terça-feira, 23 de abril de 2019

" EM EPÍLOGO "





Uma viagem é um enriquecimento pessoal extraordinário.  É uma situação em que, gastando-se, se enriquece !...

Esta minha viagem foi essencialmente de índole cultural, e sempre me fascino com a multiculturalidade que habita este nosso planeta, que tão mal tratamos.
É fascinante depararmo-nos com tantas formas diversas de vida, tantas formas de estar e sentir, de sonhar ... em suma, de existir !
Todos diferentes e todos iguais, afinal !...

As máquinas fotográficas captam e registam flashes dessas vidas.  Disparam quase segundo a segundo.
Tenta perpetuar-se a imagem, a cor, o som, a luz que fazia, a aragem que passava, a emoção que experimentávamos ...
Tenta fixar-se o momento, o instante, o tempo ...  Como se pudéssemos criogená-lo "ad eternum" na nossa existência !
É muito bom rever as imagens, posteriormente, agora ... depois ...
É muito bom, mas muito redutor.  Pode ser grande o espólio que trazemos, pode ser rica a aprendizagem alcançada ... sempre será curta e indizível ... O que vale  e o que fica, é esta herança de vida, é este prémio do existir, é esta realização do sonho !...

Estudos dizem que viajar pode ser o segredo para uma vida mais longa ...
Acredito que sim.  Afinal, são várias vidas que se vivem numa só !...

O pano desceu, a cena terminou, a história, por ora teve um "happy end" ... Mas já sonho poder de novo perder-me por aí !...

Anamar

domingo, 21 de abril de 2019

UMA "OUTRA" BIRMÂNIA ...




Se tivesse que dar um nome àquela estrada, chamar-lhe-ia a "estrada da morte" ...

Aquela estrada é a estrada de peregrinação ao Monte Popa, em Myanmar, antiga Birmânia.
Não pude fotografar ... Não entenderam conveniente, na óptica do "turismo sustentável" defendido no país.  Como se eu devesse ser portadora de uma borracha para apagar o que os olhos teimavam ver, ou pudesse cobri-los com palas, na esperança de não ver mesmo !...

O Monte Popa é um vulcão com 1518 m de altitude, extinto há 15 milhões de anos, que alberga no seu topo um santuário mandado edificar por um guru religioso no século XII, dedicado aos Nats.
O seu topo dista da base uma subida de 777 degraus, rochedo acima, como um cogumelo cujo chapéu demandássemos.
Como local de peregrinação, exige-se sacrifício, pena, esforço.
É uma via sacra, de redenção e penitência, a que se fazem todos ... crianças, velhos, novos, anciãos mesmo, mais carregados do que autónomos.
Não se questiona se se consegue ou não.  É imperativo subir, pagar promessa, angariar protecção, oferecer ... flores, frutos ... doar dinheiro ... mesmo o que não se tem ...
Afinal, são todos penitentes ...

O nome Popa vem de Puppa no idioma páli / sânscrito, significando flor, e Nats são espíritos que fazem parte da crença popular de Myanmar, desde a sua fundação pelo primeiro imperador.
Os Nats precedem mesmo o Budismo, introduzido no país vindo da Índia, e que é a religião predominante.
Acredita-se que os espíritos, almas ou Nats, têm capacidade de ajudar as pessoas ( provendo-lhes dinheiro, saúde, amor e outros ), ou podem, ao contrário, atrapalhar-lhes as vidas, causando-lhes mesmo, a ruína.
Há que apaziguar estes espíritos, com festivais místico-religiosos, que ocorrem anualmente em Agosto, em todo o país.

Ao Monte Popa, situado no centro da Birmânia, na região de Bagan, acede-se, como disse, por aquela estrada empoeirada, de vegetação ladeante seca e escassa, de asfalto precário, sem limites que a definam.
A temperatura atmosférica chega a atingir quarenta e muitos graus, para uma humidade excessiva.
Chuva, cai pouca, mesmo na monção.
É um cenário dantesco de abandono e solidão, estranho, que incomoda e fere.  Gruda nos olhos, mas sobretudo no coração !
É que é ali, naquela paisagem de terra queimada e de destruição, debaixo de abrigos improvisados com galhos secos entrelaçados, que elas estão !

Elas, são figuras esquálidas, tão ressequidas como a paisagem, enegrecidas pelo pó seco que se levanta à passagem dos veículos, encolhidas, embiocadas em andrajos que as cobrem desde a cabeça, na defesa de um sol que não dá trégua.
São bichos enrodilhados sobre si mesmos, que parecem adormecidos, acocorados no silêncio e na solidão.  Solidão de gente, solidão de miséria, solidão de fome e de pobreza ...
Muitos apoiam-se a cajados que os amparam.  São rostos "parados", sem expressão, sem vida, numa antecipação de morte anunciada.
Há velhos e velhas, muito velhos, deixados à sorte e ao destino, a quem o país não protege.
Há crianças também, muitas, por ali, acompanhando as mães ou os avós ...

"Acordam" a cada passagem de carro, de camião de peregrinos, de autocarro de turismo.
Erguem-se num salto, estendem a mão, acenam, suplicam, soltando uns gritos lúgubres e lancinantes ... e esperam, porque é também de tradição que lhes seja atirado de quando em vez, pelas janelas dos veículos que não param ... nunca param ... algum dinheiro, que aliviaria um pouco a má sorte ...
Quando isso acontece, digladiam-se, rolam na poeira, disputam fisicamente a parca esmola ...
E voltam de novo a ser sombras invisíveis, na beira da estrada ... naquela estrada da morte ...

O sol queima tudo e todos.  O ar é sufocante.  Mas elas, aquelas esfinges humanas, ali continuam ... sempre ... aqui, ali ... além ...

Será que os "Nats" os esqueceram nesta vida ?  O que será que Siddhartha Gautama lhes pregou, SER iluminado que foi, defensor dos valores, da humanidade, da justiça, da equidade ???
O despojamento, o desapego e a aceitação ... Afinal, talvez a aceitação seja o único sentimento possível, que ainda os mantenha vivos, naquela estrada da morte que são as suas vidas ... e em que eu tive vergonha de passar !!!...

... Pois "o ódio não termina com o ódio, mas sim com o amor " ... disse Buda !...

Anamar

quinta-feira, 18 de abril de 2019

" MIN GA LA BA " - Memórias de viagem




"MIN GA LA BA "  é a saudação de bons dias que nos é distribuída por todos os cantos de Myanmar.

Myanmar de seu anterior nome Birmânia, tem origem em Burma, que deriva de Burmese Bamar, a principal etnia do país.  Myanmar seria uma aliteração disso, sendo Burma a versão coloquial.
É mais um dos países situados no sudeste da Ásia , que acabei de visitar.

Fascina-me a cultura oriental, fascinam-me as belezas naturais e a tipicidade dos costumes, e fascina-me a forma simples e despojada como vivem.
A filosofia ou corrente espiritual que em predominância os norteia, o Budismo na sua vertente Teravada, tem valores e princípios que me interessam.  Nada têm a ver com a sociedade de consumo, material e vazia que motiva os ocidentais.
É uma sociedade humanista que cultiva o desapego e a felicidade na simplicidade.  Boas sementes darão bons frutos, e na vida, a lei do retorno encaminha este povo para melhores karmas, rumo ao Nirvana !

Sob temperaturas que rondam os 40º C e uma humidade excessiva, o cansaço instala-se ao fim de algum tempo.  Os dias começam bem cedo, e há que rentabilizá-los.

Myanmar é o país dos Templos dourados, dos Pagodes, das Stupas e dos Monastérios.
As cidades de Yangon, Bagan e Mandalay, foram os principais centros que visitei, sendo o Lago Inle o encerramento perfeito para o meu périplo.
Havaianas nos pés, roupa fresca e chapéu na cabeça, foi a indumentária adequada.
Lá, os homens usam "longhis", saias até aos pés, atadas na cintura, mais cómodas por mais frescas, em temperaturas demasiado elevadas, como referi.  Normalmente têm cores escuras.  As mulheres também as usam, embora prefiram cores mais garridas.
Pintam os rostos com uma pasta vegetal da Thanaka, uma árvore endémica. Ralam a madeira, e da serragem confeccionam a referida pasta, protectora da pele contra os raios solares.  Simultaneamente funciona como embelezamento, sendo-lhe desenhados motivos decorativos.

