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domingo, 22 de maio de 2016

" PORQUÊ ? "





As papoilas pincelam de vermelho os campos do meu Alentejo.
Alguém dizia que este ano, as há, em profusão.  É toda uma mancha a perder de vista, daquele "sangue" escorrido na planície.
Enternece-me olhá-las.  Recuo, revejo, sempre me emociono ...
As macelas pintalgam-nas, como num quadro de Van Gogh.  E tudo quanto é flor deita a cabeça de fora ...  É Maio e Maio não decepciona nunca !

Neste momento a minha vida vitamina-se quase só com os pequenos presentes,  que a Natureza, generosa, me oferece.
Bebo sol, bebo a luz estonteante de um céu claro, oiço os pássaros, vejo as marés incessantes no seu vaivém, escuto a música celestial de tudo o que é belo e nos cerca.  Sinto o vento passar-me no rosto, desalinhar-me o cabelo ... E só isso, já é uma bênção !
Deslumbro-me com o borboto que virou flor, com o tronco nu que se revestiu de farta cabeleira. Deslumbro-me com o cheiro das matas, da maresia, do pinhal ... do bosque ...
Tudo isso é um milagre oferecido !...

E não preciso de muito mais.
Aliás ... quase recuso a realidade circundante.  A minha realidade actual, cinzenta, desinteressante, dura, mórbida.  Uma realidade que marina entre a dormência e a morte.  Um cheiro fétido a água parada ...
Cada vez mais a indisponibilidade que nos rodeia, inibe o extravasar da nossa torrente interior.
Cada vez mais, reprime a exposição dos sentires, das dores, das dúvidas, das angústias ... dos medos !
Como se, expondo-as, nos sentíssemos de repente, nus, frágeis, vulneráveis ... pequenos ! E não é suposto.  Não é cómodo ... desejável !
O ser humano refugia-se então.
Recolhe às trincheiras da alma, encolhe-a, silencia o coração ... adormece a mente, como defesa.
Fecha  hermeticamente, tudo para o que não há espaço neste mundo ... quase sempre !
E sofre sozinho.  Padece anonimamente.  Morre paulatinamente ... em pequenas doses !

Olho para trás e tenho-me saudades.
É nestas circunstâncias, que pensamos em tanta coisa que não foi e poderia ter sido.  
Porque a não sabíamos ... quase sempre.  Também, porque se a soubéssemos, talvez a não acreditássemos ...

Por que não nos disseram que era p'ra dançar ao som daquela valsa de Strauss ?
Por que não nos disseram que era p'ra rir, rir muito ... gargalhar até cansar, quando o céu carregou e a chuva quente açoitou os corpos, naquela praia lá longe ?...  Onde os cheiros são doces, onde o cruzeiro do sul se levanta, e onde a estrela polar se não passeia, no firmamento enigmaticamente escuro ?!
Por que não nos disseram que era para guardar religiosamente e com cuidado, o frio da neve do Inverno próximo, antes que o Verão chegasse e o apagasse, na vida ?
Por  que  não  nos  ensinaram  a  viver  o  exacto  momento,  único ... que  era  aquele  e  não  outro ?
Por que nos deixaram deixar tudo pela metade, achando que haveria todo o tempo, inesgotável, para agarrar a outra metade ?
Quando afinal, o tempo  foi fumaça que se perdeu e diluíu mais além !...
Quando  o  que  era  muito ... era  tudo,  se  desfez  como  bola  de  sabão, de  criança  divertida !...

E assim vamos indo !
Assim vamos deixando esvaziar a ampulheta do destino.
Assim vamos pegando nasceres com pores de sol, deixando escoar pelo meio dos dedos, a areia da vida ... como se ela nunca fosse acabar.
Como se fosse indiferente, vivê-la agora ... amanhã ou depois ... como se ela fosse eterna e sempre nos esperasse a cada esquina !
Como se ela não esgotasse as braçadas de flores frescas, que p'ra nós colheu !...
Como se nós não esgotássemos, por cada dia, a capacidade de as agarrar, de lhes sentir o perfume ... de nos maravilharmos com a sua deslumbrante  beleza !...

Efémero ... tudo demasiado efémero !
Tudo tão veloz que nem voo de colibri, que quase sentimos, sem ver !...
Tão vertiginoso quanto o bater de asas da borboleta, que nunca conseguimos alcançar!...
Tão louco quanto o vento  que dobra a esquina, sem permissão ...

É Maio ... e Maio nunca decepciona !
Só a Natureza resiste.  Só ela se repete, se renova, se recria ... se reinventa, imemorialmente nos tempos !

Anamar

segunda-feira, 16 de maio de 2016

" ILUSÃO "


Como estará agora o teu rosto ?
As linhas, as marcas, os sinais, vão-se perdendo no tempo.
Já as não sei !  Apenas guardo algum que outro pormenor ... que se tornou pormenor, no vórtice dos dias.
Os teus olhos ?
Sim, os teus olhos, eu sei exactamente que continuam verdes como maré de mar sem fundo.
E também sei que ao sorrirem, riem como olhos de menino  "levado", tenho a certeza ...
As tuas mãos ... ?
Vejo-as pousadas como pássaro no repouso da ramada.  Seguras.  Fortes.  Decididas.
Mas sei-as doces, irreverentes, curiosas ... quentes.
Mãos de embalo, de protecção, de norte ... de caminho ... Mãos sábias !...
O teu corpo ... ?
Esse está todo em mim.  Não tem erro !
Ficou-me tactuado, fielmente desenhado em decalque sob a minha pele.  Dentro do meu. Para sempre !  E um dia, juro, ainda vai comigo !
A tua voz ...?
Quando fecho os olhos consigo escutá-la, trazida pelo murmúrio do vento, que é meu amigo.
Sussurrante às vezes.  Imperativa, outras.  Sempre envolvente, na rouquidão com que, escutando-a, estremecia ...

Como estarás tu ... todo ?
Hoje, trucidado pela tempestade dos tempos que nunca se apieda do nosso desejo de imutabilidade ?
Quando a mudança é afinal a única garantia de tudo em que mergulhamos ...

Será que eu ainda conheço os teus caminhos ?  Será que ainda reconheceria o endereço do teu ser ?
Não, penso que já só existes na minha mente e no meu coração.
Aí existes sempre, todos os dias.
Fora deles, partiste há muito, levado pelas tempestades de Inverno que recolhem os limos dos rochedos, por cada recuo das marés.
Levado pelo sol vermelho que se põe p'ra lá dos continentes, p'ra lá dos oceanos, naqueles lugares que por instantes foram nossos.  Que sempre o serão !
Porque eles conhecem os nossos segredos, gravaram as palavras ditas, os risos soltos ... o amor que se fez  ...
Eles sabem-nos ... como ninguém !...

Visitas-me pelas madrugadas, quando os sonhos sabem que preciso.
Poisas-me na almofada, esgueiras o teu corpo junto ao meu, embalas-me o sono ...
Chegas a sorrir, com os olhos iluminando o caminho.  Com o abraço aberto.  Com o beijo pronto. Com o calor oferecido ...
Por instantes recuo no tempo e na vida, não querendo perder-te outra vez ...
Breve ilusão !

Partes ... sempre partes com o dealbar da madrugada.  Sempre te vais quando a última estrela se apaga no firmamento.  Quando a lua cheia deita para dormir outra vez, e quando eu acordo para a realidade que me sobrou ...
Sem espaço para ti !

Anamar

segunda-feira, 9 de maio de 2016

" QUANDO OS ANJOS DORMEM "





Anoiteci-me por aqui.
Anoiteci com o cinzento fechado da tarde, com a chuva copiosa que tomba, numa Primavera indiferente.
Uma que outra gaivota plana neste céu amorfo de emoções, com nuvens obstinadas a cerrarem o horizonte.
Demanda guarida, local de poiso.  Afinal, a noite assoma.
Há um silêncio perturbador, dentro e fora.
Lá fora, as famílias recolheram.  Hora de jantar, fim de dia ... fim de semana.
Tempo prometido.  Partilhas de "estórias" das histórias de cada um.
Aqui dentro, quatro paredes imensas, altas, frias, despidas ... como jaulas ou prisões.
Os gatos dormem há horas.
A música silenciou de tanto tocar.  Também ela melancólica, dormente ... igual à tarde.
As teclas do piano embalavam, numa dolência estranha, como se quisessem adormecer-me a mente .

