto e na chama da pureza dos sentimentos, que eram sempre imensos, na altura, com uma exuberância fatal e sofrida, como nas telas ... o que os envolvia numa magia de história romanceada !

Havia "tempo" para se escreverem as cartas ... para se rascunharem primeiro e burilarem depois.  A vida não era tão assoberbada e corrida.  Os valores eram absolutamente díspares dos de hoje.  A realidade e os interesses também.  As pessoas eram menos descartáveis, as emoções igualmente.  Os códigos de conduta estereotipavam-se em modelos rígidos e pouco permissivos.  A sociedade, de certa forma, era mais espartilhante e controladora.
Hoje, a liberdade alcançada, a capacidade de escolha, o livre arbítrio e a determinação prodigalizados pela cultura, pela informação e pelo acesso a todas as fontes disponíveis, orientam por isso o Homem, para outros padrões comportamentais.

Mas os sonhos são transversais à vida, e sempre fazem sentido e norteiam os seres humanos.  São determinantes e impulsionadores do amanhã de todos nós.
E os amores e os afectos, felizmente continuam com a doce "pieguice" do ontem e com a capacidade suprema de nos surpreenderem e nos "melarem"os corações ...

E embora os anos avancem e teoricamente a disponibilidade emocional pareça regredir, já que  tendemos a endurecer-nos a nível sentimental  ( afinal, a vida, "grosso modo", encarrega-se disso mesmo, retirando-nos o espaço da emoção, da surpresa e da ingenuidade, em que a inocência se vai quase sempre, perdendo ), deveremos lutar para que se reverta essa situação. 
Manter, adubar e regar tudo aquilo que ainda consegue acelerar-nos as pulsações, enrubescer-nos o rosto, e potenciar-nos  um  sentimento de bem estar e felicidade ... é determinante à vida e ao estar-se vivo !

Cartas de amor, há muito não recebo.
Tenho nos meus guardados, bilhetes ternurentos, guardanapos de papel escritos, textos incipientes,  naïfs, rabiscados às vezes ... pedras da praia com locais e datas ... folhas secas e flores meio desfolhadas ... botões de rosa esmaecidos, mas sobreviventes aos tempos e às vicissitudes ...
Todos são afinal, verdadeiras cartas de amor indeléveis, codificadas nos afectos, nos sentimentos,  nas linguagens,  eternizadas  no  coração  e  na  mente,  até  ao  fim  dos  meus  dias !...
Pois afinal ... "cartas de amor ... quem as não tem ?... "

Anamar

domingo, 5 de maio de 2019

" UMAS E OUTRAS ... "





É ... é mesmo verdade !  As nossas cegonhas já não vão embora .

Fiz-me ao sul, numa de aproveitar alguns / poucos dias estivais que assomaram por aqui, neste Verão ainda longe de o ser.  Atravessei o Alentejo, que nesta altura do ano consegue estar ainda mais belo.
Os matizes de verdes, misturados com uma paleta que esgota todos os tons, das flores em explosão pelos campos, pintam uma aguarela assombrosa !
Os animais pastoreiam.  Na hora da sossega, as sombras dos sobreiros, das azinheiras ou das oliveiras, fazem do montado um céu pintalgado de pequenos pontos imóveis, adormecidos.  De quando em vez, pachorrentamente, deixam-se  ouvir os chocalhos ecoando na planície que se perde ...
Lá, as cegonhas ocupam os lugares altos. Os postes de alta tensão albergam ninhos e ninhos, numa convivência pacífica de condomínio.  As crias, de tamanho menor, habitam tribunas de privilégio, enquanto os pais catam pelos campos, o sustento necessário.
E rasam as copas das árvores, de asas esticadas, num voo soberano, aragem fora, garbosas, altivas, senhoras e donas da charneca.  É um enlevo olharem-se ...

E já não vão, de facto, embora.  As alterações climatéricas notoriamente mais favoráveis, neste nosso torrão abençoado, de pés de molho no Atlântico, já não lhes justifica a longa viagem em demanda do calor do norte de África.
Ficam ... Casa já têm ... pequenos arranjos de obras básicas, garantem-lhes de novo a estadia com qualidade ...

Por pássaros, incoerências e afins, lembrei dos passarinhos que vi em Myanmar, à porta de um Templo Budista.  Eram muitos, miudinhos, talvez menores que os nossos pardais dos telhados.  
Esvoaçavam, em espaço reduzido, numa gaiola quadrada, ao lado da qual uma mulher birmanesa se acocorava no chão.
O calor era violento, o sol era carrasco e a precária sombra que os protegia, não seria suficiente para os aliviar daquele sofrimento visível.  Água e comida, penso que não tinham.
Inocentemente, e com o conhecimento ocidental, indaguei dos seus destinos.  Se terminariam em iguaria culinária ...
Que não.  A sua liberdade, "comprada" por um euro, garantiria "pontos" no karma de cada um, que a essa boa acção se propusesse ...
Formas enviesadas de angariar o sustento, subterfúgios ardilosos de subsistência ... ou uma simples "transacção" com o além, num país de preceitos teoricamente rigorosos e condutas impolutas sob orientações e valores inquestionáveis ?!
Ou ... ( pensava eu ) apenas imperfeições, adulterações e incoerências humanas ???!!!...

Eu, ter-lhes-ia aberto simplesmente a gaiola, olhando-lhes a liberdade alcançada de um céu imenso, inteiro, sem limites,  para desfrutarem, seres vivos que são, numa terra por onde Buda apregoa uma lição de amor ...

Hoje, primeiro domingo de Maio, institucionalizado "Dia da Mãe", põe uma outra vez o consumidor, na senda exacta do consumismo, em mais um dia do calendário destinado a isso mesmo.
Sou dos tempos em que o Dia se assinalava tão só com o beijinho especial, carinhosamente trocado logo pela manhã, e a oferta de um cartãozinho feito pelas nossas mãos infantis.  Despretensioso, naïf, simples ... escrito com as letras pequeninas, cuidadosamente desenhadas ... traduzia na sua singeleza a autenticidade das coisas raras, realmente sentidas.
Após a partida da minha mãe, no desfazer da sua casa, encontrei alguns, religiosamente preservados entre os seus guardados.  Uma das netas quis manter a sua posse.
Afinal, como qualquer mãe sabe claramente ... e ninguém como ela consegue perceber com justeza e atestar com veracidade ... mãe  é  coisa de sempre, de todos os dias, de todas as horas ... de toda a vida ! Mãe é incondicional, é irrestringível, é perene !   É coisa de plantão ... tempo integral ... Porque é sangue e é carne, é amor e é dor !...  E o cordão que nos garantiu a vida durante nove meses, nunca nos é realmente cortado !
Quando já não está entre nós ... mãe, está dentro de nós !  Presente, "ad eternum" !...