A Birmânia foi colónia inglesa até 1948.  Fora anexada pelos ingleses, em 1885, depois de três guerras.
Nesse período, a sua capital era Yangon ou Rangoon.  O líder do movimento independentista foi então o general Aung San, cuja filha viria a receber o Prémio Nobel da Paz em 1991, pela militância contra a ditadura militar imposta desde 1962.  Tem hoje 73 anos, estudou na Universidade em Deli, Oxford e Londres e o regime militar manteve-a em prisão domiciliária em Myanmar, impedindo-a de receber pessoalmente o Nobel, e ainda de acompanhar o marido, inglês, que viria a falecer de cancro, em Inglaterra.
Tendo-lhe sido negado o visto de entrada no país onde vive e onde continua a ter protagonismo político, se saísse, não mais poderia voltar.
Hoje é deputada e braço direito do presidente, embora neste momento não seja figura politicamente consensual.
A história de Aung San Suu Kyi, foi narrada no filme "The lady".

Como em qualquer um dos países asiáticos que já visitei, o trânsito é anárquico.  O transporte é feito preferencialmente por moto.  Nelas, transportam-se famílias inteiras.  Nelas, transportam-se objectos de dimensões inimagináveis, em equilíbrios de uma precariedade que lembram passes de verdadeiro malabarismo. As crianças vão à frente do condutor, segurando-se aos retrovisores, e as mulheres sentam-se de lado, atrás.
Excepcionalmente, em Yangon as motos não têm autorização para circularem.  Essa determinação adveio da ocorrência de um atentado político falhado, contra um general da ditadura.  O agressor fazia-se transportar de moto.  O atentado gorou-se, mas as motos foram então interditadas. Nas restantes cidades existem aos milhares.
Até à década de 70 a condução era feita à inglesa, ou seja, pela esquerda.  Hoje é feita pela direita, só que com o volante também à direita, pois grande parte dos carros são oriundos do Japão, feitos para mão inglesa.

A moeda nacional é o Kiat, sendo que 1 Euro vale aproximadamente 1700 Kiats.  O dinheiro circulante é apenas em papel.  Não existem moedas.
Qualquer compra é negociada e discutida acaloradamente.  Há que pechinchar !!!

Bagan é primordialmente a cidade dos Templos e das Stupas.  Já existiram mais de quatro mil.  Hoje, mercê do desgaste temporal e de terramotos ocorridos com frequência, erguem-se ainda assim, mais de dois mil.  As famílias constroem stupas em homenagem a Buda.  Dessa forma perpetuam o seu nome, e acautelam o karma futuro.
Os templos são esmagadores.  Com dimensões que nos deixam perplexos, são ricamente revestidos com folha de ouro, com placas de ouro maciço como o de Shwedagon com 99 metros, em Yangon, com madeira rendilhada, com pedaços de espelho em bordaduras recortadas, num trabalho com uma  maestria incapaz de ser descrita.
Neles se entra sempre descalço, e nos mais austeros, os ombros e as pernas devem ser cobertos.

A pouco mais de cinquenta quilómetros de Bagan, existe o Monte Popa, um mosteiro edificado no cimo de um imenso rochedo vulcânico extinto há 15 milhões de anos, que é dos principais centros de peregrinação e adoração de Myanmar.
Foi mandado construir por um guru religioso no século XII, em homenagem aos Nats, 37 espíritos / deuses, venerados, verdadeiramente adorados e temidos, que são fantasmas malevolentes e atormentados, como demónios ou duendes, que evoluíram de homens e mulheres com mortes violentas e dolorosas.
São capazes de influenciar a vida terrena, e como tal, devem ser tratados com reverência e generosidade, para trazerem sorte e prosperidade, o que significa que quem neles não crê, pode sofrer consequências terríveis.
São-lhes por isso deixadas oferendas de flores, frutos, dinheiro e litros de bebidas alcoólicas para que se apaziguem.
O Mosteiro de Popa,  Taung Kalat, ergue-se a 777 degraus do solo, numa escadaria por onde circulam famílias inteiras de fiéis, de todas as condições e capacidades físicas.  Crianças, adultos e velhos, quase carregados em peso, convivem escada acima com cerca de 2000 macacos Rhesus que proliferam ao redor do mosteiro.
Há um verdadeiro comércio parafernálio instalado, com vendedores de roupa e lembranças, com faxineiros que varrem ininterruptamente a escada totalmente conspurcada por lixo e dejectos dos símios, e que aproveitam para pedir doações.  Há todo um colorido dos trajes, dos néons e da decoração dos altares dos Nats, e há muito dinheiro em receptáculos de vidro ou mesmo colado às figuras dos espíritos.
Vive-se  um ambiente todo ele surreal !!!






Nos mosteiros,  os monges ingressam por opção ou por determinação de vida.  De facto, os mosteiros também são apoio familiar ( albergando muitos órfãos )  e social, já que a eles recorrem famílias de parcos recursos, normalmente agricultores,  gente do campo, buscando forma de educar e prover à formação integral dos seus filhos.
Pelas manhãs, os monges deixam os mosteiros transportando pequenos potes, e dirigem-se aos diferentes locais onde diariamente lhes disponibilizam os alimentos que deverão consumir numa única refeição, tomada até ao meio dia.  Depois dessa hora não ingerirão mais alimentos.
Vêm normalmente em grupos ou em filas, com os menores, à frente.   É a chamada "Ronda das almas".
A população garante a subsistência, aos monges de milhares de mosteiros de Myanmar.
Lá,  eles  estudam,  meditam,  rezam  e  também  brincam ... porque  muitos  são  apenas  crianças !

Nos templos são depositadas ofertas com velas, frutas, arroz e outros alimentos, como preito de homenagem a Buda.
Há famílias inteiras que peregrinam, e parecem "acampar" nos pagodes, numa "convivência"  com Buda ( tida como normal nas suas vidas ).
Em Shwedagon Pagoda há um altar com um Buda por cada dia da semana.  De acordo com o dia do nascimento de cada um, e utilizando pequenas canecas disponíveis, deverá banhar-se com água purificada, o nosso Buda correspondente, tantas vezes quantos os anos que temos, mais um, para que a bênção da vida se prolongue e acrescente.
Há templos em que as mulheres só se podem aproximar da estátua de Buda, até uma determinada linha que marca o espaço sagrado.  E há estátuas totalmente deformadas, pela deposição sucessiva das folhas de ouro que as revestem, em oferenda dos crentes.
As estátuas de Buda assumem as mais diversas posições ou "mudras".  As de concepção chinesa, representam quase sempre Budas sentados e extremamente obesos, enquanto que os Budas originários da Índia e do Nepal, realçam uma beleza mais feminina, com roupas colantes ao corpo, ressaltando a morfologia inerente ao género.
Por vezes, os rostos são pintados e as unhas dos pés e das mãos também.  É o que caracteriza por exemplo o "Buda Reclinado", com 70 metros de comprimento e 16 de altura, revestido a ouro, coroado com diamantes e pedras preciosas, existente no Templo Chaukhtatgyi  em Yangon.  Tem cores marcantes, manto dourado, rosto branco, baton vermelho, sombra azul nos olhos de vidro e unhas rosa.




Grande parte das estradas é feita normalmente pelas mulheres.  Umas, partem pedras até as tornarem em cascalho, outras, carregam-nas em cestas, outras ainda, espalham-nas na terra para que no final uma máquina as espalme, antes de ser colocada uma camada de alcatrão por cima.
Tudo isto, embiocadas em chapéus e panos protectores, sob um sol castigador.
A agricultura também é artesanal.  O arroz, que integra todas as refeições, é ceifado com foices, a terra arada com a ajuda de vacas ou búfalos, e podem ver-se carros de bois, carroças, manadas e rebanhos de cabras.

Nyaung Shwe fica no estado Shan, a leste de Myanmar e é a porta de entrada para o Lago Inle, um lago de água doce com 116 quilómetros quadrados, 100 Km de comprimento por 5 de largo.
Fica no meio de montanhas a quase 900 metros de altitude, e é alimentado pelas águas que delas escorrem.
Nesta zona vivem cerca de 70000 pessoas, as mulheres usam turbantes garridos, e nas suas margens encontram-se muitas das pequenas indústrias artesanais que visitei, bem como templos e mosteiros.
Phaung Daw U é um deles, com cerca de cem anos, Kyaun Khon Kyaung, o Mosteiro dos gatos saltadores, um outro, em madeira de teca, construído em 1855, segundo a arquitectura do Lago - construções palafitas assentes em estacas de bambu e com exclusivo acesso, por barco.
Neste templo um monge superior adestrou os muitos gatos que habitam o mosteiro, em malabarismos e acrobacias saltadoras.  Existem vídeos no youtube muito engraçados, ilustrando essas peripécias felinas.
Actualmente o monge superior responsável, baniu essas práticas, considerando-as antagónicas dos  valores e preceitos budistas.
Mas os gatos continuam a habitar o mosteiro ...









