domingo, 10 de fevereiro de 2013

" FUI INDO POR AÍ ..."



Agora, a minha gaivota já não é só a "minha" gaivota.

Tal como  o "Farrusco do fiambre" me namora dos terraços lá de baixo, a minha gaivota é namorada pelo meu Jonas, de cima da máquina de lavar.
E mais do que namorada, ela é cobiçada, e põe o Jonas com a adrenalina em alta, completamente desorientado em caçadas imaginárias, que lhe deixam as orelhas em riste, e os olhos ... bem, os olhos só não saltam das órbitas, porque estão bem presos.
O Jonas tem seis meses, e a inconsciência e a curiosidade, inerentes a um gatinho bébé.

Também ... a minha gaivota pavoneia-se, provocadora, sozinha, bem aqui por cima, recortada no cinzento uniforme do céu, asas esticadas, dançante na aragem ... Não há gato que resista ... mesmo os inocentes !...
Sempre sozinha ...
Também nisto nos identificamos !...

Todas as espécies viventes, passam pelas mesmas fases ... é engraçado de constatar.
A Rita, na sua terceira idade, só quer sopas e descanso, incomoda-se com as perturbações que o Jonas lhe provoca, irrita-se, refugia-se nos locais mais reservados, na meia obscuridade que a saia da camilha lhe propicia, ou saboreando o conforto do calor do saco de  água quente, dentro do seu cobertor de lã.
O Jonas é irreverente, é desvairado, só faz tropelias.  É um bébé !
Qualquer coisa é um brinquedo para ele ;  um simples lápis, é um tesouro, o rabo da Rita a mexer, deve ser uma potencial presa, a caçar ... as bolinhas que saltam, deixam-no louco !
É um jogador exímio, um guarda-redes cinco estrelas, não falha uma jogada.  Esconde os tesouros nas dobras das carpetes que enrodilha, atrás das portas, no cobertor da cama, e entrtem-se a redescobri-los ... Ou enfia tudo para debaixo do frigorífico, máquinas, móveis, o que lhe implica o esforço acrescido de se esfalfar para lhes chegar a recuperá-los ... Mas essa dificuldade deve dar-lhe um sabor especial, ou então é masoquista mesmo !
E é giro vê-lo com ar decepcionado, quando desiste de os reconquistar, simplesmente porque o Jonas já cresceu, e já não cabe em espaços onde cabia, e não lhes chega ...
Aí entro eu, com varas e varinhas, rabos de vassouras, tudo o que possa resolver o problema, e reponha à luz do dia ( por escasso tempo só, claro ), a "arca do tesouro" do Jonas !


E depois tem a doçura, a meiguice, a entrega, a suavidade de uma criança mesmo.
Aninha-se, deita-se de barriga para cima, protege os olhos da luz, no meu robe fofinho, se quer dormir ... e até ressona !  Dá beijinhos intermináveis, que são lambidelas que mais doem que acariciam, com aquela pequena língua áspera e cor-de-rosa ... A sua forma de mostrar satisfação e afecto !

São um espanto os animais ... são uma maravilha, os gatos !

Muitas vezes, só os temos a eles.
É uma pena que não falem, porque ouvir-nos, ouvem, atentamente ;  têm expressões e "vozes" diferentes, conforme a situação, e traduzem-nos o que precisamos muitas vezes sentir, na "marradinha", no roçar do corpo pelo nosso, no "abraçar" com a cauda, que envolve as nossas pernas, em sinal de conforto ou talvez de protecção ... não sei !
Eu  dizia :  "é  uma  pena  que  não  falem" ...  mas  talvez  devesse ter dito : " ainda bem que não falam",  porque  senão estragariam tudo, tirariam o encanto a tudo, vulgarizariam as emoções ou tripudiariam sobre os afectos, como o ser humano faz, afinal ...
Assim, eles ficam-se pela atitude, pela postura, pela manifestação objectiva e nunca ludibriante do que realmente sentem, sem dissimulação, sem outra intencionalidade, que  não  a  exteriorização  da  pureza  dos sentimentos,  duma  forma  leal,  gratuita,  sem  cobrança ...

Estava aqui a congeminar, olhando para trás na vida, sobre a precariedade das ligações afectivas, entre as pessoas.
O ser humano liga-se afectivamente, primeiramente, por laços de consanguinidade, os chamados laços familiares.
Esses, em essência, deverão ser duradouros, porque  como "soi dizer-se", o mesmo sangue corre nas veias, numa espécie de apelo ao sentido de clã, de "selo", de cordão umbilical nunca cortado completamente.

Depois,  os seres humanos aproximam-se pelo coração. São outro tipo de laços.
Aí temos laços de amizade, que quando verdadeira, são feitos de um material com uma resistência "à prova de bala".
Eles aguentam decepções, mágoas, ofensas, omissões ... eles rejubilam com a alegria, partilham os "pesos" excessivos, sofrem na dor, encantam-se com os êxitos, e dividem os fracassos ... eles cumpliciam, ajudam, felicitam e "sentenciam" se for o caso, pela isenção de que devem revestir-se.
É uma forma de amor incondicional, desinteressado, disponível, generoso ... canino, eu diria ...

Mas temos também laços de amor, entre os géneros.
Esses, tendem a ser bem mais frágeis e vulneráveis.
Esses, são sobretudo corroídos por uma coisa que se chama "Tempo", porque este, consegue tornar o mais místico e mágico, no mais terreno e banal.
O Tempo tira  a  "aura "  às pessoas, aos sentimentos, às convicções, às esperanças e desígnios.
Consegue banalizar o que era extraordinário, consegue endurecer o que era naturalmente doce, apaziguador, gratificante ;   consegue gerar indiferença, perante o que era indispensável ;  consegue lançar esquecimento, sobre o que era permanentemente presente ;  consegue criar distâncias e levantar muros, com uma insensibilidade absurda, entre pessoas que se respiravam ...

São de facto cordões invisíveis facilmente corruptíveis, porque são elos facilmente fragilizados, pela panóplia de vectores conflituantes e agressivos da Vida.
E só subsistem efectivamente, se forem de "fibra", se forem trabalhados laboriosamente por ambas as pessoas, se forem acreditados inapelavelmente pelos implicados, e se neles houver aposta séria ...

E os tempos actuais, tempo do descartável, tempo do facilitismo, tempo da desvalorização, o ser humano tende a enjeitar o que implica demasiada "mão de obra", deita mais facilmente fora, do que conserta, compra mais facilmente novo, do que conserva o existente ... substitui mais rapidamente, do que mantém ...

Enfim ... fui divagando por aí, neste dia cinzento e pardo, e parvo também ... em que nem a chuva que cai é assumida ... porque  é,  e  não é ...
Cai uma chuva miudinha, que com o frio, esse sim intenso que se faz sentir, nos mostra que o Inverno continua instalado ...

Razão tinha a minha gaivota, em vir visitar-nos.  À beira-mar, não se deve poder parar !!!..

Anamar

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