Bom, hoje foi assim.  Divagações ao sabor das histórias, conforme me chegaram, umas e outras, à memória e ao coração ...



Anamar

terça-feira, 23 de abril de 2019

" EM EPÍLOGO "





Uma viagem é um enriquecimento pessoal extraordinário.  É uma situação em que, gastando-se, se enriquece !...

Esta minha viagem foi essencialmente de índole cultural, e sempre me fascino com a multiculturalidade que habita este nosso planeta, que tão mal tratamos.
É fascinante depararmo-nos com tantas formas diversas de vida, tantas formas de estar e sentir, de sonhar ... em suma, de existir !
Todos diferentes e todos iguais, afinal !...

As máquinas fotográficas captam e registam flashes dessas vidas.  Disparam quase segundo a segundo.
Tenta perpetuar-se a imagem, a cor, o som, a luz que fazia, a aragem que passava, a emoção que experimentávamos ...
Tenta fixar-se o momento, o instante, o tempo ...  Como se pudéssemos criogená-lo "ad eternum" na nossa existência !
É muito bom rever as imagens, posteriormente, agora ... depois ...
É muito bom, mas muito redutor.  Pode ser grande o espólio que trazemos, pode ser rica a aprendizagem alcançada ... sempre será curta e indizível ... O que vale  e o que fica, é esta herança de vida, é este prémio do existir, é esta realização do sonho !...

Estudos dizem que viajar pode ser o segredo para uma vida mais longa ...
Acredito que sim.  Afinal, são várias vidas que se vivem numa só !...

O pano desceu, a cena terminou, a história, por ora teve um "happy end" ... Mas já sonho poder de novo perder-me por aí !...

Anamar

domingo, 21 de abril de 2019

UMA "OUTRA" BIRMÂNIA ...




Se tivesse que dar um nome àquela estrada, chamar-lhe-ia a "estrada da morte" ...

Aquela estrada é a estrada de peregrinação ao Monte Popa, em Myanmar, antiga Birmânia.
Não pude fotografar ... Não entenderam conveniente, na óptica do "turismo sustentável" defendido no país.  Como se eu devesse ser portadora de uma borracha para apagar o que os olhos teimavam ver, ou pudesse cobri-los com palas, na esperança de não ver mesmo !...

O Monte Popa é um vulcão com 1518 m de altitude, extinto há 15 milhões de anos, que alberga no seu topo um santuário mandado edificar por um guru religioso no século XII, dedicado aos Nats.
O seu topo dista da base uma subida de 777 degraus, rochedo acima, como um cogumelo cujo chapéu demandássemos.
Como local de peregrinação, exige-se sacrifício, pena, esforço.
É uma via sacra, de redenção e penitência, a que se fazem todos ... crianças, velhos, novos, anciãos mesmo, mais carregados do que autónomos.
Não se questiona se se consegue ou não.  É imperativo subir, pagar promessa, angariar protecção, oferecer ... flores, frutos ... doar dinheiro ... mesmo o que não se tem ...
Afinal, são todos penitentes ...

O nome Popa vem de Puppa no idioma páli / sânscrito, significando flor, e Nats são espíritos que fazem parte da crença popular de Myanmar, desde a sua fundação pelo primeiro imperador.
Os Nats precedem mesmo o Budismo, introduzido no país vindo da Índia, e que é a religião predominante.
Acredita-se que os espíritos, almas ou Nats, têm capacidade de ajudar as pessoas ( provendo-lhes dinheiro, saúde, amor e outros ), ou podem, ao contrário, atrapalhar-lhes as vidas, causando-lhes mesmo, a ruína.
Há que apaziguar estes espíritos, com festivais místico-religiosos, que ocorrem anualmente em Agosto, em todo o país.

Ao Monte Popa, situado no centro da Birmânia, na região de Bagan, acede-se, como disse, por aquela estrada empoeirada, de vegetação ladeante seca e escassa, de asfalto precário, sem limites que a definam.
A temperatura atmosférica chega a atingir quarenta e muitos graus, para uma humidade excessiva.
Chuva, cai pouca, mesmo na monção.
É um cenário dantesco de abandono e solidão, estranho, que incomoda e fere.  Gruda nos olhos, mas sobretudo no coração !
É que é ali, naquela paisagem de terra queimada e de destruição, debaixo de abrigos improvisados com galhos secos entrelaçados, que elas estão !

Elas, são figuras esquálidas, tão ressequidas como a paisagem, enegrecidas pelo pó seco que se levanta à passagem dos veículos, encolhidas, embiocadas em andrajos que as cobrem desde a cabeça, na defesa de um sol que não dá trégua.
São bichos enrodilhados sobre si mesmos, que parecem adormecidos, acocorados no silêncio e na solidão.  Solidão de gente, solidão de miséria, solidão de fome e de pobreza ...
Muitos apoiam-se a cajados que os amparam.  São rostos "parados", sem expressão, sem vida, numa antecipação de morte anunciada.
Há velhos e velhas, muito velhos, deixados à sorte e ao destino, a quem o país não protege.
Há crianças também, muitas, por ali, acompanhando as mães ou os avós ...

"Acordam" a cada passagem de carro, de camião de peregrinos, de autocarro de turismo.
Erguem-se num salto, estendem a mão, acenam, suplicam, soltando uns gritos lúgubres e lancinantes ... e esperam, porque é também de tradição que lhes seja atirado de quando em vez, pelas janelas dos veículos que não param ... nunca param ... algum dinheiro, que aliviaria um pouco a má sorte ...
Quando isso acontece, digladiam-se, rolam na poeira, disputam fisicamente a parca esmola ...
E voltam de novo a ser sombras invisíveis, na beira da estrada ... naquela estrada da morte ...

O sol queima tudo e todos.  O ar é sufocante.  Mas elas, aquelas esfinges humanas, ali continuam ... sempre ... aqui, ali ... além ...