O Lago Inle é um jardim de jacintos de água.  À sua superfície, as pequenas flores atapetam tudo o que a vista alcança.
Os barcos dos pescadores, os barcos de transporte das populações e os de todos que sulcam o Lago, são em madeira, rasando as águas, com motor de popa.
Os pescadores e recolectores de algas do Lago, remam com os pés, equilibrando-se nos barcos, apenas com uma das pernas. Têm redes com uma forma característica, lembrando um cone invertido.
É um ballet dançado sobre as águas !!!
As algas servem para que, no próprio Lago, com a ajuda de estacas de bambu, construam plataformas fixas, sobre as quais, com fertilizantes, possam desenvolver-se as espécies necessárias à sua alimentação.  Nessas "hortas flutuantes" que têm que ser refeitas de 2 em 2 anos, cresce tomate, pepino, pimentões entre outros produtos.
As espécies vegetais desenvolvem as raízes para a água, sendo por ela alimentadas.  É a chamada "cultura hidropónica".
O Lago Inle tem uma população lacustre habitando em aldeias palafitas.  Cada casa tem uma escada até ao pequeno barco, único transporte no Lago.
A água, armazenada em depósitos em cada habitação, vem do centro do Lago, a uma profundidade de 5 metros, é tratada e utilizada para o uso das famílias.



Nas margens do Lago, visitei, como disse, pequenas indústrias artesanais em que os trabalhadores são preferencialmente mulheres.
Vi uma indústria de tecelagem, onde se fabricam peças lindíssimas, com a fibra extraída do caule da flor de lótus.  Igualmente se tece o algodão e a seda natural, essa, importada da China.
Vi a confecção de charutos artesanais, com casca de milho e papel, misturado com anis, mel, banana ou hortelã, colada com tamarindo, arroz e água.



Vi o fabrico de papel para criação de chapéus de sol, candeeiros e outros, adornados com flores naturais incorporadas, feitos da casca da amoreira.
Vi mulheres-girafa fabricando roupas com tecidos feitos das fibras de lótus também. São roupas e panos profusamente coloridos.


Ostentam no pescoço, nos braços e nas pernas, espirais de latão.  Pertencem às tribos Karen e são originárias do norte da Tailândia.
De acordo com a tradição local, parece que inicialmente esses anéis metálicos preveniam ataques surpresa, dos tigres.  Acontece que na zona onde estão sediadas as tribos de mulheres-girafa, não vivem mais esses felinos.  Apenas, a tradição perpetuou-se e continua a existir.
Trata-se pois, de uma questão cultural.
Aos nove anos de idade, já as meninas usam 13 anéis, correspondendo a um peso de quatro quilos, aumentando com a idade, o número de espiras que as envolvem.





A Birmânia tem riquezas naturais aproveitadas nas indústrias artesanais.  Tem ouro, prata, pedras preciosas e semi-preciosas em jazidas no subsolo. Tem madeira de teca e bambu usado nas mais variadas situações.
O trabalho em laca ( produto nacional de Myanmar, onde existem mais de duzentos ateliers artesanais, e em que a matéria prima vem da árvore Thitsea, cortada em tiras muito finas) , o trabalho esculpido em madeira, o trabalho em prata, em folha de ouro, em metal, a tecelagem de roupas e tapetes, entre outras, são algumas das principais indústrias artesanais, como já referi.

Sempre que visito um país estrangeiro não dispenso uma incursão pelos mercados locais.  Considero-os a mais genuína representação do povo.
Aqui também visitei alguns, e é sempre com fascinação que contemplo toda a explosão de cor, de cheiros, de sons, de costumes particulares e irrepetíveis, características de cada zona do globo.
É nesses espaços que se compreendem as rotinas, os hábitos, as vivências ... em suma, a verdade da vida de cada país !







Esta exposição já vai longa.
Quis com ela abrir-vos uma janela neste sudeste asiático, janela que permitisse ver de tão perto quanto possível, como foi ... como é !  Espero não ter sido excessivamente exaustiva nas explicações.

Para Myanmar, terra minha de acolhimento por alguns dias deste Abril de 2019, vai o meu ...
" KYEY ZU BA "  (  Obrigada )  !

Anamar

quinta-feira, 11 de abril de 2019

" QUASE LOGO "






Foi assim naquela madrugada ...
Saíste de mansinho, sem ruído, nos bicos dos pés e um sorriso no rosto, tenho a certeza.
Não havia necessidade de acordar ninguém ... até porque já nos despedíramos vezes sem conta, na certeza do reencontro ... um dia ... quase logo ...
Porque tudo é efémero e o tempo dos Homens é o que menos importa ... Esvai-se num suspiro !

Estavas cansada da caminhada ... que eu também sei, e afinal acabava de cumprir-se o ciclo, naquela madrugada.
Nesse dia chegaras e nesse dia haverias de partir.  Desígnios do insondável e do karma que carregamos.  Está escrito.  Desde sempre está escrito !

E agora, mãe, que já passou um ano, quero festejar contigo outra vez, o teu aniversário.
Quero ver-te de novo com o sorriso maroto com que apagavas as velas, com que fingias enfadar-te com mais uma foto, com a felicidade de teres os teus ... os nossos, à tua volta.
Agora que passeias pelos jardins dos nenúfares, das flores de lótus, dos pássaros nas ramagens ... solta como uma menina descalça que brinca de novo ... quero dar-te um outro beijo envolto no código de afecto e de saudade, que nós duas sempre conhecemos ...

A vida é isto, mãe !

Lá por onde andas, nas madrugadas iluminadas por sol de Primavera ... no espaço sidéreo de estrelas encantadas, aguarda-me em paz, pois um destes dias, voltaremos a ver-nos.  É quase logo ...
Até lá, continuas dentro de mim, e serás eterna, porque sempre o são, todos aqueles que não esquecemos ...

E tenho saudades, mãe  ... infinitas saudades !...


11 ABRIL  1921   -   11 ABRIL  2018


Anamar

sábado, 30 de março de 2019

" HOMENAGEM RECONHECIDA ..."



Tão estranho entrar no Pigalle e aquele lugar estar vazio !
E tudo tão aparentemente igual ao de sempre !  Igual, não ... porque aquele lugar continua teimosamente vazio !...

O Pigalle é o café de sempre, as horas são as de sempre e as pessoas habituaram-nos há muito, a ser uma "família" alternativa.
É um café com uma população "sui generis".  Um café "de velhos", dizem-me, com uma frequência mais ou menos fixa, por horas.
É um "ex-libris" da cidade onde vivo.  Um espaço com mais de sessenta anos, creio, em que as gerações vão passando, mas ele continua apostado em ficar.  Mesmo quando as crises se sucederam teimosamente no país, ele resistiu, apesar de parecer padecer de um anúncio de morte iminente.  Resistiu, de teimoso !
As conversas nos grupos de todos os dias, rondam muito inevitavelmente em torno da saúde ou da ausência dela, dos frequentadores.
Conhecem-se as histórias, quase sempre das maleitas, dos presentes e dos ausentes ligados aos presentes ...
Assim se criam laços de alguma proximidade e mesmo cumplicidade entre as pessoas.
Diariamente, quando entro, tenho três ou quatro mesas a cumprimentar.  E há realmente "tipos" bem carismáticos por ali.

Aquele "bom dia" da chegada e aquele "até amanhã" da partida, são garante da fidelidade entre os convivas.  São a certeza de que, "amanhã por aqui estaremos de novo" ...
E assim por cada dia que passa, por cada semana que transcorre.
Quase nos sentimos na obrigação de, prevista alguma ausência, não deixar de informar ... para tranquilidade dos espíritos.
"Até amanhã, não ... porque este fim de semana não estarei ... "

Por tudo isto, qualquer "desistência" ou "abandono", logo serão notados.

