terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

" A ESCADA ROLANTE "



De repente tudo à sua volta deixou de fazer sentido.
O Mundo desarticulou-se, e como dizia a Hushpuppy do filme que via naquela sala escura, o Universo existe porque as peças se encaixam.  Basta que uma, mesmo pequena, saia do sítio, e tudo se destrói.

Exactamente isso.
Num suspiro, nada em torno de si, ficou reconhecível ...
Havia o dia e a noite, havia o sol, a chuva e o frio que se lhe entranhava nos ossos, era verdade, porém, na tela negra  não era aquele enredo que desfilava.

Todos os fantasmas da sua existência  ficaram endiabrados, e como num ataque de abelhas enfurecidas, desataram a passar, a passar, numa escada rolante de estação de combóios.
Ela subia lentamente, na cadência da escada íngreme, e eles desciam na escada paralela à sua, bem ali ao lado.
Frenéticos a desfilarem, olhavam-na em silêncio, com esgares cínicos e impiedosos, nos rostos.

Sim, porque estes fantasmas tinham rostos.  Rostos parados, como que fixados pelo flash de uma câmara, num momento qualquer, de um qualquer dia, de uma qualquer hora ...
Porquê exactamente aquela, ela não sabia ...
Mas com emoções "congeladas", todos eles, como os rostos dos manequins nas vitrines ...
De facto, eram expressões sem emoções vivas, porque eram rostos de fantasmas e não de gente vivente, mas uns riam com a imagem em pausa, outros tinham doçura no olhar, também em pausa ... Uns choravam convulsivamente, parecendo em contrição ... outros tinham olhos libidinosos e de cobiça espelhada ...
Havia aqueles que ao afastarem-se, lhe deixavam o olhar preso, e seguiam, inevitavelmente seguiam, porque as escadas rolantes são isso mesmo, rolantes ...
Rolantes como a Vida, como o Universo.

Ela  não  conseguia estender os braços para eles, porque também ela, parecia estar imaterializada, petrificada ...
Mas ainda que o pudesse, não conseguiria retê-los, porque eles eram fantasmas e desfilavam, incessantemente ... imparavelmente !...

Cada um contava-lhe pedaços de história.

Engraçado, que alguns vinham iluminados de muito sol e do verde do mar, e irradiavam calor, muito calor.
Já outros, desciam lentamente, envolvidos naquela penumbra de céu cinzento escuro, de tempestade instalada, aqueles céus que fecham e não abrem mais nesse dia.
E fica frio e desconforto ...
Uns eram rostos muito jovens, nos quais os olhos eram mares de baías mansas, e os cabelos, searas douradas no pino do Verão alentejano ... e carregavam nas mãos, as promessas das primeiras cerejas de cada ano ...
Havia os que apenas a olhavam com ar triste e magoado.  Indiferentes, já indiferentes.
Mas gargalhadas cristalinas embora sumidas, ecoavam enquanto desciam ...
Ela sabia porquê !!
Havia também uma corte de fantasmas sem rosto.
Interessante !...  Eram muitos, mas não tinham forma, perfil definido  ... eram vazios por dentro.
Não tinham o coração que se via a pulsar, nos outros.  Não, não tinham nada !
Só tinham olhos, braços, mãos e sexo.
Eram uma espécie de polvos gigantes.  Tinham olhos esbugalhados, e caía-lhes baba verde e pegajosa, do lugar onde deveria existir uma boca de sofreguidão denunciada.
Eram atordoantes esses fantasmas !  Eram perturbadores !
Esticavam os tentáculos informes para ela ... sobre ela !...
Mas ela continuava imóvel, altiva, espectadora apenas, a tentar encaixar todas aquelas peças, para reconstruir um Universo !...

E a escada rolava, e ela subia e eles desciam ...

Com eles desciam histórias bafientas, que teimavam em tornar presentes, halos há muito apagados, como velas em fim de festa.
Traziam filas de esperanças e sonhos enterrados, fazia mais de tempo !!!

E o coração dela sobressaltava-se.

Havia alguns que ela queria, porque queria, reter, ou mesmo recolocá-los no princípio da escada, para que de novo passassem e de novo lhe segredassem os dias de sol, de luas imensas nos céus de breu, os sussurros das noites de amor ... e as gargalhadas felizes também ...

E por isso, no seu rosto que existia e não existia, escorriam lágrimas, porque naquela sala escura, ela também ouvira Hushpuppy dizer que as pessoas só se comunicam por amor, pelo entendimento das batidas dos corações.
Nada mais importa !
E duas coisas ela conseguia perceber, porque não esquecera : as batidas de alguns corações e a saudade que sentia de os ter nas suas mãos, para aquecê-los ...
Estranho como os fantasmas podem experimentar amor e saudade ...
Ela nunca ouvira falar que isso fosse possível !!!...

Aquela escada rolante, estava a aproximá-la do topo.  Faltava já pouco.
Na escada ao seu lado, aqueles esgares de gente, também quase tinham terminado a procissão silenciosa ;  todos se remetiam ao afastamento do Tempo, todos desciam para os lugares donde não deveriam ter saído : a escuridão da ausência e do vazio !

Uma derradeira figura olhava-a intensamente.
Tinha olhos parados, doces e sofridos.  Exalava um perfume salgado a maresia e caruma fresca, como um ser do mar e do monte ...
Era um misto de criança e de velho.  Transportava um apelo na imobilidade indiferente do rosto.
Parecia querer parar ali, mesmo frente a ela, apenas, sem forças, inevitavelmente, deixou-se arrastar pela escada rolante, como todos os outros, ficando mais e mais distante, difuso, enevoado ...

Ela voltou-se para trás, e surpreendentemente soltou-se do seu torpor patético de vídeo em pausa, ganhou vida, ergueu um braço e acenou ... um longo adeus, um derradeiro adeus ...
E ficou a vê-lo afastar-se, como que empurrado por uma maré contra a qual não se luta, por um vento varredor de encostas e penedias, por uma desesperança de Inverno que veio para ficar ... enquanto Enya se ouvia lá longe ... cada vez mais longe ...

As luzes da sala acenderam-se.
Hushpuppy, com o seu narizinho empinado, de menina-mulher e a sua determinação de sofrimento aprendido, também já tinha ido ...
Fazia-se tarde !!!...

Anamar

4 comentários:

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Bjs

anamar disse...

Olá Fernando

Todo este meu post é uma alegoria profunda.

Todo ele tem significâncias enviesadas, que por demasiado codificadas, me atrevo a dizer serem totalmente herméticas ao leitor.

Contudo, perante qualquer obra, seja de que tipo for, a sua interpretação é livre, obviamente.

Obrigada pela análise

Anamar