segunda-feira, 20 de outubro de 2008

"ÁFRICA - RECORDAÇÕES DE ANGOLA"



África também fez parte do meu percurso...

Cheguei a Luanda ao romper de um dia de meio de Novembro, no já recuado ano de 1970.
Saíra da Portela noite dentro, no dia anterior ; abandonara Lisboa com um quase Inverno instalado, e quando na manhã seguinte, a escotilha do avião da Tap se abriu, e aquele sol, aquela cor, aquela luz e aquele calor se enfiaram por ali adentro, sem pudores ou medos de que a intensidade do seu brilho nos cegasse ou o bafo da Terra nos sufocasse, eu percebi que estava em África...

A boca duma "fornalha" tinha-se escancarado, o calor pegajoso já se nos colara à pele, o vermelho da terra e da flor das acácias era indiviso, e os cheiros adocicados invadiam-nos as narinas...

Pela primeira vez, senti, cheirei, "apalpei" outro continente...a África do meu imaginário começava a desvendar-se perante mim, com todos os seus mistérios, os seus fascínios, o seu carisma singular.

Quem pisa esta terra vermelha de argila ou de sangue, jamais a esquece...sempre diz quem lá nasceu ou viveu.

Quem viu estes pôres-de-sol de laranja e roxo, inconfundíveis, jamais encontrará outros iguais...

Quem perscrutou estes horizontes a perder de vista, em lugar algum do Mundo, vai respirar a liberdade que os atravessa...

África não conhece dono, porque aquelas terras nunca poderiam ser espartilhadas.
Não conhece fronteiras, porque nela não há limites para o olhar do Homem...
África nasceu para ser livre, como os animais na savana, como os pássaros que cortam o firmamento, como o tronco do embondeiro desgrenhado, que nenhum abraço humano é capaz de rodear...

E tentar acorrentá-la é um gesto de violência...
Tentar manietá-la...cortar as asas a um pássaro...

E vivi dois anos em Luanda, uma cidade linda, luminosa, despreocupada, provocadoramente irreverente.
A irreverência duma jovem semi-nua em espreguiçamento sonolento.
Uma cidade que descia e se deitava na baía de cores inigualáveis ao nascer e ao pôr do sol.
Uma cidade que se adornava, vaidosa e sensual, quando o rubro das acácias explodia ou quando os jacarandás floriam...

Lembro dessa cidade, as formas generosas e a exuberância das suas negras no requebro do "semba", da "kizomba" ou da "rebita"...
Lembro o colorido do despudor das suas vestes e as suas gargalhadas soltas, no mercado de S.Paulo...

E lembro a Mutamba, a Ilha, a Sagrada Família...a Vila Alice, o Miramar (com o filme no écran e as águas escuras da baía iluminadas pelas cores da noite da cidade, em fundo)...
E lembro a fortaleza e o Forte de S. Miguel na estrada do Cacoaco e a imperial geladinha à nossa espera...
E a barra do Quanza e o Miradouro da Lua, e os bifes do Império, saboreados no terraço, com Luanda aos pés...
O mercado de S. Paulo e o de Quinaxixe, a messe da Força Aérea e as carismáticas moelas em tardes de domingo; o cinema Restauração, e os musseques ali ao lado...
e as "moças" do Bairro Operário...e o pino do calor e a época do cacimbo...e as arcadas do Banco de Angola e a Marginal... sempre a Marginal, onde tive o privilégio de morar...ali, num terceiro andar, num terraço bem por cima do Café Zero.

À minha frente,os coqueiros a bordejar as águas, a brisa da tarde a cair ou o fresco do despontar do dia, a alvoroçarem-me os cabelos e a afagarem-me o rosto.
Á minha frente as cores de fogo, do sol a descer lá p'ras bandas do porto...
Os paquetes acostados, acenando-me saudades de Lisboa...e as gaivotas, nos seus gritos estridentes, acompanhando onda a onda as traineiras em saída para a pesca, ou "acossando-as" à chegada, pela madrugada, quando o "carregamento" era generoso...

Esse "flash", por mais anos que passem, por mais vida que corra, tenho-o tão vívido na minha mente, que parece que sinto ainda o embalo do marulhar modorrento das águas na margem...porque, afinal, como dizia um velho pescador africano - "Quem bebe a água do dembo, jamais esquecerá Angola"...

Anamar











4 comentários:

Anónimo disse...

Olá Ana:
Sabes que nasci em Angola.
Nasci na Gabela, Cuanza-Sul, terra do café.
A minha mãe nasceu na Maianga, na Avenida António Barroso, pouco depois do sinaleiro.A família da minha mãe percorreu Angola toda desde 1928.Da parte do meu pai foram para lá mais cedo.
Durante a primeira guerra.O meu avô foi primeiro cabo no forte de madeira da Baixa do Cassange em 1916.
E eu cresci ali.Ia apanhar peixes no rio Mazungue que passava dentro do meu quintal.Na Gabela.E via os filmes do Tarzan no cinema da minha infânçia.O Cine-Amboim.
Será que estou velho e a realidade é o que passou.Quando tanta coisa há agora bonita, será que eu vivo o passado?Uma coisa eu garanto.Não pertenço à geração dos Morangos com Açucar.

Beijos

Fernando

anamar disse...

Fernando
Sei que és bem mais novo que eu...mas espantosamente temos algo em comum...
Seguramente também não pertenço à geração dos Morangos, nem a outras "gerações" com que todos os dias me cruzo!
Costumo dizer que vivo desenquadrada e mal inserida numa "fatiota" que não me serve muito bem...qual roupagem que me tivessem destinado e não é bem o meu número.
Por isso, penso que deveria ter pertencido à geração do meu pai (que morreu em 92 com 90 anos), ou então à das minhas filhas.
Qualquer uma das hipóteses era mais perceptível para mim, do que ter de me mexer com valores, fronteiras, metas e objectivos que não aprendi, conheço com dificuldade e interiorizei com esforço...
EU, sim...estou velha seguramente...ou então estou numa de refutar muito do presente...ainda que me digas "que há tanta coisa bonita, agora"...
De qualquer forma, ainda bem que no meu post revisitaste a tua infância...e essa acompanha um homem até à morte, tenho a certeza...
Beijos
Anamar

Anónimo disse...

Olá
Adorei a descrição ...quase que me senti no outro hemisfério. Não me lembro, com muita pena minha, da minha cidade natal...
Obrigada
beij
Maria Romã

anamar disse...

Maria Romã
Uma beijoca.
Eu estive em Luanda adulta, embora bem novinha, como sabes. Daí o lembrar tão presente de tudo, com a nitidez com que procurei descrever.
Porque recordando-se, vive-se outra vez...
Anamar