Será que os "Nats" os esqueceram nesta vida ?  O que será que Siddhartha Gautama lhes pregou, SER iluminado que foi, defensor dos valores, da humanidade, da justiça, da equidade ???
O despojamento, o desapego e a aceitação ... Afinal, talvez a aceitação seja o único sentimento possível, que ainda os mantenha vivos, naquela estrada da morte que são as suas vidas ... e em que eu tive vergonha de passar !!!...

... Pois "o ódio não termina com o ódio, mas sim com o amor " ... disse Buda !...

Anamar

quinta-feira, 18 de abril de 2019

" MIN GA LA BA " - Memórias de viagem




"MIN GA LA BA "  é a saudação de bons dias que nos é distribuída por todos os cantos de Myanmar.

Myanmar de seu anterior nome Birmânia, tem origem em Burma, que deriva de Burmese Bamar, a principal etnia do país.  Myanmar seria uma aliteração disso, sendo Burma a versão coloquial.
É mais um dos países situados no sudeste da Ásia , que acabei de visitar.

Fascina-me a cultura oriental, fascinam-me as belezas naturais e a tipicidade dos costumes, e fascina-me a forma simples e despojada como vivem.
A filosofia ou corrente espiritual que em predominância os norteia, o Budismo na sua vertente Teravada, tem valores e princípios que me interessam.  Nada têm a ver com a sociedade de consumo, material e vazia que motiva os ocidentais.
É uma sociedade humanista que cultiva o desapego e a felicidade na simplicidade.  Boas sementes darão bons frutos, e na vida, a lei do retorno encaminha este povo para melhores karmas, rumo ao Nirvana !

Sob temperaturas que rondam os 40º C e uma humidade excessiva, o cansaço instala-se ao fim de algum tempo.  Os dias começam bem cedo, e há que rentabilizá-los.

Myanmar é o país dos Templos dourados, dos Pagodes, das Stupas e dos Monastérios.
As cidades de Yangon, Bagan e Mandalay, foram os principais centros que visitei, sendo o Lago Inle o encerramento perfeito para o meu périplo.
Havaianas nos pés, roupa fresca e chapéu na cabeça, foi a indumentária adequada.
Lá, os homens usam "longhis", saias até aos pés, atadas na cintura, mais cómodas por mais frescas, em temperaturas demasiado elevadas, como referi.  Normalmente têm cores escuras.  As mulheres também as usam, embora prefiram cores mais garridas.
Pintam os rostos com uma pasta vegetal da Thanaka, uma árvore endémica. Ralam a madeira, e da serragem confeccionam a referida pasta, protectora da pele contra os raios solares.  Simultaneamente funciona como embelezamento, sendo-lhe desenhados motivos decorativos.

A Birmânia foi colónia inglesa até 1948.  Fora anexada pelos ingleses, em 1885, depois de três guerras.
Nesse período, a sua capital era Yangon ou Rangoon.  O líder do movimento independentista foi então o general Aung San, cuja filha viria a receber o Prémio Nobel da Paz em 1991, pela militância contra a ditadura militar imposta desde 1962.  Tem hoje 73 anos, estudou na Universidade em Deli, Oxford e Londres e o regime militar manteve-a em prisão domiciliária em Myanmar, impedindo-a de receber pessoalmente o Nobel, e ainda de acompanhar o marido, inglês, que viria a falecer de cancro, em Inglaterra.
Tendo-lhe sido negado o visto de entrada no país onde vive e onde continua a ter protagonismo político, se saísse, não mais poderia voltar.
Hoje é deputada e braço direito do presidente, embora neste momento não seja figura politicamente consensual.
A história de Aung San Suu Kyi, foi narrada no filme "The lady".

Como em qualquer um dos países asiáticos que já visitei, o trânsito é anárquico.  O transporte é feito preferencialmente por moto.  Nelas, transportam-se famílias inteiras.  Nelas, transportam-se objectos de dimensões inimagináveis, em equilíbrios de uma precariedade que lembram passes de verdadeiro malabarismo. As crianças vão à frente do condutor, segurando-se aos retrovisores, e as mulheres sentam-se de lado, atrás.
Excepcionalmente, em Yangon as motos não têm autorização para circularem.  Essa determinação adveio da ocorrência de um atentado político falhado, contra um general da ditadura.  O agressor fazia-se transportar de moto.  O atentado gorou-se, mas as motos foram então interditadas. Nas restantes cidades existem aos milhares.
Até à década de 70 a condução era feita à inglesa, ou seja, pela esquerda.  Hoje é feita pela direita, só que com o volante também à direita, pois grande parte dos carros são oriundos do Japão, feitos para mão inglesa.

A moeda nacional é o Kiat, sendo que 1 Euro vale aproximadamente 1700 Kiats.  O dinheiro circulante é apenas em papel.  Não existem moedas.
Qualquer compra é negociada e discutida acaloradamente.  Há que pechinchar !!!

Bagan é primordialmente a cidade dos Templos e das Stupas.  Já existiram mais de quatro mil.  Hoje, mercê do desgaste temporal e de terramotos ocorridos com frequência, erguem-se ainda assim, mais de dois mil.  As famílias constroem stupas em homenagem a Buda.  Dessa forma perpetuam o seu nome, e acautelam o karma futuro.
Os templos são esmagadores.  Com dimensões que nos deixam perplexos, são ricamente revestidos com folha de ouro, com placas de ouro maciço como o de Shwedagon com 99 metros, em Yangon, com madeira rendilhada, com pedaços de espelho em bordaduras recortadas, num trabalho com uma  maestria incapaz de ser descrita.
Neles se entra sempre descalço, e nos mais austeros, os ombros e as pernas devem ser cobertos.