Mais outro dia no fim !
Arde-me a garganta do que não falo.  Queimam-me os miolos do que não  pronuncio.
Peso.  O ar é pesado, sufocante.
A solidão estrangula ... sobretudo o peito.  Dentro dele, o coração.
Apetece-me gritar.  Apetece-me chamar.
Não corro o risco de ser ouvida.
Às vezes penso que esta casa é uma tumba.  É quando corro a chave na porta, quando cerro as cortinas,  porque lá fora ficou igual ... a noite desceu.
E todas as almas se preparam para o silêncio e para a paz.

É quando as sombras se agigantam, é quando o ruído do nada amarinha pelas paredes, trepa por mim e me enleia, como as raízes ancestrais enredam as ruínas.
É uma hora de desesperança.  É uma hora de desalento e de cansaço.
É quando os anjos dormem que ficamos mais sós ainda.
E acredito que a esta hora, quando o dia beija a noite de mansinho e as lamparinas do céu se acendem, eles esquecem os mortais por aqui perdidos ...

É tão só mais um crepúsculo da vida ...

Anamar

quinta-feira, 17 de março de 2016

" DIVAGANDO "






"As pessoas são como as casas. Precisam de quem as habite " ...

Aquela casa está silenciosamente vazia.
As janelas cerradas não deixam que a luz penetre.  As portas fechadas não deixam que os sons a invadam.
Ainda está repleta, mas está vazia.  O único sinal de vida que ali persiste  é dado por duas plantas sobreviventes à hecatombe da existência.  Continuam a resistir com algumas gotas de água e com a claridade generosa da marquise.
Resta o som dos passos quando por lá ando,  restam as memórias percorridas quando deambulo  de divisão em divisão, feito um zombie dos tempos.
Sobram demasiadas imagens a desenrolarem-se diante de mim, quando me quedo e simplesmente penso ...
Há uma degradação lancinante, naquele espaço.  Há um abandono instalado.  Há um vazio atroz.  Há um silêncio sufocante ...
Àquela casa só sobram recordações de tempos idos.  Hoje, ela é uma tumba de histórias, de pessoas e de emoções.
Andam risos por ali, a esconderem-se pelas esquinas.  Andam  vozes por ali,  a negacear atrás  de  cada porta.  Andam  rostos  a  brincar  de  duendes  na  floresta,  entremeio  ao  arvoredo ...
Juro que os vejo, os oiço ... os escuto mesmo !
Basta-me fechar os olhos, por momentos ...

Mas a casa está silenciosamente vazia.  Escura.  Triste.  Só.  Decrépita.  Doente ...
Aquela casa está agonizante !  Perdeu, obviamente, a alma !...

As pessoas também.

As pessoas precisam habitar-se para estarem vivas.
Precisam povoar-se dia a dia, com sonhos, emoções, projectos, desejos, metas ...
As pessoas precisam abrir as janelas da alma, precisam inundar-se de afectos, lotar-se de amor, preencher-se de vida ... Impregnar-se de pessoas ...

O Homem é um ser gregário.  Não nasceu nem existe,  para ser  um edifício devoluto.
Desabitadas, as pessoas ficam inapelavelmente sós, estiolam e morrem !

Eu não quero saber-me uma casa mofada.
Eu quero escancarar as portadas, abrir as janelas, deixar-me ensurdecer de sons, de cheiros e de cores.
Eu quero deixar o sol e o vento adentrarem-me.
Eu quero que a chuva me abençoe e que a lua me visite, sem esquecimentos.
Quero a música dos pássaros, num embalo dolente, e o afago púdico das borboletas, em beijos roubados.
Eu quero um coração latejando, vivo e transbordante.  Um coração pulsante, que saiba rir, mas não esqueça o que é chorar.  Que saiba emocionar-se, sofrer e ser feliz ...
E  que  o  único  ar  que  me  falte, venha  da  sua  batida  descontrolada  por  vivências  abençoadas ...
Quero uma alma que confie e acredite.
Quero sufocar-me de sonhos ... ainda.
Quero empanturrar-me de vontades ... sempre.
Quero acreditar que continua valendo a pena ...
Quero remoçar-me nas ilusões da juventude ...

Não preciso ter tudo.  Basta-me alguma coisa ...
Mas sobretudo quero saber-me uma casa com gente ...
Quero sentir-me uma casa HABITADA !...

Anamar

sexta-feira, 11 de março de 2016

" A GRANDE FAMÍLIA "




Eu pertenço à equipa dos "singles".
Digamos que não é bem isso, mas quase.  A "minha gente" de sangue, está um pouco longe.  Alguns quilómetros apenas, mas não aqui, debaixo do meu tecto.

Aqui, comigo, tenho o Chico e o Jonas.  Bastam-me, alegram-me e até me amparam.  Tanto quanto os animais o sabem fazer.
Tenho as "minhas coisas" ( porque sempre nos rodeamos das nossas indefectíveis coisas ... ), os meus livros, a minha música, as minhas fotografias, os meus escritos ... fragmentos de memórias ...
Aquilo que constitui o meu espólio ao longo de alguns, já razoáveis anos.
Tenho as minhas paredes, o meu "ninho" ... tudo onde a minha "pegada" foi deixando rasto.

Mas também tenho o céu à minha frente, dado ... incondicionalmente, pelo privilégio de, vivendo bem alto, não ter muros ou barreiras adiante de mim.
Tenho a minha gaivota, que às vezes traz a "família" se a borrasca assoma do lado do mar.
Tenho o plátano das traseiras, que começa agora a engalanar-se de roupagem verde, já que o sol espreita e a Primavera está aí ... e que há meses atrás se doirou de folhagem quente e melancólica ... Ciclicamente ...

Tenho também o gato farrusco nos terraços lá de baixo, que não é de ninguém e é de todos os que o olham ... nem que seja assim, bem de cima, como eu.
Sempre sorrio  se da janela  o vislumbro, "esparramado" ao sol, com a felicidade dos que são livres, e sempre me interrogo apreensiva se o não vejo, por dias ... "Será que ?!..."

Bom, depois tenho os pores de sol ... porque a minha vista o alcança até que ele dorme, lá para os lados de Sintra.
São inenarráveis, todos os dias.  São uma aguarela indescritível que a Natureza me pinta, generosa, para me alindar os tempos.
O casario de desenho irregular e em desalinho urbano, tem dias que me atiça a ira ... "Irra ... que selva esta, sem beleza ou graça !  Cogumelos mal nascidos, sem "rei nem roque" ! "
Mas pronto, nada a fazer ... Emolduram-me inapelavelmente a paisagem, e são os únicos limites que tenho, à vontade e ao sonho !

Descendo à rua encontro depois, os vizinhos.  Um ou outro ... sempre me cruzo com alguns.
No mesmo prédio há mais de quarenta anos, conhecemo-nos desde jovens casais, como marinheiros de primeira viagem quando os rebentos começaram a despontar, depois como pais responsáveis com a prole a avançar na vida ... e já com histórias para contar.
Vimo-nos a maturar e logo depois a envelhecer.
Convivemos com "deserções", por muitas razões.
Partilhamos angústias pelas doenças, pelas dificuldades, pelas "partidas" e pelas preocupações ...
Sempre queremos saber uns dos outros, sempre nos regozijamos pela ventura e sempre nos afligimos pela desventura... Somos afinal extensão da família natural.

Há depois o café de sempre,  para o pequeno almoço tardio. Porque isto de não ter pressas tem as suas vantagens.
Também aqui os frequentadores são os mesmos.  Rostos conhecidos de há anos, no café das mesmas horas.
Consigo saber exactamente quem está de "penetra".  Identifico facilmente os frequentadores de ocasião.
Pergunta-se pelos ausentes, sobretudo se essa ausência já é notória.  E vamos sabendo dos acontecimentos,  Quase sempre de saúde, porque a faixa etária da grande generalidade, já é respeitável.
Tem-se atendimento mais que personalizado ... rsrsrs ... Afinal ganha-se estatuto de antiguidade.  E antiguidade confere privilégios, como sabemos ...
Local de encontro ( há quem apareça apenas porque sabe que aqui estou invariavelmente à mesma hora, numa espécie de  "escritório " inventado ... ), local de leitura quase sempre, local de escrita, às vezes ... local de "fareniente", em que apenas deixo a cabeça vaguear, num alheamento distante, em dias menos felizes ...
Estou como que numa segunda casa, estou numa espécie de novo prolongamento familiar, estou de alguma forma, noutro espaço de afectos ...

De mais longe os amigos às vezes telefonam, joga-se conversa fora, comentam-se as últimas.
Estão longe, mas sempre se mantêm presentes ... sortilégio da amizade !...

E pronto ... faz-se a hora de regressar ...