Têm aberto outros cafés na zona.  Mais novos, melhor qualidade, mesmo maior simpatia no atendimento.  Mas, muitos de nós entre os quais me incluo, parecem sofrer de um qualquer determinismo estranho, ou mesmo de um hábito tão enraízado, que o raio dos sapatos, ainda que sob protesto, sempre para lá nos encaminham !
Bem reclamamos, com a caturrice típica dos velhos.  Que é uma estupidez, que só podemos ser masoquistas, que até parece gostarmos de ser mal atendidos.  Que o que não falta são lugares mais merecedores do nosso dinheiro.  Que aquele ambiente catapulta-nos desavergonhadamente para uma "quarta idade" que ainda não merecemos ... e patati e patata ...
Há quem me diga ... " Credo ... qualquer dia só sabes falar de doenças !  Ah ... e de futebol...é verdade ! ( outro dos temas recorrentes, sobretudo na tertúlia masculina )  Por isso, corres sérios riscos de te miscigenares com o ambiente ! Não te acauteles, não !..." e sorriem com descaro ...
Depois há quem me diga debochadamente : " Bom ... amanhã vou ter contigo ao centro de dia ! "

Mas é verdade ... Não adianta.  Sou mesmo reincidente na coisa, ao ponto de, quando o Pigalle não abre, me sentir desasada no destino.

Lá, escrevi muito.  Lá, li muito.  Lá, conheci, como disse, muita gente. Lá, também já chorei ... meio para dentro ... recatadamente ...
E de lá também lembro alguns, que na verdade simplesmente "desertaram" ... ainda que a contragosto, tenho a certeza.  E já vão sendo muitos.

Assim foi ontem.  Entrei e informaram-me de chofre, que aquele lugar ia mesmo ficar vazio.  Ontem, hoje e sempre ...
Assim ... sem que o pudéssemos esperar.  Com o despudor da morte  que não se anuncia, que não pergunta se pode entrar e vai logo empurrando a porta.
Não me parece nada justo.  Nem lógico,  com este sol que amanhece todos os dias.  Nada aceitável ...  Ainda por cima, fazendo-se desentendida com  o transtorno que causa, exactamente quando não estamos nada a contar com a sua visita ...

A Dra. Joana, pequenina, loira, de voz doce e baixinha como ela, porte aristocrático, nos seus oitenta e um anos, só faltava ao Pigalle quando as dores ósseas  da escoliose profundíssima que apresentava, lhe inviabilizavam de todo, a deslocação.  Com o apoio do braço da empregada e da bengala que lhe conferia o ar distinto e frágil de uma dama do século passado, aparecia, acompanhada pelo marido, seis anos mais velho.
Era alentejana, oriunda de Évora.  Fora professora, na área da Linguística.  Amava Pessoa e reverenciava Florbela.
A Dra. Joana tratava-me carinhosamente por "Margaridinha".
Deambulava por algumas mesas, queixava-se dos incómodos que a não deixavam descansar, e sempre tinha palavras amáveis, brincalhonas, bem dispostas, para espalhar ... "Portem-se mal ! ..." - dizia sorridente, em despedida, com ar maroto e maternal, na mesa onde o nosso grupo, de cinco ou seis, vinte anos mais novos, "jogava conversa fora" ...

Ontem, sem nos avisar, resolveu ir embora.  Afinal, Évora esperava-a.  A charneca em flor, aguardava recolhê-la no seu seio ... O sol ia a pino e a Primavera despontara em força.

Aquando da publicação do meu livro de poesia, "Silêncios", em 2017, a Dra. Joana escreveu o texto que transcrevo, com uma generosidade comovente :

        Margaridinha

" Silêncios" - poesia intimista e reflexiva, sugestiva, metafórica, "vestida" de uma natureza exuberante e personificada.
Plena de amor, carnal ou não, vencedor ou vencido, numa linha que nos lembra Florbela, mas na expressão desinibida do nosso tempo, a melodiosa poesia de Margarida é, a um tempo, afectiva, profunda, enérgica porque nasce dos sentimentos, das vivências, da meditação e reflexão, dos "Silêncios".
E perdurará na minha memória a "pintura" sintética, expressiva, emocionada e forte do Alentejo que também "será meu até à morte"...
Obrigada pelo que é, Margarida e um beijinho grande da

                                                                              Maria Joana Ribeiro
         
                                                                                     Julho 2017


Na pagela que a recordava, na capela funerária,  Pessoa dizia :

       " A morte chega cedo,
pois breve é toda a vida
O instante é o arremedo
de uma coisa perdida.
O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
não sabe o que alcançou.
E tudo isto a morte
risca por não estar certo
No caderno da sorte
que Deus deixou aberto.

                          Fernando Pessoa

28-12-1937     *     25- 03-2019

 ...... Quem melhor, o faria ??

Que descanse em paz, Dra. Joana ... no Alentejo que nos viu nascer !

Anamar

segunda-feira, 25 de março de 2019

" UMA FRESTA NO CAMINHO "




A " menina Ofélia " zurrava no pasto, em jeito de cumprimento ... Há quanto tempo eu não escutava a linguagem dos burros, à distância de uns metros de terra verdejante ?!...
Lá longe, naquele silêncio absoluto, apenas cães ladravam em algum monte próximo.  A brisa soprava leve e o céu era um deslumbramento só.  Totalmente limpo e escurecido pela ausência de luzes próximas, exibia uma poalha estelar com todas as constelações bem visíveis ...
Há quanto tempo  também, eu não admirava a maravilha que é um céu estrelado, sem horizonte que o limite ?!
E no firmamento uma super-lua arrogava-se, altaneira, dona da noite !
Era Alentejo, era o silêncio aconchegante de um chão que logo se assinala como nosso ... era a terra a amarinhar pelas veias que levam directo ao coração !...

Sendo finais de Março, com uma Primavera acabadinha de chegar, a temperatura mais lembrava um Verão quase a pino, com dias generosos, de céu azul, de sol luminoso e excessivamente quentes.
Os campos verdejantes, douram-se encosta acima, pelo amarelo do tremoço, agora em floração, mas também pintalgados pelo colorido de todas as flores que crescem por conta e risco.  São as macelas, os malmequeres, as rosas bravas, as estevas e os pampilhos brancos, os lírios roxos, as alcachofras e o rosmaninho ... é a urze, as papoilas, a dedaleira ... já  que  as  giestas  aguardam  o  mês  que  também as  nomeia , o  Maio,  para  se  abrirem  ao  sol ...
As cegonhas empoleiram-se a desníveis, pelos postes de alta tensão.  E são verdadeiras comunidades, as que vemos e ouvimos encarrapitadas nos ninhos.

O mar não está longe, embora dali ainda não se pressinta.  Haveria de vê-lo, mais tarde, numa romagem a memórias de infância e juventude.
E como foi gratificante e ao mesmo tempo surpreendente, revisitar lugares que o tempo não macula, uma vez desenhados na mente e no coração !
Apenas, muitos desses lugares, ou quase todos esses lugares já somente guardam, lapidadas nas ruas, nas igrejas, nas calçadas ... nos rochedos e areias ... nas ondas, no verde e azul das águas,  as memórias, somente as memórias, as quais têm a dimensão do que éramos então, do que vivíamos então, do  tamanho dos sonhos que dimensionávamos então ...

Vila Nova de Milfontes, do tempo das ruas sem luz, em que o Mira espelhava no prateado das águas mansas, a magia do céu estrelado também, no passeio nocturno ao ancoradouro dos botes para as Furnas ...
A Barbacã, mirando o outro lado ... "Rio Mira vai cheio e o barco não anda ... tenho o meu amor lá na outra banda ... Lá na outra banda e eu cá deste lado ... Rio Mira vai cheio e o barco parado " ...
A banda para onde se atravessava em barquinho a gasolina, pés chapinhando na água fresca e cabelos em desalinho ... buscando mar a sério, com ondas com vergonha na cara, e não aquela pasmaceira de águas fluviais, preguiçosas e sonolentas ... cá deste lado ...
As dunas, bem lá no cimo, onde uma rotunda maldosa, desenhou o apagão das nossas lembranças ... Eram dunas alterosas que demarcavam fronteira entre a praia da Vila e as praias do oceano, e que eram pistas de deleite, no rebolar encosta abaixo, quando as gargalhadas eram soltas e a despreocupação das vidas tinha o tamanho dos anos que detínhamos ...