A pouco mais de cinquenta quilómetros de Bagan, existe o Monte Popa, um mosteiro edificado no cimo de um imenso rochedo vulcânico extinto há 15 milhões de anos, que é dos principais centros de peregrinação e adoração de Myanmar.
Foi mandado construir por um guru religioso no século XII, em homenagem aos Nats, 37 espíritos / deuses, venerados, verdadeiramente adorados e temidos, que são fantasmas malevolentes e atormentados, como demónios ou duendes, que evoluíram de homens e mulheres com mortes violentas e dolorosas.
São capazes de influenciar a vida terrena, e como tal, devem ser tratados com reverência e generosidade, para trazerem sorte e prosperidade, o que significa que quem neles não crê, pode sofrer consequências terríveis.
São-lhes por isso deixadas oferendas de flores, frutos, dinheiro e litros de bebidas alcoólicas para que se apaziguem.
O Mosteiro de Popa,  Taung Kalat, ergue-se a 777 degraus do solo, numa escadaria por onde circulam famílias inteiras de fiéis, de todas as condições e capacidades físicas.  Crianças, adultos e velhos, quase carregados em peso, convivem escada acima com cerca de 2000 macacos Rhesus que proliferam ao redor do mosteiro.
Há um verdadeiro comércio parafernálio instalado, com vendedores de roupa e lembranças, com faxineiros que varrem ininterruptamente a escada totalmente conspurcada por lixo e dejectos dos símios, e que aproveitam para pedir doações.  Há todo um colorido dos trajes, dos néons e da decoração dos altares dos Nats, e há muito dinheiro em receptáculos de vidro ou mesmo colado às figuras dos espíritos.
Vive-se  um ambiente todo ele surreal !!!






Nos mosteiros,  os monges ingressam por opção ou por determinação de vida.  De facto, os mosteiros também são apoio familiar ( albergando muitos órfãos )  e social, já que a eles recorrem famílias de parcos recursos, normalmente agricultores,  gente do campo, buscando forma de educar e prover à formação integral dos seus filhos.
Pelas manhãs, os monges deixam os mosteiros transportando pequenos potes, e dirigem-se aos diferentes locais onde diariamente lhes disponibilizam os alimentos que deverão consumir numa única refeição, tomada até ao meio dia.  Depois dessa hora não ingerirão mais alimentos.
Vêm normalmente em grupos ou em filas, com os menores, à frente.   É a chamada "Ronda das almas".
A população garante a subsistência, aos monges de milhares de mosteiros de Myanmar.
Lá,  eles  estudam,  meditam,  rezam  e  também  brincam ... porque  muitos  são  apenas  crianças !

Nos templos são depositadas ofertas com velas, frutas, arroz e outros alimentos, como preito de homenagem a Buda.
Há famílias inteiras que peregrinam, e parecem "acampar" nos pagodes, numa "convivência"  com Buda ( tida como normal nas suas vidas ).
Em Shwedagon Pagoda há um altar com um Buda por cada dia da semana.  De acordo com o dia do nascimento de cada um, e utilizando pequenas canecas disponíveis, deverá banhar-se com água purificada, o nosso Buda correspondente, tantas vezes quantos os anos que temos, mais um, para que a bênção da vida se prolongue e acrescente.
Há templos em que as mulheres só se podem aproximar da estátua de Buda, até uma determinada linha que marca o espaço sagrado.  E há estátuas totalmente deformadas, pela deposição sucessiva das folhas de ouro que as revestem, em oferenda dos crentes.
As estátuas de Buda assumem as mais diversas posições ou "mudras".  As de concepção chinesa, representam quase sempre Budas sentados e extremamente obesos, enquanto que os Budas originários da Índia e do Nepal, realçam uma beleza mais feminina, com roupas colantes ao corpo, ressaltando a morfologia inerente ao género.
Por vezes, os rostos são pintados e as unhas dos pés e das mãos também.  É o que caracteriza por exemplo o "Buda Reclinado", com 70 metros de comprimento e 16 de altura, revestido a ouro, coroado com diamantes e pedras preciosas, existente no Templo Chaukhtatgyi  em Yangon.  Tem cores marcantes, manto dourado, rosto branco, baton vermelho, sombra azul nos olhos de vidro e unhas rosa.




Grande parte das estradas é feita normalmente pelas mulheres.  Umas, partem pedras até as tornarem em cascalho, outras, carregam-nas em cestas, outras ainda, espalham-nas na terra para que no final uma máquina as espalme, antes de ser colocada uma camada de alcatrão por cima.
Tudo isto, embiocadas em chapéus e panos protectores, sob um sol castigador.
A agricultura também é artesanal.  O arroz, que integra todas as refeições, é ceifado com foices, a terra arada com a ajuda de vacas ou búfalos, e podem ver-se carros de bois, carroças, manadas e rebanhos de cabras.

Nyaung Shwe fica no estado Shan, a leste de Myanmar e é a porta de entrada para o Lago Inle, um lago de água doce com 116 quilómetros quadrados, 100 Km de comprimento por 5 de largo.
Fica no meio de montanhas a quase 900 metros de altitude, e é alimentado pelas águas que delas escorrem.
Nesta zona vivem cerca de 70000 pessoas, as mulheres usam turbantes garridos, e nas suas margens encontram-se muitas das pequenas indústrias artesanais que visitei, bem como templos e mosteiros.
Phaung Daw U é um deles, com cerca de cem anos, Kyaun Khon Kyaung, o Mosteiro dos gatos saltadores, um outro, em madeira de teca, construído em 1855, segundo a arquitectura do Lago - construções palafitas assentes em estacas de bambu e com exclusivo acesso, por barco.
Neste templo um monge superior adestrou os muitos gatos que habitam o mosteiro, em malabarismos e acrobacias saltadoras.  Existem vídeos no youtube muito engraçados, ilustrando essas peripécias felinas.
Actualmente o monge superior responsável, baniu essas práticas, considerando-as antagónicas dos  valores e preceitos budistas.
Mas os gatos continuam a habitar o mosteiro ...









O Lago Inle é um jardim de jacintos de água.  À sua superfície, as pequenas flores atapetam tudo o que a vista alcança.
Os barcos dos pescadores, os barcos de transporte das populações e os de todos que sulcam o Lago, são em madeira, rasando as águas, com motor de popa.
Os pescadores e recolectores de algas do Lago, remam com os pés, equilibrando-se nos barcos, apenas com uma das pernas. Têm redes com uma forma característica, lembrando um cone invertido.
É um ballet dançado sobre as águas !!!
As algas servem para que, no próprio Lago, com a ajuda de estacas de bambu, construam plataformas fixas, sobre as quais, com fertilizantes, possam desenvolver-se as espécies necessárias à sua alimentação.  Nessas "hortas flutuantes" que têm que ser refeitas de 2 em 2 anos, cresce tomate, pepino, pimentões entre outros produtos.
As espécies vegetais desenvolvem as raízes para a água, sendo por ela alimentadas.  É a chamada "cultura hidropónica".
O Lago Inle tem uma população lacustre habitando em aldeias palafitas.  Cada casa tem uma escada até ao pequeno barco, único transporte no Lago.
A água, armazenada em depósitos em cada habitação, vem do centro do Lago, a uma profundidade de 5 metros, é tratada e utilizada para o uso das famílias.