Afinal os dias são preenchidos de pequenas coisas.
A vida é feita de uma diversificada teia de afectos que deveremos cuidar, que deveremos preservar e privilegiar.
É ela a "grande família" que nos foi disponibilizada para o caminho a palmilhar ... Também apoio, também suporte, também carinho, de certo modo ... Ela é extensão da família real, da biológica, da sanguínea, não escolhida obviamente, e tantas vezes menos presente, pelas imposições reais da existência.
Porque o amor não vem do sangue, não vem de nenhuma regra ou determinação social ... vem do cuidado, do respeito, da troca ... ou seja, " o amor vem de amor " ... é que cada vez mais se não justifica a separatividade que os laços sanguíneos determinam, entre os que são e os que não serão tão credores dos nossos afectos.

Por isso, com ela, com toda a nossa "grande família",  vamos cumprindo o destino, com ela vamos percorrendo o caminho ... com ela vamos fazendo a VIDA !

Anamar

domingo, 27 de dezembro de 2015

" O MEU SONHO DE GAIVOTA "





Olhei-a.
Ela parecia apenas dormir por entre a aragem.  As asas  esticadas, o corpo esguio magistralmente delineado, projectava-lhe a cabeça adiante.  Os olhos miudinhos e sagazes, auscultavam um possível caminho.
Haveria caminho para uma gaivota sobre a cidade ?...

Voltei a olhá-la e ela dançava por entre as chaminés, por cima dos telhados, absorta, distante ... mas sobranceira.
Indiferente ... eu diria, indiferente !
Tenho a certeza que no descolorido do casario, aquela gaivota vislumbrava azul.  Porque sem azul, uma gaivota está amputada no coração !

Lá de cima, no seu voo rasante e ronceiro, seguramente ela cheirava a maresia, adivinhava as falésias, escutava o vaivém da maré, e via o azul ... o azul infinito do marzão sem fundo e sem limite.
Via o azul de um céu de cristal, que só o é, lá, onde o oceano feito amante presente, beija e beija e beija, a terra que lhe estende os braços ...
Havia de sentir a areia fofa, onde o mar rendilha as franjas, havia de perceber a brisa salgada que embrulha as rochas, as algas e todos os seres viventes.
E teria saudades ...

Era uma gaivota solitária, uma gaivota que carregava silêncio.
Uma espécie de andorinha fora da Primavera.
Uma espécie de sopro que não abandonou os lábios.
Uma espécie de sorriso traído pelas lágrimas ...
Era uma gaivota sem liberdade nas asas, sem alegria na alma.  Porque ela tinha alma, que eu sei !

Vagueava, como se vagueia sem norte ou rumo.  Baloiçava, como cambaleia quem já não tem destino ou sorte.  Ia sempre adiante, entre curvas e volteios, entre paredes e cinzento ... como quem busca sem buscar nada.  Como quem tenta esperançar-se, desesperançado.

Segui-a, enquanto a vista deu, enquanto a distância deixou ... enquanto os muros, os becos e os telhados o permitiram.
Queria ter ido com ela ...
Porque também eu sou um fruto fora de época, uma flor dependurada de caule ressequido.
Também eu tenho saudades de lá.
Das águas de infinito onde o sol se deita, onde a lua se espreguiça com lascívia de prata, num leito de veludo ponteado a estrelas.
Queria ter a determinação e a indiferença do seu voo ziguezagueante por cima das copas inventadas, aqui, nesta terra de tristeza !...

O meu olhar perdeu-se na distância impiedosa.
E eu fiquei mais melancólica, no cinzento desta tarde de Inverno indefinido, como sonho não acabado de sonhar, como beijo não acabado de saborear, como amor não consumado no viver !...

Anamar

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

" MAIS QUE UMA TRILOGIA ... "




Os melhores companheiros das janelas, são o gatos.   Os gatos e as flores.

Os gatos maravilham-me, as flores sempre me deslumbram e as janelas  ... as janelas, já sabem, fascinam-me e desafiam-me.
Contam-me histórias intermináveis, de quem é e de quem foi, do agora e do antes, dos segredos ou das conversas banais.
Uma janela é um pouso sem tempo.  É uma pausa, para seres sem pressas ou compromissos.
São locais de luz e de vida.  As flores buscam-nas, e nelas sorriem, florescendo.
Os gatos aninham-se-lhes nos parapeitos, semi-cerram preguiçosamente os olhos, transformando-os numa fresta desenhada, e alongam-nos rumo ao nada e ao tudo que só eles vêem ...

Os velhos também.  Os velhos também as buscam, também as amam.
Junto à janela, tomando os raios de sol que a atravessam, quase sempre dormitam.
Às vezes "cuscam" o movimento de quem lhes anima os dias.
Meditam, distantes, e deixam-se ir, com aquele ar sapiente, legado do destino ...

A mim, as janelas aguçam-me o espírito.
Mas  não  as  janelas vulgares das colmeias urbanas.  Essas, são todas iguais, incaracterísticas, insípidas ...
Essas, são demasiado jovens para terem grandes coisas para contar ... porque as não viveram ...
Interessam-me as janelas com carisma, com porte, com estirpe.
As  janelas  concebidas  com  maestria,  por  artistas  que  ainda  tinham  tempo  para  as  conceber ...
Ou simplesmente aquelas em que a patine implacável do tempo, lhes conferiu aristocracia, dignidade ... lhes deu "marca", singularidade ... distinção !

Essas, têm histórias intermináveis, no seu espólio da memória.
Histórias de felicidade, ou histórias de intempéries de vida.  Histórias de dor, mas seguramente também, histórias de muitos risos e alegrias.
A pé firme, continuam a atestar os percursos das gerações que por elas passaram, e só não no-los desvendam, porque  aquelas  pedras, discretamente,  há  muito  desistiram  de  falar ...
São baluartes de  sonhos sonhados.  São testemunhos de projectos cumpridos.  São histórias da História das gentes que as viveram.

E depois, quando os anos que não perdoam, por elas passam, quando a sua tirania indiferente, como furacão, as abala, quando tudo à sua volta sucumbe e desiste ... ainda assim, aqueles aros esventrados permanecem hirtos, inabaláveis, com a coragem e a determinação dos fortes.
E oferecem-se então, generosamente, como molduras reais, às plantas livres e selvagens que as amarinham e as entrelaçam ...
As vidraças que as compunham, estilhaçaram há muito.  Já não delimitam o dentro e o fora, de antanho ... Mas mais bonitas do que nunca, deixam-se possuir com deleite, ostentando em segredo, o silêncio da eternidade, gravado em cada recanto secreto, em cada pedra instável, em cada musgo atrevido !...

Janelas ... janelas ... janelas ...

Velhos, gatos e flores ... Muito mais que uma trilogia !
Com  elas, as janelas, uma combinação perfeita ... uma estrada que se foi partilhando !...




Anamar

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

" UMAS E OUTRAS ... "



Andei atrás dela, a noite toda.
Eu, e eles. Os gatos ... desaustinados e endemoninhados.  Como "possuídos" por um qualquer sortilégio que não se descreve !...
Às vinte ( previsivelmente já nascida ... ), às duas, às quatro, depois às cinco e tal....
Prevenindo-me ... porque em 2033, não sei se estarei cá, para a recepcionar de novo.

Catorze por cento maior ... trinta por cento mais brilhante ... quarenta e oito mil quilómetros mais perto dos terráqueos ... mais difusa, mais vermelha ... por aí !
No eclipse, ou fora dele ... antes e após ter sido "engolida" pela sombra terrestre ... com óculos, sem óculos, com máquina fotográfica ... de menor e maior zoom ... no perigeu, ou ainda não ...
Andei atrás dela a noite toda !...

E até moro de varanda privilegiada, juntinho ao firmamento ... E até vivo paredes meias com as estrelas,  as  nuvens,  o  sol ... e  claro... as  luas,  que  me  visitam  com  generosidade ...

Mas apesar de todo este desassossego, não tenho normalmente muita sorte nestes eventos.  Acho que sempre vou com "demasiada sede ao pote"... Deve ser isso !
É certo que a minha vista já deve claudicar ... É certo que a minha ânsia de transcendência é imensa ... É certo que sempre tenho com elas ( as luas ), longas conversas de "pé de orelha", assim  numa  de  igualdade  cúmplice  e  conivente,  em  diálogos  de  mulher  para  mulher ...
Mas sendo tudo isso certo ... não deu realmente rotundamente certo !...

Quando se trata das prometidas e anunciadas estrelas cadentes... a chuva de perseidas, que são as maratonistas do céu ... sempre penso que a minha inabilidade em vê-las, se deve ao destempo óbvio, entre a corrida da lebre e da tartaruga ... Elas têm pressa... o meu olhar vagueia lento ...