"Era aqui ... do que me lembro, acho que só podia ser aqui "....
E para onde foi tudo ... mais de cinquenta anos depois ?..."
O coração aperta, a garganta emudece ... uma espécie de silêncio quase religioso medeia entre o hoje e o ontem, entre nós e todos os que já foram e pertenciam àquele retrato que perdeu o colorido e só mantém a patine dos tempos.  Sensação estranha ...

Anos adiante, a Ilha do Pessegueiro desenha-se no horizonte.
Porto Covo fala-me de outra fase da vida.  Já então com filhas na barra da saia, tempos despreocupados, ainda assim.  Muitos amigos, quase duas dúzias, dividindo as conversas, os risos, os banhos e os passeios na rebentação ... as brincadeiras, as cantorias, as lancheiras também ... as sombras dos mesmos chapéus, as futeboladas nas areias quase desertas, até as sestas, em dias inteiros de praia ...
Partilha de amizade, de cumplicidades, de companheirismo ... Criançada na partilha dos baldes, das pás, das conchas catadas na maré baixa ...
A Praia dos Búzios, a Praia Grande ... ou a preferida sempre ... a da Samoqueira, com os fios de água fresca despencando falésia abaixo, no simulacro de chuveiro de água doce, ou de fonte ali à mão, pronta a encher os baldes da pequenada ...
Continuam a correr ao ritmo dos tempos, ao ritmo das vidas ... mais ou menos intocados !
O "31" ainda mantém o nome.  No "Quadrado", como era conhecida a Praça Marquês de Pombal, ex-libris da vila, lá se mantém, mesmo ao lado da igreja, o bar que na altura era o único ponto de diversão nocturna, na calmaria do povoado.
Não pude deixar de esboçar um sorriso para dentro de mim.  Como eram doces todas aquelas lembranças !...

E pronto ... fui até ali, junto da paliçada,  corresponder ao cumprimento.  A "menina Ofélia", simpática e deferente,  honra, sem dúvida, os burros de quatro patas !
Até à volta ...



Anamar

quinta-feira, 21 de março de 2019

" PRIMAVERA OUTRA VEZ ..."




A Primavera começou ontem.  O equinócio anunciou-se este ano, a 20 de Março, quando uma super lua, a última super lua de 2019, coincidiu no céu com o seu começo.
Não há quem não fique feliz.  Afinal, é a estação que amanhece sorrindo, com uma braçada de flores e uma paleta de cores a tiracolo .

Já levo muitas Primaveras na minha vida.  A minha mãe viveria a sua última, no passado ano.
E nem dela mais, terá dado conta ...  Logo ela, que amava as flores.  Logo ela, que lhes sabia a conversa e os segredos ...
Eu, não.  Não sei sussurrar-lhes as minhas histórias, nem com elas dividir as mágoas, as dúvidas, os sonhos e as esperanças.
Mas extasiam-me, adoçam-me a alma, espantam-me pelo milagre, emocionam-me pela certeza.
Elas são garante de vida.  São promessa de recomeço.  São oferta sem cobrança, a única oferta sem cobrança que o destino nos faz ... a da renovação da Natureza, com a proposta da renovação pessoal de cada um de nós.
Saibamos ser capazes de o fazer !...

A Primavera é inspiradora de muitos lugares comuns poídos e gastos.
Os poetas cantam-na.  Os apaixonados também.  É a estação adolescente nas nossas vidas.  É poderosa, redentora e mágica.  Cobre-se do verde esperançoso de dias promissores e da luz clara de vida que recomeça ...

Quando ainda leccionava, a chegada da Primavera era uma manifesta lufada de ar fresco, na escola.
As hormonas fervilhantes, eclodiam nos corpos jovens, como o sol rompia no radioso azul do firmamento ... desbragadamente ...
Os corações aceleravam em resposta biológica, enquanto que as cabeças "no ar" desacertavam os comportamentos.  Havia, como na Natureza, uma ânsia de vida, um respiro de sonho, uma urgência de fruir, uma aposta confiante no amanhã.
Os miúdos ficavam "impossíveis", como costumávamos dizer, sorrindo ternamente benevolentes.
O romance perpassava, a incontenção dos corpos a cada canto, era o apelo da seiva circulante ... Mostrava-se, exibia-se, ostentava-se ...
As aves acasalam, os céus enchem-se do seu pipilar chamativo, dos seus gorjeios convidativos, dos seus trinados provocadores.
A copa do arvoredo compõe-se.  Os ninhos começam a construir-se ou a reconstruir-se.  Há que fazer a casa.  Vêm tempos generosos !
Sempre o apelo da vida, do renascimento, da continuidade, da eternização do ciclo !...

Dizem-me que estou pouco primaveril.  Que ando mais para tons outonais rasando o Inverno.
Dizem-me que pareço ter hipotecado muito, da irreverência e juventude que me caracterizavam.
Que, de repente ou gradualmente, penumbrei.  Que me estou a tolher por medos, enquadramentos meio desistentes e pouco combativos ... e me deixo ir ... simplesmente me deixo ir, com alguma apatia e indiferença, parece.
Admito que sim.  Mais admito, e penso advir  daí muito do meu estado de espírito, que tal se deva ao facto de ainda não ter decorrido sequer um ano sobre a partida da minha mãe, com o que se encerrou um processo violentamente desgastante  na minha vida , temporal e psicologicamente.
Costuma dizer-se que "elas não matam mas moem" ... e tenho para mim que o desgaste, é sempre um processo mais arrasador do que uma destruição cataclítica, já que um desgaste é efectivamente uma destruição lenta, corrosiva, com contornos cirurgicamente demolidores.  Intencionalmente demolidores.
E o ser humano não recupera tão fácil, desse processo.

De facto, a minha forma de encarar a vida  hoje, a minha capacidade de olhar o futuro, a minha resistência psíquica, foram, sem dúvida, profundamente beliscadas.  E inevitavelmente observo em mim, um endurecimento e um cepticismo face à realidade, que se me pinta com cores menos generosas, dando as ilusões lugar a certezas menos fantasiosas.  Digamos, que perdi mais um pouco da "inocência" que nos adocica a caminhada !

Mas ... a Primavera está aí.  O céu está azul e luminoso.  Os pólens irrompem nas flores que engalanam os campos, a brisa é leve, os pássaros cantam em melodias ancestrais e tudo continua harmoniosamente  perfeito ... tudo  sempre  continuará  por forma  a que o MILAGRE  se repita outra vez !...

Anamar

quarta-feira, 20 de março de 2019

" OCORREU-ME QUE HAVIA DE LHE DIZER ..."





Ocorreu-me que havia de lhe dizer ...
Mas,  dizer o quê, nesta altura da vida em que as palavras ficaram presas lá atrás e jamais se vão soltar ?!
Quem sabe um dia se soltem, como aquele combóio que, chegados à gare, já só vimos sumir na curva, lentamente ...
Acredito que quando não se sabe fazer melhor, passa-se adiante a imperfeição do que sabíamos.  Eternizam-se as faltas, os silêncios, os vazios.
O raio das palavras colaram-se como visco, na garganta, e os braços penduraram-se ao longo do corpo, inertes, incapazes, teimosamente incapazes ... sem serventia ...
E o tempo passou.  E as gerações andaram no tempo.  Adiante ...
Os colos arrefeceram de esperar, e os gestos pararam nas mãos ... paradas também.

Quando lhes desviámos a franja dos olhos ?  Quando nos falámos com tempo, com o tempo dos afectos esquecidos ? Quando gargalhámos de vontade ?
De repente a vida silenciou-nos.  Estranhou-nos.  Tornou-nos caramujos em conchas cada vez mais prisioneiras e cerradas.  A vida policiou-nos sem piedade.  E desabituámos o gesto, a linguagem, os jeitos.  Deixámos de saber fazer.  Houve um dia que deixámos de saber fazer ...
Não sei quando foi, mas foi !  Dobrou-se uma esquina insuspeita, de incapacidade, de sentido, de significado, que nunca mais conseguimos dobrar.
Ficámos de repente crescidos, demasiado adultos, sérios ... desconhecidos.   Foi quando receámos que entrar pelo quarto no aconchego da cabeceira, pudesse parecer piegas, talvez descabido já ... talvez forçado já ...