Nas margens do Lago, visitei, como disse, pequenas indústrias artesanais em que os trabalhadores são preferencialmente mulheres.
Vi uma indústria de tecelagem, onde se fabricam peças lindíssimas, com a fibra extraída do caule da flor de lótus.  Igualmente se tece o algodão e a seda natural, essa, importada da China.
Vi a confecção de charutos artesanais, com casca de milho e papel, misturado com anis, mel, banana ou hortelã, colada com tamarindo, arroz e água.



Vi o fabrico de papel para criação de chapéus de sol, candeeiros e outros, adornados com flores naturais incorporadas, feitos da casca da amoreira.
Vi mulheres-girafa fabricando roupas com tecidos feitos das fibras de lótus também. São roupas e panos profusamente coloridos.


Ostentam no pescoço, nos braços e nas pernas, espirais de latão.  Pertencem às tribos Karen e são originárias do norte da Tailândia.
De acordo com a tradição local, parece que inicialmente esses anéis metálicos preveniam ataques surpresa, dos tigres.  Acontece que na zona onde estão sediadas as tribos de mulheres-girafa, não vivem mais esses felinos.  Apenas, a tradição perpetuou-se e continua a existir.
Trata-se pois, de uma questão cultural.
Aos nove anos de idade, já as meninas usam 13 anéis, correspondendo a um peso de quatro quilos, aumentando com a idade, o número de espiras que as envolvem.





A Birmânia tem riquezas naturais aproveitadas nas indústrias artesanais.  Tem ouro, prata, pedras preciosas e semi-preciosas em jazidas no subsolo. Tem madeira de teca e bambu usado nas mais variadas situações.
O trabalho em laca ( produto nacional de Myanmar, onde existem mais de duzentos ateliers artesanais, e em que a matéria prima vem da árvore Thitsea, cortada em tiras muito finas) , o trabalho esculpido em madeira, o trabalho em prata, em folha de ouro, em metal, a tecelagem de roupas e tapetes, entre outras, são algumas das principais indústrias artesanais, como já referi.

Sempre que visito um país estrangeiro não dispenso uma incursão pelos mercados locais.  Considero-os a mais genuína representação do povo.
Aqui também visitei alguns, e é sempre com fascinação que contemplo toda a explosão de cor, de cheiros, de sons, de costumes particulares e irrepetíveis, características de cada zona do globo.
É nesses espaços que se compreendem as rotinas, os hábitos, as vivências ... em suma, a verdade da vida de cada país !







Esta exposição já vai longa.
Quis com ela abrir-vos uma janela neste sudeste asiático, janela que permitisse ver de tão perto quanto possível, como foi ... como é !  Espero não ter sido excessivamente exaustiva nas explicações.

Para Myanmar, terra minha de acolhimento por alguns dias deste Abril de 2019, vai o meu ...
" KYEY ZU BA "  (  Obrigada )  !

Anamar

quinta-feira, 11 de abril de 2019

" QUASE LOGO "






Foi assim naquela madrugada ...
Saíste de mansinho, sem ruído, nos bicos dos pés e um sorriso no rosto, tenho a certeza.
Não havia necessidade de acordar ninguém ... até porque já nos despedíramos vezes sem conta, na certeza do reencontro ... um dia ... quase logo ...
Porque tudo é efémero e o tempo dos Homens é o que menos importa ... Esvai-se num suspiro !

Estavas cansada da caminhada ... que eu também sei, e afinal acabava de cumprir-se o ciclo, naquela madrugada.
Nesse dia chegaras e nesse dia haverias de partir.  Desígnios do insondável e do karma que carregamos.  Está escrito.  Desde sempre está escrito !

E agora, mãe, que já passou um ano, quero festejar contigo outra vez, o teu aniversário.
Quero ver-te de novo com o sorriso maroto com que apagavas as velas, com que fingias enfadar-te com mais uma foto, com a felicidade de teres os teus ... os nossos, à tua volta.
Agora que passeias pelos jardins dos nenúfares, das flores de lótus, dos pássaros nas ramagens ... solta como uma menina descalça que brinca de novo ... quero dar-te um outro beijo envolto no código de afecto e de saudade, que nós duas sempre conhecemos ...

A vida é isto, mãe !

Lá por onde andas, nas madrugadas iluminadas por sol de Primavera ... no espaço sidéreo de estrelas encantadas, aguarda-me em paz, pois um destes dias, voltaremos a ver-nos.  É quase logo ...
Até lá, continuas dentro de mim, e serás eterna, porque sempre o são, todos aqueles que não esquecemos ...

E tenho saudades, mãe  ... infinitas saudades !...


11 ABRIL  1921   -   11 ABRIL  2018


Anamar

sábado, 30 de março de 2019

" HOMENAGEM RECONHECIDA ..."



Tão estranho entrar no Pigalle e aquele lugar estar vazio !
E tudo tão aparentemente igual ao de sempre !  Igual, não ... porque aquele lugar continua teimosamente vazio !...

O Pigalle é o café de sempre, as horas são as de sempre e as pessoas habituaram-nos há muito, a ser uma "família" alternativa.
É um café com uma população "sui generis".  Um café "de velhos", dizem-me, com uma frequência mais ou menos fixa, por horas.
É um "ex-libris" da cidade onde vivo.  Um espaço com mais de sessenta anos, creio, em que as gerações vão passando, mas ele continua apostado em ficar.  Mesmo quando as crises se sucederam teimosamente no país, ele resistiu, apesar de parecer padecer de um anúncio de morte iminente.  Resistiu, de teimoso !
As conversas nos grupos de todos os dias, rondam muito inevitavelmente em torno da saúde ou da ausência dela, dos frequentadores.
Conhecem-se as histórias, quase sempre das maleitas, dos presentes e dos ausentes ligados aos presentes ...
Assim se criam laços de alguma proximidade e mesmo cumplicidade entre as pessoas.
Diariamente, quando entro, tenho três ou quatro mesas a cumprimentar.  E há realmente "tipos" bem carismáticos por ali.