Agora, uma lua gigantesca, uma superlua que se dá ao desfrute, lânguidamente deitada num céu doce e manso, como leito de amante sem pressas ... não ter matado a minha ânsia imaginada de vê-la "posar"em grande estilo ... já é demais !

Acho que, quando a fasquia sobe além da conta, tudo fica estragado !
Ingenuamente, devo ter acreditado que catorze por cento maior ... trinta por cento mais iluminada, quarenta e oito mil quilómetros mais perto de mim, "lua de sangue", assim lhe chamaram ... seriam particularidades tão visíveis e suficientes, que satisfariam estrondosamente as minhas expectativas retumbantes de fenómeno único ...
Tonta, mesmo !...

Grandiosa ?... Sim, estava !  Esmagadoramente bela e mágica ?... Sim, estava !  Comprometedoramente feminina, capciosa e tentadora ?... Sim, estava !  Desafiadora e irreverente ?... Também ... Num jogo de sombras e luzes em erotismo cósmico, sedutor e inatingível !
Ela era, de facto, uma jovem voluntariosa e atrevida, cavalgando o céu ... com a soberba de uma amazona distante e inalcançável !...

No entanto, mesmo sem luneta, sem telescópio, sem  que a tivesse esperado num descampado escuro e silente, ainda assim a superlua me devassou  com a sua luz branca  inigualável, violando-me o quarto, intencionalmente desprotegido de persianas, portadas, sequer cortinados ...
Inundou-me a cama, ofuscou-me os olhos, desnudou-me a alma e o corpo ...
E desvendou-me os segredos inexplicáveis do Universo, confrontou-me com a pequenez do humano, tangeu-me  um canto celestial ... em serenata com dimensões divinas ...

... e  marcou encontro comigo, para daqui a dezoito anos !...


Anamar

sábado, 19 de setembro de 2015

" SONHO "



Todos deviam ter direito a um palmo de terra de plantio, que  pudessem revolver com as mãos e perceber o milagre ...
Todos deviam ter direito a um quintal, a uma floreira, a um canteiro, a um vaso de flores...

Eu sinto isso todos os dias, desde que deixei de o ter, e me confinei, dadas as circunstâncias da vida, à casa do betão, mergulhada no meio dos "cogumelos" que todos os dias eclodem à minha volta, no cinzentismo das colmeias que proliferam, genericamente iguais, como fardas de meninos de orfanato ... nem sempre bem comportados ...

"Sufoquei" a casa há largos anos atrás, quando entrei na sanha de angariar todo o espaço possível, empurrando as divisões, fechando recantos, à custa de varandas abertas à rua.
Ganhei com isso, centímetros de paredes, áreas de chão, mais móveis, mais candeeiros, mais tapetes ...
E perdi o sonho de verde, o sonho de céu, a esperança de andorinhas nos beirais, que também sumiram ... a magia do vento livre nos cabelos ... e claro, a remota hipótese de trepadeiras rumando ao firmamento, de cheiro de terra molhada em vasos inventados, e de êxtase de cor generosa em miscelânea genuína ...

E tenho saudades infinitas !

Depois, cortaram-me também a palmeira centenária frente às minhas janelas, ex-libris daquele meu chão.  E o plátano dourado, pousio de pássaros nocturnos pelas madrugadas, e de aves arribadoras, no prenúncio das Primaveras, em cada ano ... cumpriu  o mesmo destino.
E foi como se me amputassem por dentro, me empobrecessem a alma, me cerceassem o sonho ...
Foi como se apagassem o sol na minha paisagem.  Como se me extorquissem o coração ... me orfanassem o espírito ...
E entristeci, fiquei mais pobre ainda ... mais sem "amigos" por perto ...

Por isso fujo.
Sempre que posso fujo e vou atrás do apelo da terra.  Busco o chamamento das sombras, procuro o silêncio embalador das matas, a paz dos matizes, o perfume de tudo o que nasce sem ser semeado, o estalido  crepitante  do  areão  calcado  debaixo  dos  pés, em  cada  volta ...

Sempre que posso, aspiro o ar leve e transparente pela ausência de mácula, escuto o gargalhar de um riacho solto por entre as pedras, oiço o sussurro das brisas nas ramagens, as conversas dos pássaros empoleirados nos galhos ... as histórias dos silêncios nas penedias ...

Sempre que posso, perco-me de olhar uma flor já esquecida no pé, extasio-me por entre os dourados e os vermelhos das novas roupagens da natureza, sigo a nuvem que faz e desfaz bonecos no firmamento ... deixo o vento desalinhar-me o cabelo e voar-me o pensamento ...

Sempre que posso, sento-me numa pedra qualquer do caminho, num muro perdido de curva de estrada ... ou simplesmente num tufo de erva fresca ...

... e esgravato a terra, sonhando-me com chão, com rumo, com destino !!!...

Anamar

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

" VIAJANDO ... "





Gostava de voltar a encontrar-te ... Pensa nisso.
Que idade tens tu agora ??  Quarenta e quatro, e tu ? Conversa estrategicamente contornada.  Para quê, pensar nisso ?...
Cinquenta vai fazer o António, breve, breve ... e o João ... Sempre o João !
Reencontrei-o, tinha trinta e oito ... Como é possível ?  Ainda foi ontem !...

Tudo inacabado !  Esquinas e mais esquinas.  Ângulos rectos de vida, a impedirem o olhar de se insinuar outra vez, no trajecto percorrido.
Sim, porque nas curvas, a gente sempre espicha os olhos pela paisagem que foi, e pela que há-de ser ...
Assim o é, nas encostas das montanhas.  E nada se perde quase em definitivo !

Tudo estranho !

Saudades da Maria.  Esquisito saber-se alguém nosso, que já não é bem nosso.  Que anda por aí ... Bem ?  Mal ?  Vivo ?
Sim ... tem que estar vivo.  Ainda que longe.  Ainda que seja um filho nosso ( que dizem ser um pedaço de nós ... )
Então, como pode um pedaço de nós ter-se soltado, e voejar ... sem que o saibamos ?
E como existimos nós, sem esse pedaço ?!
Por que é a vida feita de amputações ?!

Esquisito ... tudo esquisito !

Quero ir e quero ficar ...

Como é que alguém pode dizer  que vai  lutar sempre ... insanamente ... numa  roda louca de hamster ?!
Assim, sem pensar.  Engrenado,  simplesmente ... atordoadamente ?!  Sem sequer querer sentir o que deixa, o que dispersa,  nos restos que vai largando pelo caminho ?!
E que um dia morrerá ... mas que até lá vai continuar adormecido, autómato de um destino, morto-vivo,  sem o saber ?!...  Como pode ?!...

Percebo-me numa varanda, numa mansarda ... E só olho os bocados de histórias semi-escritas.
Passam vertiginosamente, ligeiras ... umas ... Outras estão amodorradas nas soleiras dos bancos de jardim ... sem pressa.
Fazendo render os minutos, que têm a mania de escoar-se rápidos.
Essas são as histórias que mergulham em silêncios.  As outras, tagarelam pelas ruas, gargalham nas esplanadas, que são sempre lugares de sol.

Gosto de me perder no penedo, em frente ao mar.  Porque aí, eu mando no horizonte.
Levo o sol, devagarzinho, devagarzinho, a percorrer a descida, ao ritmo que eu quiser.  E só o deixo dormir, quando eu também estiver cansada.
Comigo, o vento no seu zunzum entorpecente.  Comigo, os pássaros que vão e que vêm.  Que são livres e soltos.  Comigo, os caminhos incompletos que percorri.  As veredas que me fizeram retroceder.  As estradas sem saída, os ziguezagues do destino ... os labirintos da vida ...
Vida !...
Como o vai-vem das ondas lá em baixo, onde o mar se faz mar a sério.
Sempre diferente, enganadoramente igual, na melopeia da sua canção ... Como os dias ...

Os olhos húmidos ...

Sem nexo ... quase tudo sem nexo !

Acordar, dormir ... acordar, dormir.  Que brincadeira mais sem norte !...
Marionetas ... palhaços ... robots ... sei lá !
Como aquele homem de olhar macerado, que naquele café, lavou o olhar na água fria, como se quisesse acordar ... como se quisesse lavar a alma ...
E saíu sem dar por nada, sem estar ali ... carregando na mesma, o pesadelo escuro que lhe pairava por cima , e não sabia ...
"Marionetas" ... somos só marionetas.  "Peões de xadrês", disse o João.  E o "Arquitecto", a divertir-se sei lá onde !
E as lágrimas a escorrerem-me.  Porquê ?  Porquê isso ?!
Perplexidade e impotência !  Triste ... demasiado triste !...
Há tanto tempo já !...
Será  que  o  homem  ainda  anda  carregando  por  aí,  aquela  nuvem  negra,  ameaçando  borrasca ?!
E aquela sombra de desesperança no rosto, que a água daquele café não lavou ?!