E se calhar não era nada disso.  Se calhar, eu ansiava por entrar, compor a volta do lençol, fazer aquele afago ... elas fazendo-se dormidas, talvez esperassem aquele último boa noite silencioso ... o até amanhã ... a certeza do nosso bem querer  ...
Mas creio que fiquei onde estava.  Fui ficando onde estava.  Não soube fazê-lo.  Por medo.  Acho que era por medo ... que se enfadassem, se incomodassem ... se percebessem grandes demais ... e já não houvesse espaço nas vidas ...
Não sei.

E o nó apertou-se até hoje, na garganta.  O peito reclama, doído.  Por que diabo havia de ter sido assim ?!

E pronto ... depois do depois, nunca mais houve outro depois ...
Perdemo-nos por aí.  Dispensámo-nos.  Talvez tivéssemos procurado outros colos, outras almofadas, outros braços que acalentassem.  Como se pôde.  Cada uma, como pôde.
Mas ficou a ferida, o buraco, o vazio, a distância, a frustração de não ter percebido que a vida se nos estava a escoar por entre os dedos.  A estranheza.  Ficou-nos a incompreensão inesperada da linguagem.  Ficou-nos o desconhecimento de já não nos conhecermos.  Ficou-nos a raiva de não entendermos  que então, ainda era tempo ...

Hoje, já não é tempo.  Tempo de recuperarmos o que foi.
Os degraus foram-se descendo.  Os terrenos ficaram baldios porque a sementeira perdeu a estação.
O doce dos frutos não apurou ... Afinal, não soubemos conversar as flores no caule ...

Ela chegou de viagem.  Uma semana longe.
Perguntei ... já mataste as saudades dos teus filhos ?
Do outro lado de um telefone silencioso ainda, ouvi ... oh... parecia que nos tínhamos separado de véspera.  Um beijo de fugida e pronto.  Salvou-se o mais novo.  Os onze anos ainda não lhe tiraram a ingenuidade, a importância do valer a pena ... Ou então, esse recusa crescer e aceitar as muralhas da vida ...

Ocorreu-me que havia de lhe dizer ...

Anamar

quarta-feira, 13 de março de 2019

" PORQUE A GENTE VAI EMBORA ... "




O céu está a esmorecer quase vermelho, iluminado e brilhante, como se por detrás da limpidez que o pincela, houvesse uma fogueira acesa em contra-luz.
Mais um dia que chega ao fim, nesta maratona que pressinto como que descomandada.  Os dias mal amanhecem já se deitam.  As semanas, mal começam já terminam, e dos meses, que dizer, se Março vai a meio e ainda ontem ... mesmo ontem, foi Natal ?!

É nítida a vertigem do tempo.  Todos falamos disso.  As pessoas sentem isso.

E com a corrida dos dias, os dias levam-nos os dias que ainda nos serão devidos ...
E porque depois da idade jovem, da idade madura, inevitavelmente nos chega a derradeira, aquela que procuramos ignorar, que fazemos de tudo para disfarçar e que recusamos encarar de frente ... eu vivo um pouco perdida e assustada.
Consciencializo ser uma idiotia esta atitude.  Mais consciencializo que desqualifico com isso, gratuitamente o tempo que vivo, assombrada por algo inevitável e irreversível, como o transcurso da vida, que sei claramente não poder jamais alterar ou desviar a contento.  E isso não é de modo algum uma atitude sensata e inteligente.
Mas, sinto-me um animal acuado, sem capacidade de reacção.  E angustio-me.

À minha volta, gosto de observar.  E o que vejo ?  Vejo desgraças e mais desgraças.  Vejo vidas complicadas e mesmo destroçadas, pelos mais variados problemas, de subsistência a saúde, que são de longe os mais irresolúveis e destrutivos.
É certo, que naturalmente convivo preferencialmente com pessoas da minha faixa etária, e depois dos sessenta, a vida é pródiga em nos dar algumas "ajudinhas".  Mesmo detentores de boa saúde e fisicamente capacitados, vamos claramente sentindo algumas limitações com que convivemos mal.
Eu, convivo mal.
Assusta-me particularmente a redução das capacidades que nos garantem a autonomia tão preciosa.  As restrições físicas, mormente as motoras, garante de uma vida com qualidade, assustam-me.  Convivi tempo demais com a degradação progressiva e desesperante da minha mãe.  Ela, que foi desde sempre uma fortaleza a todos os níveis, que foi uma pessoa que diariamente se transcendia, podendo, sem poder ... ficou inevitavelmente transformada num farrapo humano, física e mentalmente também.  Tudo num curto espaço de tempo de talvez uns quatro anos, no máximo.

Não será propriamente o partir, que me assusta.  Mas sim, o caminho a fazer até lá e a incógnita de que ele se reveste.
Estou convicta que a minha, foi a última geração que tratou de perto, os nossos idosos.
Hoje, os nossos filhos detêm vidas muito complicadas, ou mais complicadas do que há alguns anos atrás nós detínhamos.  As células sociais e familiares desumanizaram-se e desestruturaram-se, de certa forma.  A vida corre à velocidade da luz, a competição e as disputas laborais e sociais são ferozes.  Não há lugar nem vagar para os velhos, e para os que para lá caminham.
A sociedade é precária nas respostas.  Não as tem e as que disponibiliza, tendo qualidade e dignidade, não estão ao alcance das nossas bolsas.  E por isso, o "amanhã", é um fantasma inevitável e incontornável, nas nossas angústias e preocupações.
Ainda que queiramos aligeirar os pensamentos mais escurecidos, ainda que queiramos fazer de conta que isso terá tempo, que sofrer de véspera é dispensável e imbecil, e de nada adianta ... é mesmo isso ... apenas um "fazer de conta".  E esconder a cabeça na areia não resolve, já que não tenho de todo, perfil de avestruz !!!

Claro que estas dúvidas e angústias existenciais, serão transversais a toda uma sociedade que se inclua neste formato ... tenho a certeza.
E não obstante saiba que o melhor mesmo, será viver um "carpe diem" o mais gratificante possível, já que distingo o horizonte próximo sem ilusões excessivas e com a inevitabilidade real ... e porque, por natureza sou mais do "copo meio vazio" ... custo a alcançar esse desiderato de positividade, fé e ainda alguma esperança, mentalizando-me e enxergando o dia a dia com o positivismo aconselhável e útil.

E pronto ... não me alongo mais nesta reflexão que, acredito, seja comum a muita gente igual a mim ... mesmo aqueles que o não confessam e gostam de exibir uma postura despreocupada, de quem tem mais o que fazer do que pensar em tonterias ou idiotices.
E talvez estejam certos ...  Como eu gostaria de ser pragmática assim !...

Anamar

sexta-feira, 8 de março de 2019

" AS MINHAS TRÊS GERAÇÕES DE MULHERES "





Hoje, celebra-se mais um Dia Internacional da Mulher .
Mais uma efeméride "vendida", para obviamente vender ...

Não sei o que é ser mulher !

Sei que há diferenças notórias, substanciais e visíveis, entre os géneros, ou pelo menos, entre o arquétipo de cada um dos géneros.
É teórico que o Homem seja tido como racional, mais distante, pragmático, na colocação prioritária dos seus interesses, centrado funcionalmente, emotivamente mais volúvel, já que o Homem é reconhecido como fundamentalmente "visual" ( como se diz ), nas suas relações afectivas ... e a Mulher, como "emocional" ... menos "cabeça" e mais "coração" !
A mulher de hoje, é multifuncional, e penso que isto lhe foi determinado, pela necessidade vital de se distribuir, com competência, e em simultâneo , por meios familiares, profissionais e sociais.
A mulher é sensitiva ( não é em vão que se fala no seu sexto sentido ) .
É abnegada, esquece e limita-se a si mesma, em função da sua realidade envolvente, e dos que dela precisam, convive e é, com frequência, sustentáculo de dificuldades sérias, na sua própria estrutura familiar.
E supera-se, funcionando como esteio  dessa mesma célula, inventando e reinventando, um "modus vivendi", suportável.
Tende a ser uma boa profissional, de excelência às vezes, embora, estou certa, nunca a família ( mormente os filhos ), seja preterida, em função da profissão.
Porque isso é biológico, e genético.
Como tal, a exigência que faz à sua pessoa, para cumprir esse desiderato, traduz-se num sacrifício, globalmente acrescido, e numa transcendência de si própria .
Quando ama, a mulher dá-se, rende-se, entrega-se com satisfação, e pode mesmo  apenas exigir o mínimo retorno.
E nada do que lhe é pedido  constitui uma carga ou uma impossibilidade.
A mulher chega a ter o mérito, de segurar um amor incondicional  por um homem que não lhe corresponde em idêntica proporção ...
Mas não desiste ... desdobra-se, frustra-se com frequência, dói-se, morre aos poucos ... mas continua lá ( quantas vezes, culpabilizando-se ainda ... estúpida e injustamente ... Esta a única palavra que nos ocorre ... ) !