Aquele "bom dia" da chegada e aquele "até amanhã" da partida, são garante da fidelidade entre os convivas.  São a certeza de que, "amanhã por aqui estaremos de novo" ...
E assim por cada dia que passa, por cada semana que transcorre.
Quase nos sentimos na obrigação de, prevista alguma ausência, não deixar de informar ... para tranquilidade dos espíritos.
"Até amanhã, não ... porque este fim de semana não estarei ... "

Por tudo isto, qualquer "desistência" ou "abandono", logo serão notados.

Têm aberto outros cafés na zona.  Mais novos, melhor qualidade, mesmo maior simpatia no atendimento.  Mas, muitos de nós entre os quais me incluo, parecem sofrer de um qualquer determinismo estranho, ou mesmo de um hábito tão enraízado, que o raio dos sapatos, ainda que sob protesto, sempre para lá nos encaminham !
Bem reclamamos, com a caturrice típica dos velhos.  Que é uma estupidez, que só podemos ser masoquistas, que até parece gostarmos de ser mal atendidos.  Que o que não falta são lugares mais merecedores do nosso dinheiro.  Que aquele ambiente catapulta-nos desavergonhadamente para uma "quarta idade" que ainda não merecemos ... e patati e patata ...
Há quem me diga ... " Credo ... qualquer dia só sabes falar de doenças !  Ah ... e de futebol...é verdade ! ( outro dos temas recorrentes, sobretudo na tertúlia masculina )  Por isso, corres sérios riscos de te miscigenares com o ambiente ! Não te acauteles, não !..." e sorriem com descaro ...
Depois há quem me diga debochadamente : " Bom ... amanhã vou ter contigo ao centro de dia ! "

Mas é verdade ... Não adianta.  Sou mesmo reincidente na coisa, ao ponto de, quando o Pigalle não abre, me sentir desasada no destino.

Lá, escrevi muito.  Lá, li muito.  Lá, conheci, como disse, muita gente. Lá, também já chorei ... meio para dentro ... recatadamente ...
E de lá também lembro alguns, que na verdade simplesmente "desertaram" ... ainda que a contragosto, tenho a certeza.  E já vão sendo muitos.

Assim foi ontem.  Entrei e informaram-me de chofre, que aquele lugar ia mesmo ficar vazio.  Ontem, hoje e sempre ...
Assim ... sem que o pudéssemos esperar.  Com o despudor da morte  que não se anuncia, que não pergunta se pode entrar e vai logo empurrando a porta.
Não me parece nada justo.  Nem lógico,  com este sol que amanhece todos os dias.  Nada aceitável ...  Ainda por cima, fazendo-se desentendida com  o transtorno que causa, exactamente quando não estamos nada a contar com a sua visita ...

A Dra. Joana, pequenina, loira, de voz doce e baixinha como ela, porte aristocrático, nos seus oitenta e um anos, só faltava ao Pigalle quando as dores ósseas  da escoliose profundíssima que apresentava, lhe inviabilizavam de todo, a deslocação.  Com o apoio do braço da empregada e da bengala que lhe conferia o ar distinto e frágil de uma dama do século passado, aparecia, acompanhada pelo marido, seis anos mais velho.
Era alentejana, oriunda de Évora.  Fora professora, na área da Linguística.  Amava Pessoa e reverenciava Florbela.
A Dra. Joana tratava-me carinhosamente por "Margaridinha".
Deambulava por algumas mesas, queixava-se dos incómodos que a não deixavam descansar, e sempre tinha palavras amáveis, brincalhonas, bem dispostas, para espalhar ... "Portem-se mal ! ..." - dizia sorridente, em despedida, com ar maroto e maternal, na mesa onde o nosso grupo, de cinco ou seis, vinte anos mais novos, "jogava conversa fora" ...

Ontem, sem nos avisar, resolveu ir embora.  Afinal, Évora esperava-a.  A charneca em flor, aguardava recolhê-la no seu seio ... O sol ia a pino e a Primavera despontara em força.

Aquando da publicação do meu livro de poesia, "Silêncios", em 2017, a Dra. Joana escreveu o texto que transcrevo, com uma generosidade comovente :

        Margaridinha

" Silêncios" - poesia intimista e reflexiva, sugestiva, metafórica, "vestida" de uma natureza exuberante e personificada.
Plena de amor, carnal ou não, vencedor ou vencido, numa linha que nos lembra Florbela, mas na expressão desinibida do nosso tempo, a melodiosa poesia de Margarida é, a um tempo, afectiva, profunda, enérgica porque nasce dos sentimentos, das vivências, da meditação e reflexão, dos "Silêncios".
E perdurará na minha memória a "pintura" sintética, expressiva, emocionada e forte do Alentejo que também "será meu até à morte"...
Obrigada pelo que é, Margarida e um beijinho grande da

                                                                              Maria Joana Ribeiro
         
                                                                                     Julho 2017


Na pagela que a recordava, na capela funerária,  Pessoa dizia :

       " A morte chega cedo,
pois breve é toda a vida
O instante é o arremedo
de uma coisa perdida.
O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
não sabe o que alcançou.
E tudo isto a morte
risca por não estar certo
No caderno da sorte
que Deus deixou aberto.

                          Fernando Pessoa

28-12-1937     *     25- 03-2019

 ...... Quem melhor, o faria ??

Que descanse em paz, Dra. Joana ... no Alentejo que nos viu nascer !

Anamar

segunda-feira, 25 de março de 2019

" UMA FRESTA NO CAMINHO "




A " menina Ofélia " zurrava no pasto, em jeito de cumprimento ... Há quanto tempo eu não escutava a linguagem dos burros, à distância de uns metros de terra verdejante ?!...
Lá longe, naquele silêncio absoluto, apenas cães ladravam em algum monte próximo.  A brisa soprava leve e o céu era um deslumbramento só.  Totalmente limpo e escurecido pela ausência de luzes próximas, exibia uma poalha estelar com todas as constelações bem visíveis ...
Há quanto tempo  também, eu não admirava a maravilha que é um céu estrelado, sem horizonte que o limite ?!
E no firmamento uma super-lua arrogava-se, altaneira, dona da noite !
Era Alentejo, era o silêncio aconchegante de um chão que logo se assinala como nosso ... era a terra a amarinhar pelas veias que levam directo ao coração !...