O João já não lembra ... seguramente.  Só se eu o recordasse.  Então, eu tenho a certeza que ele lembraria aquela longa conversa, de pequeno almoço fora de horas ...
A existência ... o viver ...
Esta coisa do acordar, dormir ... acordar, dormir ...
E nós, pequeninos, pequenininhos ... por cá, neste terreiro de feira ... a sermos olhados, sadicamente ... Só a sermos olhados ...

Tudo estranho, tudo esquisito ... tudo sem nexo !...

Quero ir e quero ficar ...

Os olhos húmidos ...

Anamar

segunda-feira, 20 de julho de 2015

" QUASE SEMPRE VOU ... "





Todos os dias eu vou.

Vou para qualquer lugar ... onde o pensamento me leva.  Onde o coração me conduz.  Onde o sonho me transporta ...  aonde a saudade me desencaminha ...

Bato asas, olho o galho onde poiso, e lanço-me no azul.
E voo na brisa da tarde, além, além, e mais além.  Há muito que não tenho horizontes que me limitem.  Não tenho muros, paredes ou barreiras que me tolham.
Nem os caminhos sem sinais que os orientem, me constrangem.
Não tenho desertos, sequer dunas ociosas  com veleidades de prisão, que me demovam ...

Basta-me o ramo da cerejeira ... porque de lá vejo o Mundo.  E o Mundo passa a ser meu, refém da minha vontade, submisso ao meu desejo, escravo daquilo que invento.
E invento todos os dias.  E espero todas as horas.  E respiro esta ânsia marinheira de barco sem amarra, cada minuto !
Sou viajante de destinos sem destino, que desenho na mente, que imprimo no espírito, tactuo na pele e grito no vento !

Os meus pés pesam infernos.  Praguejaram-me raízes fundas, que tentam em vão prender-me na rocha ...
Cortaram-me as asas, pensando que me esqueciam o caminho ...
Cerraram-me os olhos, julgando que me faziam desistir da emoção da viagem ...
Taparam-me a boca, achando que me sufocariam o grasnido solto de gaivota livre na aragem ...
Ataram-me os braços, para que desistisse do abraço quente, do universo infinito ...
Esfacelaram-me o coração, não sabendo que ele continuaria a pulsar sangue quente, nas minhas veias ...

Mas até os caramujos são livres, e em cada onda que os afaga, enviam recados de esperança ...
Até as algas que pernoitam as marés, devassam os fundos e passeiam à bolina, pelo mar de Deus ...
Até as árvores milenares não se condenam ...
Silenciosamente, sobem acima de todas as copas, na floresta fechada ...
Corajosamente, engrossam troncos de vontade, e espreitam o sol, garante de vidas que ainda hão-de viver ...

Esqueceram-se que me reinvento.  Esqueceram-se que tenho mil vidas numa só ...
Esqueceram-se que sonho ...

E que todos os dias vou ... Vou para qualquer lugar !!!...

Anamar

sábado, 30 de maio de 2015

" HOJE ESTOU ASSIM ..."




Dou por mim a ter saudades daquela casa.
E dou por mim a sentir um nó estrangulador no peito, quando penso o que foi feito daquela casa.

Quando era Maio e os verdes se mostravam intensos, quando as flores  bordejavam o caminho, alindavam o "altinho", ou revestiam as paredes, com as cores variadas das buganvílias, ou os lilases das glicínias ...
Quando os noveleiros, os agapantos, as azáleas, as sardinheiras, as cinerárias ou as gazânias ( eternas glorificadoras do sol ) abriam, de repente, numa explosão que parecia da noite para o dia ... era uma promessa que voltava a cumprir-se.  Ano após ano, sempre a festa da Natureza se renovava.

Aquela casa também tinha um jacarandá.
Plantei-o com muito carinho, com a expectativa de uma manhã qualquer, poder acordar e  ver-lhe os cachos lilases, em desalinho, como caracóis de menina  rabina,  a adornarem o meu jardim ...
Era novinho, precisava crescer, desenvolver-se, e depois lá viria o dia em que me presentearia ... eu tinha a certeza.
Foi das primeiras árvores a ser cortada ... soube depois.
Nunca o jacarandá floriu, como não floriu mais por ali, um só lampejo de felicidade.

Aquela casa tinha o "rosto" do Gaspar, a imagem do Óscar, a placidez da Rita ...
Não a penso, que os não veja por lá.
O Gaspar, que nos contemplava com uma orelha em cima e a outra em baixo, quando escutava atentamente as conversas que lhe eram dirigidas.  Não nos espantaria, ou melhor ... só nos espantava ele não recalcitrar de seguida ...
Fazia maratonas  em torno da piscina.  Ladrava irritado, empoleirado nas patas traseiras, aos gatos abelhudos que lhe invadiam os "seus" telhados ...

Quando o prendíamos, em hora de sesta soalheira, era a vez  do recreio do Óscar e da Rita.
Ronceiros, como todo o gato que se preza, o Óscar que sempre foi atrevido e provocador, exibia-se a distância segura, num despautério sem tamanho, enquanto a Rita, medrosa que só ela, se escapulia sesgada, na protecção insuspeita das hortenses ...

O Gaspar alucinava então,  reclamando da sua ausência de paz !
Aquele jardim era seu ... Os gatos, que flauteassem pelos telhados que cobriam todo o piso térreo !

E era o que eles faziam, madrugada fora, p'la hora da fresca. Sonhadores, silenciosos, sonolentos mesmo, divagavam, ronronando, atentos aos ruídos e aos movimentos do pinhal.
Sobretudo se a noite era iluminada por uma lua cheia, daquelas !...

Aquela casa também era a "cara" da minha mãe.  Aliás, por justiça, aquele jardim "pertencia-lhe".
Ela limpava, cortava, dispunha as podas que dariam novas plantas ... ela regava ... ela perdia horas infinitas olhando cada botão que abria, cada prenúncio de nova flor ... cada borboto promissor de mais uma alegria ...
Ela trazia para as jarras,  flores frescas,  ela "escutava" as que floresciam no pé ... ela ralhava-me quando eu preguiçava, e não me dispunha a ligar as mangueiras ... "Coitadinhas, estão cheias de sede. Agradecem uma pinguinha de água, com este calor !... "

O tempo foi .  Tempo demais que já foi ...

Dou por mim a ter saudades daquela casa !...
Dou por mim a ter saudades infinitas daquele jardim ... daquele jacarandá que nunca floriu ... dos meus companheiros de ociosidade ...
Todos já partiram !...  Perdas nunca supridas.  Desgostos de alma e coração, nunca sarados ...
Presentes sempre, contudo !

Felizmente a minha mãe já esqueceu as suas flores.
Seguramente morreram à míngua de uma "pinguinha de água", na inclemência do sol já forte que se abate, e na ausência de alma caridosa por perto ... de coração condoído...

Aquela casa agora é silêncio.
Não tem gargalhadas, não tem a voz do Gaspar ou o sussurro ronceiro e mavioso da Rita e do Óscar, sonolentos sobre as telhas quentes ...

E dou por  mim  a lembrar que é Maio ...  Maio sempre volta ... só Maio, sempre volta !!!...

Anamar

sexta-feira, 8 de maio de 2015

" A PASSAGEM "




Quando for, esperemos que seja de mansinho.
Que seja no lusco-fusco da noite serena, quando os anjos baixam, e viajam no nosso jardim.
Quando os olhos estão cerrados e o coração passeia no roseiral, junto ao mar.  Por lá, andam os meninos com quem joguei ao agarra, com quem dividi a tabuada e apanhei borboletas.
E poderemos continuar a festa ...

Quando for, esperemos que a madrugada esteja cálida, as violetas perfumem o ar, e o sol ainda esfregue os olhos em silêncio, p'ra não perturbar o dealbar de um dia novo.
Quero que alguém me pegue na mão, e comigo atravesse aquela passagem em permeio das ramagens frondosas e frescas, escutando o som dos primeiros pássaros da manhã ... os sons da mata que nunca dorme ...
Os pardais entontecidos estarão a descer aos trigais, os abelharucos a saltar de galho em galho, e os gaios e os melros, a saudarem a Natureza-mãe ...

E será um passeio apetecível, porque é leve.
Os pesos  e as penas ficarão por aqui.  Até as memórias ficarão lá, no início da passagem, porque excedem a carga permitida para quem vai.