E chora ... A mulher chora muito ...
Mas chora no seu silêncio, no seu canto ... isola-se p'ra chorar.
Porque, muitas vezes, tira das lágrimas que lhe assomam, risos de fazer de conta ...
Colhe na ausência de esperança, uma poalha de luar  para seguir no seu caminho ...
Pinta na escuridão que desce, sírios estelares, que lhe iluminem o trilho a percorrer ...
Transforma os espinhos em tapetes mansos de musgos e erva verde, fofa e macia, para que, quem venha atrás, sinta o andar atapetado ...
Abre  os braços, como asas protectoras, como ninho, onde os ventos  de borrasca não derrubam os seus ...
Busca no desespero, força, mordendo os lábios até sangrarem, ditando um compasso de espera ao coração, para que ele adormeça e se aquiete ... até que a paz o invada !
É simultaneamente  uma fortaleza inexpugnável  e o aconchego duns braços, doce  e macio, onde acolhe o Homem, enquanto filho, enquanto irmão, enquanto amante, e mesmo enquanto pai, velho e alquebrado, sendo ombro e bengala ... ajudando-o  a  transpor a derradeira  ponte da sua vida !

Nos últimos tempos tem-se assistido a uma escalada alucinada de violência social contra as mulheres.  Desde logo no reduto do seu lar.  Frequentemente, pelas mãos do companheiro escolhido, ou de quem lhe deveria querer bem, protegendo-a, defendendo-a  e amparando-a.
Socialmente, o julgamento, a desprotecção e a irresponsabilidade assumidos  pelas autoridades competentes,  não só não demonstram a eficácia necessária às situações,  como ainda discriminam miseravelmente as vítimas destes processos persecutórios.  Descuram  e tratam de ânimo leve os maus tratos, a violência  e as sevícias indiciadoras de futuras  situações  mais graves  e  ameaçadoras, favorecendo e facilitando a actuação dos agressores, que infeliz e normalmente, acabam  consumando  lamentavelmente, os crimes.
Neste ano de 2019, que vai apenas com três escassos meses incompletos,  já morreram às mãos de carrascos frios e  monstruosos ,  13 mulheres !

Sou  charneira   entre três gerações de mulheres.

Atrás de mim, fica-me a minha mãe que infelizmente já não está entre nós  e  que foi tudo isto ... nos seus noventa e sete  anos de vida.
Geração forjada na dureza da terra que a viu nascer, com a força e a perseverança, que aquele Alentejo ( pouco generoso às vezes ), lhe conferiu !
Foi, até ao fim dos seus dias,  uma combatente, uma resistente, uma sobrevivente ... um exemplo ... uma Mulher !...

Depois de mim, tenho duas outras Mulheres, que na idade que já têm, ombreiam comigo, nos percalços, nas dificuldades, nas alegrias, nos momentos bons, mas também nos menos bons, desta nossa existência !
Já me couberam no cólo, já as guiei pelas mãos, com elas já ri...por elas, já chorei muito !
Continuarão comigo, se o Destino assim o quiser, até que sejam elas que chorem comigo, riam comigo, me alinhem os cabelos prateados dos tempos, me dêem as mãos, para que um dia, em passo titubeante, eu  possa  ainda  chegar  à janela, eu possa ainda, perder-me a olhar o sol, descendo no ocaso !...

Mais à frente está  a Vitória que caminha para os quinze anos e a Teresa que com os seus vinte e um meses ainda não guarda em si qualquer noção de género, na sua curta vida.
Irão  saber, forçosamente, aos poucos e poucos, qual o seu real lugar no Mundo  ...
Irão  perceber em si, um dia, este privilégio não partilhado, único, insubstituível, incomparável, de dar a vida e de dar a sua própria vida, junto ...
O privilégio de ter nascido Mulher !...

À Vitória, particularmente, eu saúdo !
Que ela albergue em si  sempre, um coração bem feminino ! Que nele, ela encontre  uma fonte de generosidade, de amor e transcendência  !
À  Teresa,  saúdo  igualmente, auspiciando  que  na  vida  saiba lutar e defender  o seu lugar e o seu papel, sem esmorecer perante as dificuldades, as injustiças, as adversidades  e  desigualdades  com que infelizmente ainda, a sociedade machista em que vivemos, faz a discriminação gratuita de género.

Eu, bem ... Eu devo ser simplesmente,  um misto destas raízes, um enxerto destes caules, a frutificação, do antes e do depois de mim, nestas formas imperfeitas, de se ser Mulher !...

Anamar

terça-feira, 5 de março de 2019

" NO REINO DO FAZ DE CONTA ..."





Carnaval cinzento, com alguma chuva miúda mas incómoda e aragem desabrida, contrariamente ao tempo que se tem feito sentir nas últimas semanas.  Está mais para quarta-feira de cinzas do que p'ra terça gorda ... O próprio tempo a brincar, ao que parece, ele mesmo, com os foliões !

Nunca gostei desta quadra meio ilógica e aparvalhada.  Desde miúda, fase da vida de riso fácil, folia desejada e inconsequência óbvia, nunca apreciei essa determinação calendarizada, de rir, brincar, disparatar e ser irreverente, só porque "é Carnaval e ninguém leva a mal " !
A busca de nos passarmos por um "outro" que não somos, de nos enfiarmos debaixo de uma pele que não é nossa, de fazermos de conta gratuitamente que agora é a hora de estar feliz e divertido ... nunca foi a "minha praia".
Em criança, inevitavelmente a minha mãe sempre me mascarava.  Era uma questão "institucional".  E sempre, da mesma coisa.  Ou era de sevilhana, ou de minhota ou de camponesa da Serra d'Ossa, em cujas faldas ficava a vila onde havia nascido.  Eram as indumentárias existentes à época, ainda assim, emprestadas por uma madrinha rica que podia dar-se ao luxo de as haver adquirido.
E todos os anos, os Carnavais tinham para mim, portanto, o mesmo "rosto".
Era uma chateação ter de me prestar a tais atribulações de vestimenta, penteado e maquilhagem, só para vir à rua fazer um pequeno desfile.  Não dava para o trabalho.  Acho mesmo, ou melhor, tenho quase a certeza de que a minha mãe se divertia com isso, bem mais do que eu ...

Os anos passaram e foi a minha vez de ser mãe.
Carnaval existe todos os anos, a tradição, incoerentemente parece meter-se dentro de nós, as famigeradas farpelas atravessaram os tempos e continuavam a pé firme ( com alguma picadela de traça na lã das indumentárias ) ... e as minhas filhas, igualmente sem entusiasmo excessivo ... foram as próximas "vítimas" !...

Ainda não existiam lojas de chineses, com toda a panóplia interminável de trajes de tudo e mais umas botas ... a  um  preço  baratinho  baratinho,  fazendo  jus  ao  descartável  da  coisa ( até para que não nos entediemos por repetições enfadonhas ) ... e portanto, a sevilhana, a minhota ou a camponesa da Serra d'Ossa  baixavam ao terreiro, e eram de novo, as opções viáveis.

A minha filha mais velha, desde sempre coquete e vaidosinha, adorava as peripécias.  Não reclamava dos puxões de cabelo a cobrir a palha de aço com que lhe arranjava volume para que a "peineta" não caísse, suportava quase sem pestanejar, a maquilhagem a rigor onde não faltava um sinal postiço e sensual na bochecha, colocava a mantilha com preceito e as castanholas nas mãos, não se agitava muito para não perigar o "boneco", e desfilava com toda a pose e compenetração devidas à circunstância.  E parecia não se enfadar.  Adorava a coisa !
A outra, desde sempre mais maria-rapaz, amofinava-se com tudo aquilo e não descansava enquanto não se desparamentava.
Resumiam-se portanto a curtas e rápidas incursões pelas mascaradas, as tentativas inglórias que eu fazia para que ela se divertisse.
Se divertisse ... achava eu, esquecida que parecia estar dos meus "padecimentos", na curva do tempo  ...
Idas a corsos, desfiles e afins, ocorreram algumas poucas vezes, e ainda assim nunca por iniciativa pessoal.