Sendo finais de Março, com uma Primavera acabadinha de chegar, a temperatura mais lembrava um Verão quase a pino, com dias generosos, de céu azul, de sol luminoso e excessivamente quentes.
Os campos verdejantes, douram-se encosta acima, pelo amarelo do tremoço, agora em floração, mas também pintalgados pelo colorido de todas as flores que crescem por conta e risco.  São as macelas, os malmequeres, as rosas bravas, as estevas e os pampilhos brancos, os lírios roxos, as alcachofras e o rosmaninho ... é a urze, as papoilas, a dedaleira ... já  que  as  giestas  aguardam  o  mês  que  também as  nomeia , o  Maio,  para  se  abrirem  ao  sol ...
As cegonhas empoleiram-se a desníveis, pelos postes de alta tensão.  E são verdadeiras comunidades, as que vemos e ouvimos encarrapitadas nos ninhos.

O mar não está longe, embora dali ainda não se pressinta.  Haveria de vê-lo, mais tarde, numa romagem a memórias de infância e juventude.
E como foi gratificante e ao mesmo tempo surpreendente, revisitar lugares que o tempo não macula, uma vez desenhados na mente e no coração !
Apenas, muitos desses lugares, ou quase todos esses lugares já somente guardam, lapidadas nas ruas, nas igrejas, nas calçadas ... nos rochedos e areias ... nas ondas, no verde e azul das águas,  as memórias, somente as memórias, as quais têm a dimensão do que éramos então, do que vivíamos então, do  tamanho dos sonhos que dimensionávamos então ...

Vila Nova de Milfontes, do tempo das ruas sem luz, em que o Mira espelhava no prateado das águas mansas, a magia do céu estrelado também, no passeio nocturno ao ancoradouro dos botes para as Furnas ...
A Barbacã, mirando o outro lado ... "Rio Mira vai cheio e o barco não anda ... tenho o meu amor lá na outra banda ... Lá na outra banda e eu cá deste lado ... Rio Mira vai cheio e o barco parado " ...
A banda para onde se atravessava em barquinho a gasolina, pés chapinhando na água fresca e cabelos em desalinho ... buscando mar a sério, com ondas com vergonha na cara, e não aquela pasmaceira de águas fluviais, preguiçosas e sonolentas ... cá deste lado ...
As dunas, bem lá no cimo, onde uma rotunda maldosa, desenhou o apagão das nossas lembranças ... Eram dunas alterosas que demarcavam fronteira entre a praia da Vila e as praias do oceano, e que eram pistas de deleite, no rebolar encosta abaixo, quando as gargalhadas eram soltas e a despreocupação das vidas tinha o tamanho dos anos que detínhamos ...

"Era aqui ... do que me lembro, acho que só podia ser aqui "....
E para onde foi tudo ... mais de cinquenta anos depois ?..."
O coração aperta, a garganta emudece ... uma espécie de silêncio quase religioso medeia entre o hoje e o ontem, entre nós e todos os que já foram e pertenciam àquele retrato que perdeu o colorido e só mantém a patine dos tempos.  Sensação estranha ...

Anos adiante, a Ilha do Pessegueiro desenha-se no horizonte.
Porto Covo fala-me de outra fase da vida.  Já então com filhas na barra da saia, tempos despreocupados, ainda assim.  Muitos amigos, quase duas dúzias, dividindo as conversas, os risos, os banhos e os passeios na rebentação ... as brincadeiras, as cantorias, as lancheiras também ... as sombras dos mesmos chapéus, as futeboladas nas areias quase desertas, até as sestas, em dias inteiros de praia ...
Partilha de amizade, de cumplicidades, de companheirismo ... Criançada na partilha dos baldes, das pás, das conchas catadas na maré baixa ...
A Praia dos Búzios, a Praia Grande ... ou a preferida sempre ... a da Samoqueira, com os fios de água fresca despencando falésia abaixo, no simulacro de chuveiro de água doce, ou de fonte ali à mão, pronta a encher os baldes da pequenada ...
Continuam a correr ao ritmo dos tempos, ao ritmo das vidas ... mais ou menos intocados !
O "31" ainda mantém o nome.  No "Quadrado", como era conhecida a Praça Marquês de Pombal, ex-libris da vila, lá se mantém, mesmo ao lado da igreja, o bar que na altura era o único ponto de diversão nocturna, na calmaria do povoado.
Não pude deixar de esboçar um sorriso para dentro de mim.  Como eram doces todas aquelas lembranças !...

E pronto ... fui até ali, junto da paliçada,  corresponder ao cumprimento.  A "menina Ofélia", simpática e deferente,  honra, sem dúvida, os burros de quatro patas !
Até à volta ...



Anamar

quinta-feira, 21 de março de 2019

" PRIMAVERA OUTRA VEZ ..."




A Primavera começou ontem.  O equinócio anunciou-se este ano, a 20 de Março, quando uma super lua, a última super lua de 2019, coincidiu no céu com o seu começo.
Não há quem não fique feliz.  Afinal, é a estação que amanhece sorrindo, com uma braçada de flores e uma paleta de cores a tiracolo .

Já levo muitas Primaveras na minha vida.  A minha mãe viveria a sua última, no passado ano.
E nem dela mais, terá dado conta ...  Logo ela, que amava as flores.  Logo ela, que lhes sabia a conversa e os segredos ...
Eu, não.  Não sei sussurrar-lhes as minhas histórias, nem com elas dividir as mágoas, as dúvidas, os sonhos e as esperanças.
Mas extasiam-me, adoçam-me a alma, espantam-me pelo milagre, emocionam-me pela certeza.
Elas são garante de vida.  São promessa de recomeço.  São oferta sem cobrança, a única oferta sem cobrança que o destino nos faz ... a da renovação da Natureza, com a proposta da renovação pessoal de cada um de nós.
Saibamos ser capazes de o fazer !...

A Primavera é inspiradora de muitos lugares comuns poídos e gastos.
Os poetas cantam-na.  Os apaixonados também.  É a estação adolescente nas nossas vidas.  É poderosa, redentora e mágica.  Cobre-se do verde esperançoso de dias promissores e da luz clara de vida que recomeça ...