Quando for, quero um bando de querubins, de caracóis louros e olhos azuis, tocando uma sonata de Beethoven.  Quero os cheiros do meu chão, as cores do meu canto, e o sussurro da brisa mansa, p'ra cá e p'ra lá ... p'ra lá e p'ra cá ...

E quero que as ondas da maré baixa,  me cantem a canção dos búzios.  Quero perder o olhar nas asas largas das gaivotas espreguiçadas, e quero o sono verde das algas adormecidas ... para me lembrar que houve tempos de esperança ...

Quero o meu cabelo a voejar  em desalinho, solto das imperfeições do ser ...  o meu sorriso infantil a iluminar-me o rosto, e todas as letras que escrevi, empilhadas no maior poema de eternidade ...

Quando for ... espero que seja de mansinho, como a canção de ninar  no berço esquecido, para que eu adormeça sem sustos, sem lágrimas e sem dores ...

Quando for ... espero que seja um regresso ao primordial de mim mesma, ao gineceu que me formou ... ao útero da minha mãe !...

Anamar

domingo, 19 de abril de 2015

" SUFOCO "





Que falta me faz um ar ...
Que falta me fazem dez centímetros de terra, uma cancela, um caminho que nem precisava ser calcetado, um arbusto com anseios de árvore ... um quintalzinho de cinco por cinco ... um projecto de paraíso !
Que falta me faz, em desespero ... ao menos uma varanda que finja ser um jardim suspenso ... com parapeito onde eu pusesse as sardinheiras, com paredes, onde eu pudesse pendurar os amores-perfeitos ... com tecto, donde eu dependurasse os vasos de junquilhos, de narcisos, de jasmins ...
E uma casinha para passarinhos ... porque de certeza eles iam adorar a minha janela !
Ou então, faria olhinhos às andorinhas, para ver se tinha sorte, e elas, sentindo-me só, talvez me privilegiassem com a sua presença !...

Que falta me faz ir ali, colher uma braçada de alecrim, de giesta, de madressilva, umas pernadas de glicínia ... ou simplesmente apanhar uns cheiros, daquele caco velho, floreira inventada dos meus condimentos ...
Que falta me faz, agarrar um xaile, deitá-lo aos ombros, encarar a brisa, e percorrer os meus cinco por cinco, supondo-me latifundiária de um quintal de sonhos ...

Como eu precisava romper estas paredes, calcorrear estes telhados em voo rasante, passar para lá do além, julgar-me pássaro ... e ir ...
Como eu precisava que o sol me aquecesse a alma e o vento me enfunasse as velas ... e partir ..
Como eu queria tornar-me um grão da areia que o mar traz, o mar leva, rolando nos fundos, percorrendo os continentes ... descobrir os segredos dos búzios que são de todos os mares e de todas as praias ...
Ou ser alga esfarrapada dormindo na orla, largada pela babugem das ondas ... e sonhar ...
Como eu gostaria de ser a borboleta, que mesmo de noite encontra cama debaixo das estrelas, é livre nos caminhos ... e pode escolher ...
Ou, claro ... ser simplesmente a minha gaivota que ciranda por aqui e é dona de todos os céus ... e sorrir ...

Que falta me faz um ar ...
Que falta me faz, meter as mãos no enterroado do chão, deste chão que será berço de todos nós, um dia ...
Que falta me faz ter umas asas cá dentro, empoleirar-me no parapeito, e deixar-me ir, ao sabor da aragem, como se brincasse de  pára-pente.
E assim estaria no topo do mundo, e veria os rios, os lagos, as florestas invioláveis, os oceanos e as casas dos homens... tristes e cinzentas !
E assim,  esticaria os braços pelas madrugadas e apanharia bouquets de estrelas, antes de elas dormirem ...
E veria deitar a lua e amanhecer o sol ...
E seria bússola sem pontos cardeais ...rodando com os girassóis ...

E nunca mais me faltaria o ar, como agora !...

Anamar

sábado, 28 de fevereiro de 2015

APATIA ... ( desabafo ... )



A gente parte pensando que foge.
Mas a gente não foge, sempre fica no mesmo lugar !

Ando a escrever pouquíssimo.  Aliás, não ando a escrever.  Dito de outra forma, alieno diariamente uma parte de mim, importante.  Demasiado importante.
Sinto-me ressequida.  Tão  vazia que nada tenho de relevante p'ra falar ou p'ra contar.
Estou demasiado parada na vida.  A vê-la passar simplesmente.  E isso é um perfeito desperdício, porque por muito pouco que ela valha, é a única que tenho, é o único bem verdadeiramente meu, de que disponho.
E o absurdo é que tenho consciência disso, e não tomo providências.
Sou como aquele menino que está no pátio do recreio e não brinca, só olha os outros brincando.
Ainda assim, podia sentir-se feliz, mas não sente !...

Hoje está um dia radioso.  Um dia de Inverno a enganar de Primavera.
O sol claro e brilhante, o céu totalmente limpo e azul, parece um empacotado de vitaminas para a alma.
E eu, pareço procurar o lado esconso da vida.
Logo eu, que implico com janelas fechadas, persianas descidas, cortinas corridas.  Logo eu, que implico  com  páginas  viradas,  esquinas  dobradas,  muros  altos  e  sentidos  proibidos ...
Logo eu que refilo, dizendo aos outros que tenho tempo de ficar às escuras ... no coração e na alma ...

Mas estou assim !...

E fui embora.  Fui embora sem fé.
E estranhamente, foi a primeira vez que corri o pano, troquei de cena, e em que  me senti como o actor,  que sozinho no palco, olha com cansaço e decepção a plateia vazia, num espectáculo que não se fez !
Há silêncio lá fora e dentro de mim ... Demasiado silêncio ...

Criminoso !  É um crime o que faço comigo.  É imerecido acordar viva por cada dia que começa.
É injusto existir assim, com tanta razão para existir de outra forma !!!...

Anamar

sábado, 13 de dezembro de 2014

" O NEXO DA FALTA DE NEXO ... "



O dia amanheceu mergulhado em "nieblas".
Uma cerração desgraçada, adivinhava que o sol não se levantaria.  Temperatura a baixar abissalmente, um frio de Natal a instalar-se.
Na rua, as pessoas circulam apressadas. Golas levantadas, narizes vermelhos, ofegantes, passo estugado na tentativa de enganarem o ar gélido.  Das bocas, aquele fuminho denunciador de uma humidade brava, espalha-se, como  se de uma chaminé se tratasse.

Foi o primeiro dia, deste Outono beirando o Inverno, que efectivamente puxou dos "galões" e mostrou claramente que o tempo atmosférico até agora, tem andado a brincar a uma coisa que não é nem deixa de ser.  Hoje sim, temos um daqueles genuínos dias coerentes com o calendário.
Os faróis dos carros, neste lusco-fusco de noite às cinco da tarde, projectam um  cone de luz tremeluzente, no asfalto molhado.

E choveu toda a noite.
Os pingos das gotas de chuva nas vidraças da janela, o pingue-pingue metálico na calha do estore da vizinha de baixo, foi-me lembrando ao longo das horas de silêncio, que estaria  desagradável lá fora.
O gato preto ... onde andará ?
Continuo a entrevê-lo através dos estendais, prédio abaixo. Estendais agora vazios de roupa, em tempo de borrasca. Sobrevive no terraço, em completa solidão.
Onde se acoitará da água ?  Sim, porque do frio, não há lugar razoavelmente protector.

Os pingos ...
"Estás constipada ?" - perguntaram-me ao telefone.
"Não ! Estou apenas a pingar !" - respondi, justificando o fungar perceptível.
A gente pinga, de quando em quando.  Pingam os olhos, pinga o nariz, ao sabor do pingar do coração. Porque é aí que tudo começa !
Será que se pode ter saudades do futuro ?  Ou melhor, de um futuro que ainda o não foi, e apenas se idealizou ?
Será que se pode ter saudades de alguma coisa que não se viveu, só se adivinhou no coração ?
Porque saudades do passado, é fácil.  E lógico.  As saudades são os restos que ainda não partiram.

Sou capaz de olhar um galho adormecido, e cheirar o verde húmido da mata, quando foi apanhado...
Sou capaz de olhar um calhau rolado  das areias distantes, e inebriar a alma com a  maresia que dele se desprende ...
Sou capaz de ouvir os chocalhos do rebanho no pastoreio, e as badaladas da torre sineira ... ritmadas, cadenciadas, ecoando no silêncio, como então ...
Escuto com precisão o grasnido da gaivota planante, antes de repousar no alto daquele poste lá ...
E  escuto  também  as  exactas  palavras  ditas, os  risos  largados, os sorrisos  subentendidos ...
E oiço o Natal, e o ano vizinho ... e cheiro a intimidade da sala, e o calor da cama cúmplice...