Hoje, acho que nem sequer já os netos mais velhos se mascaram.  O António, nos seus quase 18 anos, sempre muito contido e formal, penso que só em bébé a mãe o terá levado à certa ...
A Vitória, quase com 15, naquela fase chata e incontornável de uma adolescência espartilhada e controladora, deve achar toda esta transgressão um "non sense" para o que não tem paciência ... aposto ...
Resta o Kiko ... Por acaso não perguntei, mas talvez ele, com os seus onze anos, galhofeiro, super bem disposto e em constante brincadeira ... ele que leva a vida num permanente Entrudo ... talvez ele tenha optado por um qualquer boneco caricatural da sociedade actual, para se travestir. É o seu estilo preferido ...

Agora é a vez da Teresa.  Essa, com vinte e um meses, ainda não disse nem sim nem não ... Mas tanto quanto pude ver, não reclamou ou sequer tentou  tirar  as asas e a saia de uma borboleta linda, com que festejou a quadra, na escolinha.  Espantosamente, nem arrancou da cabeça, como faz impacientemente com os ganchos do cabelo, a bandolete que compunha o traje.  E parecia bem compenetrada do seu papel, rua adiante ...

Bom, isto está mesmo quase a terminar.  Amanhã começa a época cinzenta e descolorida do calendário.  A Quaresma, vivida nos preceitos religiosos, fecha as portas à desbunda, à irreverência e ao "pecado" dos excessos ora cometidos.  Entra-se na penumbra, na reflexão e na penitência.
E a loucura destes três dias em que estranhamente o ser humano se transfigura, se camufla, se omite atrás de uma máscara, ansiando o que não é, não foi e eventualmente nunca será ... a alucinação global, em que mergulhados tudo se nos permitiu, está a findar.
"Se a vida são dois dias e o Carnaval, três", houve que dar vazão aos desvios, aos excessos e às transgressões que se permitiram atrás de um disfarce.

No calor do Rio, ao que vi, a liberdade permitida da quadra, foi instrumento que se usou não só para a festa, a folia e a alegria solta do povo, mas também para homenagens e  protestos.
Felizmente, a manifestação de uma consciência social, a dizer no sambódromo o que não pode ser dito neste momento, a lembrar o que é arbitrário e perseguido, a despertar o que está silencioso e censurado, eclodiu e desceu à Sapucaí e ao mundo, mostrando os desmandos de uma sociedade silenciada, manietada, discriminada e ameaçada !

Em Veneza, o carisma barroco do seu Carnaval, "clean", civilizado, com a habitual "politesse", desfilou para turista ver ... como sempre !

Por cá, as sátiras sociais nos variados Carnavais do país, nos carros alegóricos, nos cabeçudos, matrafonas, zés-pereiras, não pouparam à tripa forra as figuras públicas na berra, passíveis de serem ridicularizadas e denunciadas. As "charges" políticas e sociais não poupam ninguém.
Aqui também, o cariz social  subrepticiamente aproveitado para se dizer o que depois se calará ...


E amanhã, a máscara ... esta ... ( não a de todos os dias ), cairá definitivamente, arrumando-se por mais um ano ... Afinal, foi mais um Carnaval que passou !...




Anamar

domingo, 3 de março de 2019

" SOLILÓQUIO NA MATA "





A melhor aproximação que consegui  à  Natureza ( eu, que vivo no betão, como já disse vezes demais ), é a caminhada que faço pelo meio da mata.
A mata, a bem dizer, é só uma matazinha que remata o concelho de Sintra, aqui nas imediações da Amadora.  Delimita os terrenos de um e outro lado, e por isso é desfrutada pelos munícipes de ambos os concelhos.
Em dias como os de hoje, em que a chuva anunciada pela meteorologia do meu telemóvel deu lugar afinal, a mais um dia de céu azul, sol claro e brisa primaveril, poder caminhar na mata, sente-se como uma bênção, privilégio de estar vivo.
Nesta altura do ano e com uma Primavera que se anuncia por antecipação notória, fruto das temperaturas elevadas que se têm feito sentir, a mata é particularmente convidativa.  O verde é mais radioso do que nunca, a vegetação despida começa a ostentar borbotos promissores pelos caules acima, flores modestas eclodiram por todo o lado, os pássaros, porque já é Março, mês de acasalamentos, trinam, gorjeiam e mostram-se saltitantes de galho em galho, as borboletas rodopiam pelas corolas e os zumbidos das abelhas soam e fazem-me sorrir ...  A  Natureza, uma vez mais não nos defrauda, e o seu ciclo de vida repete-se generoso, sempre !...
Afinal ela é uma permanente jarra de flores frescas ... quando umas morrem nascem outras ... quando não é época dos jacarandás, é tempo das mimosas ... se as madressilvas  não perfumam ainda, as glicínias inebriam ...Nunca a nossa casa deixa de estar florida !
A brisa, nem de mais nem de menos, mais afaga e acaricia do que incomoda.

E depois há o silêncio.  Silêncio daqueles ruídos perturbadores e desagradáveis, que os humanos causam ... as vozes, os carros, as máquinas ... tudo quanto nos agrada dispensar nestas circunstâncias.
E há quase ausência total de gente. Lá se encontra um ou outro, correndo, passeando os cães, ou simplesmente usufruindo do remanso e do ar puro que a mata oferece. Mas poucos ...
E há gatos sem dono que por ali vivem, certamente na maior felicidade do mundo.  Almas caridosas deixam-lhes comida e água, e depois eles têm a pradaria à volta, toda por sua conta.  Têm na dieta os roedores, rastejantes e voadores que por lá proliferam e que lhes desafiam os ímpetos felinos da caça.
Devem ser felizes, gerindo a sua vida livre e despreocupada !

E no silêncio que se "ouve", estou eu comigo mesma, nos monólogos surdos ou mesmo nos monólogos a meia voz, porque não há objectivamente nenhum perigo de me acharem tonta por falar sozinha ...

Hoje, eu pensava como a vida se revela  uma surpresa constante.  É uma história nunca terminada, com voltas e curvas, e esquinas e cotovelos que sempre escondem em jeito de caixinha de surpresas, o que vem adiante ...
O segredo é "bebê-la" aos poucos e poucos, em pequenas doses, sem afobações ou exigências.  Sem expectativas ou ansiedade.   Apenas recebendo-a tal qual nos chega.  E esgotando-a sempre, para que nunca possamos lembrar com lamentação que o não fizemos.
Estou numa fase da vida em que os grandes sonhos já foram sonhados, e concretizados ou não.
Uma fase em que procuro simplesmente viver, momento a momento, com a paz possível, com a percepção clara de que raramente o idealizado se atinge ... como o idealizámos.  Seja connosco, seja com os que nos rodeiam.
E assim, é grato relembrar o que foi, se nos aqueceu o coração.  E não deixar que o que não foi, nos azede a alma  e contamine o espírito.  Tudo foi o que tinha que ser e não mais do que o que tinha que ser.  E não adianta rebelarmo-nos contra essa entidade abstracta que é o destino !
Por isso, tomo-o como colheradas de um xarope cicatrizante, curativo e regenerador.  Sem utopias ou veleidades extemporâneas.
Percebo que deverei andar, se não posso correr.  Que deverei sorrir se não consigo gargalhar.  Que deverei tentar estar bem com o que tenho ... com o que vou tendo.
Porque tenho muito, sem dúvida.  Vou acordando todas as manhãs, vendo com os meus olhos, ouvindo com os meus ouvidos e andando ... caminhando com as minhas próprias pernas, gerindo-as, seja lá qual for o ritmo.
O tempo, agora, é o meu tempo, e devo aceitá-lo como ele é.
Os sonhos, agora, já não são grandes metragens.  Já não me sufocam a garganta ou aceleram o peito, além da conta.  Já não podem vestir-se de utopias inalcançáveis.  São amenos, serenos, lúcidos e dimensionados.  São chuvas frescas no Verão, ou quietude de sombra em canícula castigadora. E por isso devem adoçar-me o coração.  E não, magoar-me o espírito.

E isto será o equilíbrio.  O equilíbrio possível, sem deslumbramentos, presunções ou alienações ...
Isto será  a vida possível, quando o sol talvez  já demande o ocaso ...

Anamar