Quando ainda leccionava, a chegada da Primavera era uma manifesta lufada de ar fresco, na escola.
As hormonas fervilhantes, eclodiam nos corpos jovens, como o sol rompia no radioso azul do firmamento ... desbragadamente ...
Os corações aceleravam em resposta biológica, enquanto que as cabeças "no ar" desacertavam os comportamentos.  Havia, como na Natureza, uma ânsia de vida, um respiro de sonho, uma urgência de fruir, uma aposta confiante no amanhã.
Os miúdos ficavam "impossíveis", como costumávamos dizer, sorrindo ternamente benevolentes.
O romance perpassava, a incontenção dos corpos a cada canto, era o apelo da seiva circulante ... Mostrava-se, exibia-se, ostentava-se ...
As aves acasalam, os céus enchem-se do seu pipilar chamativo, dos seus gorjeios convidativos, dos seus trinados provocadores.
A copa do arvoredo compõe-se.  Os ninhos começam a construir-se ou a reconstruir-se.  Há que fazer a casa.  Vêm tempos generosos !
Sempre o apelo da vida, do renascimento, da continuidade, da eternização do ciclo !...

Dizem-me que estou pouco primaveril.  Que ando mais para tons outonais rasando o Inverno.
Dizem-me que pareço ter hipotecado muito, da irreverência e juventude que me caracterizavam.
Que, de repente ou gradualmente, penumbrei.  Que me estou a tolher por medos, enquadramentos meio desistentes e pouco combativos ... e me deixo ir ... simplesmente me deixo ir, com alguma apatia e indiferença, parece.
Admito que sim.  Mais admito, e penso advir  daí muito do meu estado de espírito, que tal se deva ao facto de ainda não ter decorrido sequer um ano sobre a partida da minha mãe, com o que se encerrou um processo violentamente desgastante  na minha vida , temporal e psicologicamente.
Costuma dizer-se que "elas não matam mas moem" ... e tenho para mim que o desgaste, é sempre um processo mais arrasador do que uma destruição cataclítica, já que um desgaste é efectivamente uma destruição lenta, corrosiva, com contornos cirurgicamente demolidores.  Intencionalmente demolidores.
E o ser humano não recupera tão fácil, desse processo.

De facto, a minha forma de encarar a vida  hoje, a minha capacidade de olhar o futuro, a minha resistência psíquica, foram, sem dúvida, profundamente beliscadas.  E inevitavelmente observo em mim, um endurecimento e um cepticismo face à realidade, que se me pinta com cores menos generosas, dando as ilusões lugar a certezas menos fantasiosas.  Digamos, que perdi mais um pouco da "inocência" que nos adocica a caminhada !

Mas ... a Primavera está aí.  O céu está azul e luminoso.  Os pólens irrompem nas flores que engalanam os campos, a brisa é leve, os pássaros cantam em melodias ancestrais e tudo continua harmoniosamente  perfeito ... tudo  sempre  continuará  por forma  a que o MILAGRE  se repita outra vez !...

Anamar

quarta-feira, 20 de março de 2019

" OCORREU-ME QUE HAVIA DE LHE DIZER ..."





Ocorreu-me que havia de lhe dizer ...
Mas,  dizer o quê, nesta altura da vida em que as palavras ficaram presas lá atrás e jamais se vão soltar ?!
Quem sabe um dia se soltem, como aquele combóio que, chegados à gare, já só vimos sumir na curva, lentamente ...
Acredito que quando não se sabe fazer melhor, passa-se adiante a imperfeição do que sabíamos.  Eternizam-se as faltas, os silêncios, os vazios.
O raio das palavras colaram-se como visco, na garganta, e os braços penduraram-se ao longo do corpo, inertes, incapazes, teimosamente incapazes ... sem serventia ...
E o tempo passou.  E as gerações andaram no tempo.  Adiante ...
Os colos arrefeceram de esperar, e os gestos pararam nas mãos ... paradas também.

Quando lhes desviámos a franja dos olhos ?  Quando nos falámos com tempo, com o tempo dos afectos esquecidos ? Quando gargalhámos de vontade ?
De repente a vida silenciou-nos.  Estranhou-nos.  Tornou-nos caramujos em conchas cada vez mais prisioneiras e cerradas.  A vida policiou-nos sem piedade.  E desabituámos o gesto, a linguagem, os jeitos.  Deixámos de saber fazer.  Houve um dia que deixámos de saber fazer ...
Não sei quando foi, mas foi !  Dobrou-se uma esquina insuspeita, de incapacidade, de sentido, de significado, que nunca mais conseguimos dobrar.
Ficámos de repente crescidos, demasiado adultos, sérios ... desconhecidos.   Foi quando receámos que entrar pelo quarto no aconchego da cabeceira, pudesse parecer piegas, talvez descabido já ... talvez forçado já ...

E se calhar não era nada disso.  Se calhar, eu ansiava por entrar, compor a volta do lençol, fazer aquele afago ... elas fazendo-se dormidas, talvez esperassem aquele último boa noite silencioso ... o até amanhã ... a certeza do nosso bem querer  ...
Mas creio que fiquei onde estava.  Fui ficando onde estava.  Não soube fazê-lo.  Por medo.  Acho que era por medo ... que se enfadassem, se incomodassem ... se percebessem grandes demais ... e já não houvesse espaço nas vidas ...
Não sei.

E o nó apertou-se até hoje, na garganta.  O peito reclama, doído.  Por que diabo havia de ter sido assim ?!

E pronto ... depois do depois, nunca mais houve outro depois ...
Perdemo-nos por aí.  Dispensámo-nos.  Talvez tivéssemos procurado outros colos, outras almofadas, outros braços que acalentassem.  Como se pôde.  Cada uma, como pôde.
Mas ficou a ferida, o buraco, o vazio, a distância, a frustração de não ter percebido que a vida se nos estava a escoar por entre os dedos.  A estranheza.  Ficou-nos a incompreensão inesperada da linguagem.  Ficou-nos o desconhecimento de já não nos conhecermos.  Ficou-nos a raiva de não entendermos  que então, ainda era tempo ...

Hoje, já não é tempo.  Tempo de recuperarmos o que foi.
Os degraus foram-se descendo.  Os terrenos ficaram baldios porque a sementeira perdeu a estação.
O doce dos frutos não apurou ... Afinal, não soubemos conversar as flores no caule ...

Ela chegou de viagem.  Uma semana longe.
Perguntei ... já mataste as saudades dos teus filhos ?
Do outro lado de um telefone silencioso ainda, ouvi ... oh... parecia que nos tínhamos separado de véspera.  Um beijo de fugida e pronto.  Salvou-se o mais novo.  Os onze anos ainda não lhe tiraram a ingenuidade, a importância do valer a pena ... Ou então, esse recusa crescer e aceitar as muralhas da vida ...

Ocorreu-me que havia de lhe dizer ...

Anamar