Tudo ontem ...

E amanhã ?
Amanhã, é uma manhã como a de hoje, mergulhada em "nieblas".  É um vendaval  de chuva cerrada, que não deixa ver através das vidraças embaciadas.  É uma espécie de vereda que caminha  na ravina  e  termina lá ao fundo, subitamente ...  num penhasco  em garganta rasgada sobre o mar ...
Amanhã ... é uma manhã cinzenta de um Outono beirando o Inverno.
Amanhã é uma interrogação sem resposta.  É um futuro de  fé sem esperança ...
Amanhã é a ausência de nexo, numa história que desconhece o seu significado !...

Anamar

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

" UMA MÃO CHEIA DE NADA ..."





Os dias são o que deles fazemos ...
Os dias são o que neles vivemos ... Vivemos ou "vivêmos" ... p'ra se perceber melhor ...

Já gostei muito dos sábados !!!  Eram o meu dia sonhado e inventado, nos sete que desfilam na semana.
Era o dia esperado, criado e recriado nas asas da imaginação.  Mesmo que fossem sábados como hoje ... ou melhor, sobretudo se fossem sábados como hoje, de cara feia, cenho carregado, de escuridão, vento e chuva, distribuídos por quem gere estas coisas ...

Eram sábados com história ... muitas histórias ! Eram sábados de sala iluminada, de vamos ali e voltamos ... golas levantadas já, sábados de correr à chuva em chapéu dividido, com as gotas trazidas nas rajadas do vento  a molharem a meia de licra ( comprometendo a exigência da toilette ), empoleirada nos saltos altos em harmonia.
Eram sábados com vozes, conversas, risos e gargalhadas. Sábados aquecidos no tinto de  copo  de  pé alto,  adoçados  na  cremosidade  do  chocolate,  brindados  no  cálice  de  Limoncello ...
Olhares  cúmplices  e  segredos  trocados.  Eram  sábados  com  alma.  Eram  sábados  com  vida !
E um calor que trepava, amarinhava, e envolvia ... Capaz de  trazer à vida, alguém que partiu ...

Não era esta coisa de silêncio a esfumar-se entre as quatro paredes ... sempre  só as quatro paredes .
Não era este abandono gélido que me perfura até às entranhas.  Este som que não ecoa, estas palavras que não são ditas ... porque não há quem diga palavras, por aqui ...
Não era este frio que atravessa as vidraças, pela ausência de sonho, e me tolhe, me limita, me amarfanha ...
Não era esta ausência de tudo, mas sobretudo da esperança.
Não era o saber-me viva, apenas porque respiro ... ainda !
Não era o mitigar-me com os farrapos das nuvens, olhando o céu que se redesenha a cada golpe de vento.  Como se  a  faxina do firmamento  pudesse soprar-me  para longe,  este peso de nuvem negra sem arco-íris !...

E anoiteceu.  Anoiteceu abruptamente ... insensivelmente ...

E tanto sábado que eu  tinha então, ainda p'la  frente ... e tão pouco sábado que tenho hoje, entre os dedos ...

Ainda "cheiro" os sábados, porque cada hora era uma hora de ser. Cada hora tinha uma batida diferente do coração, e um sorriso específico nos lábios.
Havia os de sol, que eram dourados, só dourados, e havia os de chuva e escuridão que eram doces, apenas doces ...
E eu, era aquela ... de então.  Não esta de hoje, sem identidade definida, vazia, amorfa, indiferente.
Sonâmbula na vida, distante, esquecida ... cansada !

Oiço o grasnido da minha gaivota já perdido no cinzento fechado, aqui por cima.  As asas estendidas e o peito à aragem, levam-na por círculos longínquos, adormentados,  para bem longe da minha janela.
O horizonte limita-me a vista e tolhe-me o pensamento ...

Por que raio ainda existem sábados, nas semanas ?!...

Anamar

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

" HISTÓRIAS SEM HISTÓRIA ..."


O tempo está isto. Está esta coisa que se sabe ...
Mas também, sempre ele tem a culpa de tudo ! Por isso, ri ou chora, adocica ou sopra de fúria, se, e quando quer. Com estados de humor indiferentes aos estados de humor flutuantes, dos simples mortais.

Afinal a gente sempre reclama. Sempre achamos, do que reclamar.
É a humidade, é a chuva, é o sol forte demais, a desuso, é a ventania desabrida, é o ar trovoado que nos azara a cabeça, ou é o cinzento de um céu mal pintado ... Enfim, qualquer coisa é "bode expiatório", qualquer coisa justifica o desconforto, a vontade estranha de fugir, de voar p'ra outros céus,  outro chão ...
Qualquer coisa explica esta estranha ânsia de levantar ferro e zarpar ... zarpar por aí, por onde não houvesse vivalma ...de preferência ... digo eu !

Até os patos estão fora do lago...
Mais de vinte ponteavam há pouco a relva, na bordadura da água.
Cá fora a chuva cai, copiosa, insensível. Tenebrosa.  Toda a noite, toda a madrugada e por todo o dia, vento fortíssimo arremessou torrentes de água contra os vidros das janelas, empoleiradas neste terceiro andar, sobranceiro ao verde frondoso das árvores baixas e da relva do golfe, e frente ao cinzento uniforme e plúmbeo do céu, sem horizonte que o limite.

Está um tempo de borrasca.
O firmamento não tem nuvens ... é uma nuvem !   Inteiro, escuro e triste, desliza açoitado pelo vento, empurrado, como se fosse fumarada enfarruscada de chaminé de fábrica.
As árvores vergam, ameaçando quebrar, a temperatura caíu abissalmente, antecipando um Inverno em Outubro ... e as rajadas ruidosas, assobiam desaconchegando tudo e todos. Fustigando o corpo e macerando a alma !...

O silêncio por aqui, ouve-se ...

À excepção do assobio da ventania que se esgueira por qualquer não detectada frincha, à excepção do tamborilar forte das gotas de chuva nas vidraças, e do lamento queixoso da ramaria ... tudo o mais, é quietude.

Vi-os há pouco , à passagem ... aquele casal, na beira da estrada.
Dividiam uma protecção única, para a chuva impiedosa.  As roupas ainda ligeiras, obedecendo à convenção calendarizada, levantavam as golas, fingindo proteger.
Eu juraria estarem completamente encharcados, porque o vento desordenava o percurso da chuva .
E cingiam os corpos na tentativa de aconchego ... e seguravam o chapéu sem esperança, titubeante aos golpes desabridos ... e tinham os rostos iluminados, radiosos e coloridos do calor terno que os inundava, com  uma felicidade e um sorriso tão rasgado, que desafiava a autoridade dos céus ...
Eu diria que passeavam pelos intervalos das gotas, provocadoramente, desatentos ...
Tão demais o que os unia !!!...Tão de menos a intempérie que os rodeava !!!...

Anoiteceu-me junto às vidraças.
Sou eu, os dois gatos e a cadela, o universo espectador deste fim de dia.
Eles dormem.  Eu, alongo o olhar através da penumbra que desce mais e mais, de instante a instante, apagando os contornos deste quadro sem caixilho.
Espicho os olhos por entre as cordas que despencam dos céus, na tentativa de divisar alguma coisa, alguém ... lá longe ... mais além ..
Uma sombra que entrasse solidão adentro... Uma ária que me trinasse um rouxinol ... Um perfume que me subisse da mata ...
Ou tão só, na esperança  de descobrir onde pára a nesga de azul e os raios de sol ( neste anoitecer castigador ), que eu tenho a certeza, pairavam sobre o chapéu de chuva daqueles dois ...

Anamar

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

" DELETEM !... "



Estamos naquela hora em que o sol nos foge numa fracção de segundos.  Apenas o tempo de procurar os óculos, para percebermos que ele já foi por hoje, naquele azul diluído num laranja-fogo, lá longe ...
Está a por-se bem mais à esquerda, no meu horizonte visual, por detrás das antenas de telecomunicações encarrapitadas incomodamente no alto de um terraço, frente à minha janela.
Ainda assim, deu p'ra ver que se deitou numa espécie de água de maré baixa, quando o mar recua, e fica aquela serenidade no areal.

Levantei-me não há muito, constatei ...  E pensei como foi curto o meu dia, como se encurtando-o mo anestesiasse, doesse menos, por menos horas ter de confronto comigo mesma.
Porque, de facto, enquanto os sonhos vão e vêm na sala escura do nosso "consciente onírico", tudo desfila à revelia do real, e com sorte, deambulamos por espaços, por pessoas, por momentos que já foram, e que se não foram, muito provavelmente gostaríamos que tivessem sido ...

