sábado, 26 de janeiro de 2013

" ELES NÃO COMETERAM NENHUM CRIME ... "



Fui ontem visitar o meu "afilhado", o Rudy, um cão que vivia num bairro social perto de Telheiras, no prato de uma árvore, dia e noite, chuva e sol, sem sair do mesmo sítio ... vá-se lá saber porquê !

Histórias nebulosas de vida, têm sempre estes animais que vivem no abandono, histórias nunca ou raramente confirmáveis.
O Rudy não é um cão velho, estima-se.  Apenas, como um animal totalmente negligenciado pelo destino, é velhíssimo fisicamente.
Tolhido pelas artroses, mal se locomove. É um velhinho manco, que apoia alternadamente  as patas traseiras, como que a dividir a dor que não conta, ora numa ora na outra.
Tinha e tem uma dermatite grave, que lhe forma crostas, quase uma calosidade no lombo, atrás ;  não foi sequer fadado pelo destino, em beleza.  É normalíssimo, escuro, porte médio-grande, pelo curto de cor meio indefinida, entre o preto e o cinzento.
Quem o olha, lembra o focinho de um Husky, e tem uns olhos doces, embora distantes e indiferentes.

O Rudy é Rudy, como podia ser outra coisa qualquer, como se calhar já o foi  n  coisas, por cada mão por que tenha passado ...  Da oficina de bate-chapas, de onde parece ter sido "despejado" quando a mesma fechou e o dono o esqueceu,  ou de outras mãos, outros destinos ...
Quando o chamei, à entrada da box onde se encontra na União Zoófila, achei-me ridícula.
É como se de repente, alguém resolvesse que eu me chamaria Joana em vez de Margarida, assim, por resolver ... mais um baptismo por misericórdia, na sua vida miserável ...
Que direito tenho eu de lhe chamar Rudy?

Se eles pensassem, se registassem, da  mesma  forma, com os  mesmos sentimentos  que assolam  os humanos,  perguntar-se-iam : " Quem é este ou esta, que hoje me chama com o nome que decidiu, só porque decidiu, e não pelo nome que me deram quando eu era um cachorrinho ... Sim, porque eu também fui um cachorrinho ?!"

E lá, no território do abandono, eu senti-me tão pequenina, tão ignóbil, tão envergonhada por pertencer à raça humana, que reduz aqueles seres, àquela desgraça, àquele simulacro de vida ...  que aquele pesadelo me matou por dentro.

Em corredores de dois metros de largura, as boxes desenrolam-se lado a lado, como celas de prisão, com redes à frente ;  têm uma parte coberta, escura, protectora, ao fundo, e uma descoberta, talvez com quatro metros quadrados ... não sei estimar com segurança ... um quintalzinho com chão de cimento, digamos.
Por cada box estão dois animais ;  nas maiores, vários animais ...
Alguns andam soltos por ali, com as camisolinhas vestidas, à chuva ou ao frio, mas soltos ...
Seguem os tratadores para a frente e para trás, recebem deles uma festa fugidia, ou ouvem quem passa invariavelmente dizer ... "coitadinhos" ...
Entre dentes, porque não é correcto dizer-se que são "coitadinhos".
Logo à partida,  o ser dito, tem só por si uma carga de hipocrisia.   A maioria das pessoas vai, vem, não faz muito mais.
Apazigua as consciências, levando bens materiais que efectivamente são necessários, mas não adopta os animais, não os traz consigo ...
Disponibiliza-lhes algum amor, ou algum carinho, ou alguma atenção, enquanto com eles está.  E volta ... procura fugir rápido, daquele "circo de horrores".
Procura esquecer rapidamente o espectáculo, os sons, os cheiros, a desgraça, o desconforto ... porque lhe são incómodos !

Eu sei que o óptimo é inimigo do bom, costuma dizer-se.
E conheço e reconheço, que o pouco que ali têm, vivendo precária e permanentemente de boas vontades e caridade, é muito ... é imenso ... é o possível !
Retira-os pelo menos, de um destino de total exclusão, na rua.
E conheço e reconheço, que aquela gente que se disponibiliza, e faz do tratamento destes animais, sacerdócio de vida, essa gente sim, são heróis e heroínas sem tamanho, que não conseguimos avaliar nem por aproximação !

Também sei que os corações de quem lá vai, "ordenariam" que os trouxéssemos connosco ... todos ... e isso é impossível ...
Então somos assaltados por sentimentos de culpabilização, de mau-estar, de impotência.  Não só porque lhes goramos espectativas, já que cada pessoa é um potencial adoptante, para aqueles olhos "pidões", mas também porque nos perguntamos, como podemos não ir mais vezes, pelo menos.

E os dias seguem-se às noites, e aquela "prisão" é o resto da vida de muitos dos animais que lá estão.
Muitos irão morrer ali, e entretanto os seus dias e as suas noites, não encerram nenhuma diferença.
E são exactamente os que mais precisariam, porque são velhos, feios ou doentes, os menos previsíveis de virem a ter um lar.  Porque o ser humano, uma vez mais egoistamente, se adoptar, procura um bonito, fofinho, um "brinquedo" ...
O Rudy irá morrer na União Zoófila, tenho a certeza.  O  Rudy jamais me irá reconhecer alguma coisa dele, porque o não sou, de facto ...
Por isso ele mantém os olhos doces, distantes e indiferentes !!!...

Experimento sentimentos idênticos em situações paralelas.  Só paralelas, obviamente.
Sinto o mesmo, quando visito o meu meio-irmão, como vos disse já, internado numa instituição para doentes mentais, há sessenta e dois anos.
Sinto a mesma angústia do abandono, da solidão, da desesperança, do "não-futuro".
Sinto a mesma incapacidade de reverter o que quer que seja, sinto a mesma mágoa pela injustiça da vida, sinto a mesma raiva contra mim própria , por ser privilegiada, por também ser egoísta, e não ter "arcaboiço" para ser mais presente na vida dele ...

E sinto o mesmo, face por exemplo, a "prisioneiros" de uma cama, para sempre.  Quantas vezes jovens ainda, que não têm qualquer horizonte à frente !
E pergunto-me : " Como é viver assim ?  Como é acordar cada manhã e não saber se estamos no ontem, ou se estamos no amanhã ... simplesmente porque não há amanhã " ?...
E estranhamente ou talvez não, esta coisa que chamam de Vida, e que deveria valer a pena viver-se, molda estes seres às suas realidades, e instala-lhes uma capacidade, que me pergunto donde vem ( talvez apenas da compreensão ou da percepção da inevitabilidade ), uma capacidade de aceitação, ou de indiferença, quase de uma paz que me confunde, uma ausência de reivindicação ou mesmo de rebelião interior, um aparente adormecimento do coração, que parece já não pulsar ... posto em sossego, "ad eternum" ...

Talvez não seja exactamente assim.
Talvez não seja tão dramático.  Talvez eu só esteja a ver tudo a preto e branco, neste cinzento e castigador Inverno !
Talvez todos estes sentimentos estejam mais inculcados em mim, do que neles ...
Quereria  que  fosse  assim,  e  eu  apenas  hiperbolizasse ... quereria !...

Porque os sinto todos, a pagarem uma factura de vida, de uma dimensão atroz.
Sinto-os todos, afinal, a cumprirem uma pena injusta, por um crime que não cometeram !!!...

 Anamar 

2 comentários:

Hugo Nofx disse...

É triste... muito triste!

bjs.

anamar disse...

Olá Hugo

É sim ... é demasiado triste!

Obrigada por ter comentado.

Anamar