segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

"MEA CULPA ou A IMPERFEIÇÃO DO SER HUMANO...."

Ontem encontrei a Cristina.
A Cristina foi minha aluna seguramente 3 ou 4 anos. Uma rapariga franzina, aparentando ter muito menos idade que a que realmente tinha (soube depois), julgo ter traços de indiana, um ar enfezadito, uma displasia da anca fazia com que não andasse com normalidade, e tinha permanentemente um semblante parado, parecendo pedir desculpa por existir.
Andava sempre só, falava muito baixinho e pelas roupas, via-se ser pobre, oriunda de família necessitada.
A Cristina andava sempre "demodée", sem marcas ou roupa chamativa, no Inverno com um gorro de malha meio ridículo, para que se aquecesse do frio das noites, visto que a Cristina frequentava o curso nocturno.
Soube depois que trabalhava o dia inteiro, desde cedo, num lugar de frutas e legumes e também sei que o pai a vinha recolher à porta da escola, à saída, numa carrinha velha, não sei se por morar longe, se por prudência.

A Cristina foi o caso mais problemático, em termos de inteligência, que me passou pelas mãos.
É certo que me apanhou em fim de carreira, em início de desmotivação, e ela representava para mim uma negação total na aprendizagem, uma espécie de parede hermética para onde eu tentava "despejar" Química, que fazia total ricochete, e voltava para trás.
A Cristina não entendia nada de nada, e era um sacrifício descomunal não ter qualquer feed-back do seu lado, ter de encará-la com uma vontade imensa de lhe dizer: "não adianta, não percebe que não vai conseguir nunca? Para quê continuar a insistir nisto, se vem aqui martirizar-se, martirizar-me, apanhar chuva e mau tempo, para nada?"

Por vezes havia noites em que a Cristina era a única utente da turma. Se ela não aparecesse, eu podia vir para casa mais cedo....mas ainda assim, não faltava.
Nessas noites, eu ficava "piursa". Dava-lhe umas fichas para fazer, sempre as mesmas ao longo dos 3 ou 4 anos, as quais também já tinham acopladas as respectivas correcções, e dizia-lhe: "Cristina, sente-se aí e vá fazendo as fichas. Se tiver alguma dúvida, eu estou na secretária."

Havia certas noites em que a empregada já brincava comigo: "Hoje ainda não vi a sua amiga!"....
E eu dizia-lhe: "Reze, Amélia, reze...." E quando eu já vinha de trouxa "aviada", aí chegava a Cristina com aquele andar manquejante, pronta para a aula.
Fazia as mesmas perguntas 3 ou 4 vezes por noite, e sempre que queria fazê-lo, eu tinha que apurar o ouvido, porque a vozinha parecia vinda de outro planeta...no entanto sorria, sorria sempre...

Agora não lembro ao certo, mas creio que sim. Ela terá acabado a Química, até porque o plano de estudos entretanto mudou, à custa de  lhe dar 2 e 3 vezes o mesmo teste, com correcção e tudo, e em desespero de causa lhe ter dito: "Cristina, fazemos assim: destas 5 fichas eu tiro 2 exercícios de cada, e será isso que sai no teste. Se tiver 9,5, isto está feito"...

E foi assim...um alívio e o fim da tormenta....
Também, para que queria a Cristina saber Química, para pesar laranjas e bananas na frutaria, logo às 8h da manhã??

No fim do ano, o correspondente ao 12ºano., a Cristina veio agradecer-me a ajuda que lhe dei...e aí, a minha consciência deu o primeiro salto...
Se ela soubesse como eu pedira a Deus e às almas, para que ela faltasse....se ela soubesse o engulho que me dava no estômago, quando  pela décima vez me colocava a mesma dúvida....se ela soubesse quantas vezes tive vontade de lhe dizer: "Vá ser caixa do Continente, vá lavar escadas....não percebeu ainda que não tem neurónios para isto e está a perder tempo?"

Mas não podia, obviamente dizer nada disto....

Dois ou três anos passaram....
Ontem eu ia para casa. Junto à minha casa há uma interface de autocarros e respectiva fila para os mesmos.
E eis senão que dessa fila, salta a Cristina, com o seu sorriso tímido, com o seu ar franzino, quase a pedir a tal desculpa de existir e diz-me:
"Dra. Margarida, ando para lhe telefonar para lhe pedir se toma um cafezinho comigo. Ainda aqui tenho o seu telemóvel!" (e verificou...).

Bom, como se costuma dizer, caíu-me tudo....senti um nó tão grande na garganta que as lágrimas me afloraram os olhos e pensei: "arvoro-me eu como tendo desempenhado o meu papel de docente, o melhor que sabia e podia, arvoro-me eu em ter sido disponível, atenta, mãe, amiga, confidente, solícita para com os meus alunos, dando-me por inteiro, sempre....."

"Mea culpa Cristina....o ser humano é muito imperfeito, quantas vezes convencido que o não é. O convencimento e a empáfia são defeitos graves....mas você acabou de me dar uma lição de vida, que me deixa envergonhada.....a da HUMILDADE....Procurarei não esquecer nunca mais!!!...."

Anamar

3 comentários:

Anónimo disse...

A Cristina também foi "minha". Senti o mesmo e fiz com ela o mesmo para que finalmente tivesse o "êxito" desejado. No último dia comigo, quando já sabia que tinha feito a disciplina, revelou-se e, entusiasmada, falo-me dos trabalhos manuais que adorava e andava a fazer num curso dessas coisas.Não voltei a vê-la.
Beijinhos
Malmequer

Anónimo disse...

Também foi minha aluna. Acabou o
12º comigo...
Boa miúda, muito tímida e com muitas dificuldades.
beijinhos
Maria Romã

anamar disse...

Afinal todas sentimos um pouco os escolhos por que ela e nós tivémos que passar....Talvez tenha valido a pena....porque a Cristina continuará seguramente a fazer trabalhos manuais....e a arrumar caixas de fruta!!!!
Beijos
Anamar