Estou assim ... não diria desequilibrada ... Não gosto do termo.
"Desestruturada", encaixa na perfeição.
Desestruturada é alguma coisa fora do contexto, fora do enquadramento ... fora da moldura.
Aquele pedaço de pano que esgaçou, sem hipótese de conserto, está totalmente desestruturado.

Um dia fica-se assim.  Quando os olhos, o peito e a mente, não obedecem a ordens.
"Florzinha de estufa", como diria a minha filha, que tem pouca queda p'ra perceber estas coisas fora dos enquadramentos rígidos de racionalidade, pragmatismo e objectividade, na realidade em que se mexe .
Fraca capacidade de resiliência.  "Frescuras" ... diria, se fosse brasileira.  Falta do que fazer ... dir-se-á.  "Vida santa " ... dirão os que analisam de fora ... " que não valorizo".
"Querer mais o quê ?... perguntam-se.
Tontinha, insana ... mal agradecida e parva !!!

Estão desde já, todos perdoados !
Estas coisas, não entende quem quer.  Sim, quem pode.  Quem é capaz.  Quem percebe.  Quem sente, ou sentiu .

Quase me culpabilizo por não ter uma razão comezinhamente palpável, que justifique o esfiapar deste tecido de refugo, que é a minha mente, sobretudo nestes dias coloridos a ocres e vermelhos de Outono, com o sol a dormir por detrás das antenas, só p'ra me desfeitear ...
Uma razão daquelas que fazem estatística.  Que engrossam colunas.  Insuspeita.  De peso.  Uma boa razão, de valer a pena !
Porque nos tempos que correm, só tem direito a lamúrias existenciais, quem sofrer de males maiores, aqueles que atacam as pessoas ditas normais, por azar, acidente, ou destino, nesta época de crise bravia.
Esses sim, mereceriam o nosso respeito, comiseração e solidariedade.

Só  que  há  "males  maiores",  tão  "mortais"  quanto  outros.  Que  uns  entendem ... outros  não !...
Também, não vou agora aqui discutir o sexo dos anjos !

"Em criança não nos despedimos dos lugares.
Pensamos que voltamos, sempre.
Acreditamos que não é a última vez " - diz Mia Couto.

Eu sempre olho para os lugares, bem ao contrário ...  Achando que é de facto a última vez.  Lamentando que o seja, quase sempre.
Por isso também, guardo uma religiosidade solene quando o sol amodorra, e os silêncios possíveis ocupam os espaços vazios por aqui.  Sempre penso, que muitos o vêem deitar sem que o vejam acordar amanhã ...

E pareço ouvir aquele meu amigo ( alguém, já não sei quem foi, dizendo a sorrir, abanando a cabeça desaprovadora ) : "Lá estás tu a ver as coisas dessa forma !  Tens é que pensar, quantos lhe assistem o despertar, isso sim !"

A velha história do copo meio cheio e meio vazio ...  A demagogia à solta !...

Este texto hoje, é um desconchavo mental.  Uma peça de "patchwork" de má qualidade !
Retalhos mal ajambrados, coisa atamancada e perversa ...
É lava de vulcão, cujo vómito súbito seria impensado ...
É tudo, e é nada !  É só um "botar para fora", neste Outono pesado e cansativo.

Querem um conselho ???   "Deletem !... "

Anamar

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

" OUTONO "


 

O Outono parece ter chegado.  Mais cedo, afinal.
Depois de um Verão atípico e de uma Primavera que não tivemos, o tempo deu uma volta, os dias acinzentaram, o sol ganhou aquele brilho estranho que se percebe estar a apagar-se, embora ainda seja quente.
Um calor, que não nos espantaria  se de repente ouvíssemos trovejar.

Iniciaram-se as tarefas de preparação da " toca " para o Inverno que há-de vir.
Os putos andam ligados " à corrente ", pelo reinício das escolas.  Como se isso fosse a última maravilha do mundo, e como se os livros que agora afagam, miram e re-miram com curiosidade, não fossem rapidamente motivo de saturação e incómodo ... Não demora !
Os pais andam  obviamente a reboque, às vezes mais ansiosos que os próprios miúdos.

Quem já não tem esses "filmes", mesmo assim anda a sofrer da "síndrome" outonal.
Numa sanha estranha e inexplicável, lança-se à limpeza das casas, a fundo, lança-se à "purga" dos roupeiros, numa ânsia de os extirpar do antigo acumulado, e considerado já de inviável utilização.  Parece pretender-se deitar fora, junto com tudo isso, e com urgência, um pouco do "lixo de alma", pesado, cansativo e sufocante.

Na época da queda da folha, numa das fases de mudança profunda no ano, o ser humano também assume o espírito de equinócio, que desta feita, à semelhança da Natureza, é um período de interioridade, introspecção e  intimismo.
É o período de recolhimento, de hibernação, de adormecimento, de concha.

Eu, pelo menos, sinto assim !

Muito difícil sempre, atravessar este "túnel" !
Muito penoso sempre, arranjar forças para andar adiante.  Mais difícil de ano para ano, parece.
É como um fardo mais e mais pesado, com acumulação de tudo o que de negativo a vida parece encarregar-se de nos adicionar ao percurso, sempre na razão inversa da força anímica de que dispomos, e que enfraquece a olhos vistos.

Mas por outro lado, acredito que o Outono da vida, possa ser um tempo de privilégio para alguns.
Para aqueles que têm ninho, lura, porto, cais, luz, âncora ...
Para aqueles que têm raízes escoradas, referências seguras, que têm sossego no coração e vivem quietude na alma.
Esses devem fazer um tempo de fruição, de bem-estar, de enriquecimento espiritual, de acerto com o "caminho", de pacificação do espírito, de repouso interior, de plenitude gratificante, sem sobressaltos ou angústias, estou certa ...

Imagino aquela casa, bem simples, de quarto e sala, aninhada naquele jardim pequeno, de plantas bravas a bordejar o areão da entrada.
Imagino aquelas duas janelas ladeando a porta, e a cancela em madeira velha franqueando o acesso ... a gemer nas dobradiças ...
as roseiras de rosas singelas, com o  aroma tépido das Santa Teresinha, e as ervas aromáticas perfumando o ar.
Imagino os gatos ronceiros por ali ... Os de dentro e os de fora, em harmonia plena ...
E os pássaros que ficaram, buscando o aconchego. Porque os outros, já não pulam pelos galhos ... Partiram para longe, faz tempo !
Imagino a mesa junto à janela, salpicada de potes com alecrim e madressilva, a esmo ... espaço de escrita ou de leitura, na moldura do jardim lá fora ...
uma música calma, perpassando em surdina, para não espantar o som da aragem nas folhas, nem macular o tamborilar dos salpicos de chuva na vidraça, de quando em vez, em ameaços, apenas ameaços ...
Imagino uma luz acesa, velada, íntima, para não sobressaltar os sonhos, nem dispersar os pensamentos ...
Imagino aquela casa de Outono ... imagino ...

Por que será que imagino aquela casa, que de repente, pelo sonho parece tão minha ... se nunca a vi, se nunca a vivi, se nunca a senti ??!!...

E no entanto, é como se a cheirasse, como se já a tivesse palpado, como se conhecesse com perfeição a rugosidade da madeira da arca, como se soubesse com clareza a intensidade da luz que penetra pela janela ... como se ouvisse com nitidez o estalar do areão do caminho sob os pés que avançam, como se adivinhasse sem erro, os "gatos" daquele prato  do escaparate, como se olhasse a ramagem do cretone que forra o sofá ... e a soubesse minha, de há muito ...
É como se me passeasse por um espaço mais que familiar ... íntimo ... secreto ... e tivesse em mim um calor doce de compotas, num embalo de amarelos, ocres e vermelhos ... de castanhas quase no braseiro ...

Quase sinto a brisa lá fora, lembro as notas  do murmúrio do vento, e os cheiros que vêm voando, e que eu não sei se são salgados ou doces, se vêm do mar ou da serra ...
Tenho um xaile breve pelas costas, tenho o cabelo prateado em corrente líquida de intemporalidade, e tenho um cesto no braço, repleto de rosmaninho ...
Quase sinto ...

Por que será que temos estas coisas ?  Por que será que nos deixamos invadir por desnortes, que são isso mesmo... coisas inexplicáveis de orgias mentais, pura elucubração de demência ??!!...

Serão reminiscências de vidas passadas, ou sonhos de vidas futuras ???!!!...

O ser humano é meio doido,  mesmo !!!...

Anamar