terça-feira, 5 de agosto de 2014

" VINTE ANOS PARA GOZAR A VIDA DE REFORMADO "

Aproveitando a preocupação cultural deste meu espaço, faço questão de aqui deixar este texto, que parece vir a ser o primeiro de cinco, a serem publicados nos media, sobre a temática abordada, domingo após domingo.

Considerei-o particularmente bem escrito, denotando uma visão sobre o tema, real, objectiva e muito clara. De alguma forma nele me revi, e ele subscrevo.

Teria pena que ele se perdesse na "poluição" informativa, em que tantas vezes se transforma  a comunicação social, ou  na amálgama de assuntos, disseminada pelas bancas, efémera e rapidamente relegada ao esquecimento.

Como tal, aqui o deixo, neste espaço familiar, desejando que o apreciem devidamente.

Anamar




GERAÇÃO 45-64

Vinte anos para gozar a vida de reformado


Qualquer classificação geracional uniformiza o diverso, mas ajuda a perceber o que é comum. Os que nasceram entre 1945 e 1964 testemunharam ou protagonizaram as grandes mudanças sociais da história recente do país e agora estão a reinventar o que é ser velho. Este é o primeiro de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações.

Manuela Matos Monteiro pensou muito nisto antes de se reformar, aos 59. Aos 65 anos, uma mulher tem 20 pela frente. “É outra vida!” A geração anterior não se podia dar ao luxo de esperar tanto. As pessoas deixavam de trabalhar e iam “gozar a vida” antes que ela se apagasse. O que é “gozar a vida”? Deixar-se estar na cama até tarde, viajar, passear sem pressa, oferecer côdeas de pão aos patos, contar histórias aos netos, ficar horas a ler, em suma, fazer o que uma vida inteira de afazeres foi adiando? Quanto tempo dura o prazer de ter tempo? Eis um dilema novo que se coloca a uma geração habituada a desbravar caminho.
Os norte-americanos chamaram “baby boomers” aos que nasceram entre 1945 e 1964. Depois de 16 anos de depressão e guerra, houve um súbito aumento de natalidade nalguns países europeus, nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália. Esse fenómeno, associado ao crescimento económico e à esperança no futuro, ficou conhecido como “baby boom” - explosão de bebés. O rótulo difundiu-se pelo mundo fora.
Não é que tenha havido pico de nascimentos em Portugal. É que o rótulo é antes de mais cultural, explica António Fonseca, da Universidade Católica. E, à sua maneira, o país até viveu uma explosão demográfica. Houve um invulgar crescimento populacional em 1974 e em 1975 - pelo regresso de gente que estava no Ultramar e em países europeus afectados pelo choque petrolífero, como a França e a Alemanha.
Quando Manuela era jovem, Portugal era jovem. Em 1970, havia 33 pessoas maiores de 65 anos por cada 100 com menos de 14. Agora que envelheceu, Portugal está envelhecido. No ano passado, a proporção era de 133 para 100. Mas o que tem ela, filha de um industrial, licenciada em Filosofia, em comum com Zulmira Oliveira, filha de um operário, que fez a 4ª classe e aos 12 anos já era empregada de balcão?
Apesar de singulares, as vidas inscrevem-se em regularidades feitas de marcas culturais, como tantas vezes explica o sociólogo José Machado Pais. Manuela e Zulmira testemunharam ou protagonizaram as grandes mudanças sociais da história recente.
Nasceram numa imperial ditadura. Mobilizado para o Ultramar, o homem por quem Zulmira se apaixonou foi prisioneiro de guerra, retornou com uma tristeza infinita. Já o homem por quem Manuela se apaixonou preparava-se para fugir com ela para França antes que o mandassem para a guerra. Da noite para o dia, a luta pela liberdade deixou de ser um acto clandestino, passou a ser uma festa.

O país abria-se. E a ideia de “juventude sã”, livre de prazeres “fáceis e degradantes”, típica dos regimes totalitários da Europa do século XX,  ia dando lugar a uma juventude com vontade de experimentar, de viver o que antes não se podia, sequer se desejava, porque a falta de liberdade não afectava só o que se fazia, também o que se queria.
Luís Fernandes tem 53 anos e ainda se lembra do dia em que a sua professora de canto coral apareceu com um disco dos Pink Floyd debaixo do braço. “O rock ensinou-me revolução à sua maneira”, comenta. Não era só a sonoridade. Era tudo em volta dela, incluindo as festas que passaram dos bombeiros para as garagens. “O slow dançava-se apertado e à meia-luz. Era o corpo da mulher que estava lá. Percebíamos que podíamos ser livres até nas nossas relações. O ‘peace and love’ e o ‘sex, drugs and rock & roll’ são ícones dos anos 60 que a Portugal chegaram só depois do 25 de Abril.”
O agora professor da Universidade do Porto, especialista em comportamento desviante, cresceu numa família “pequeno-burguesa”. Ninguém falava de política lá em casa. A política, no tempo da ditadura, era coisa de poucos. Nos dias da revolução, estava no Liceu de Gaia e foi lá, nas reuniões dos delegados de turma, que aprendeu o que era democracia. As pessoas levantavam-se, discursavam, gritavam e cada braço valia um voto. Ao chegar à Universidade do Porto, em 1980, haveria de usar roupas coloridas e cabelos compridos, de ser um freak, cultura pós-hippie de jovens urbanos e esquerdistas, que ouviam rock progressivo e psicadélico. 
Nichos de modernidade despontavam, em particular, em Lisboa e no Porto, onde os filhos da insípida classe média tinham tempo para discutir. Fora das maiores cidades, o país era outro. Era devagar que Portugal rural se abria, à boleia da televisão e dos que tinham saído para as cidades ou para o estrangeiro. António Fonseca que o diga. Cresceu em Oliveira de Azeméis, município rural em vias de industrialização, e aprendeu a revolução no Movimento de Acção Católica. Fazia daquilo uma militância como outros da sua idade faziam nas juventudes partidárias – caso de Pedro Passos Coelho (PSD) e de António José Seguro (PS).
Lembrar-se-ão ainda muitos de ver, pela televisão, Mário Soares, então primeiro-ministro, a assinar a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia. E de acreditar que vinha aí um futuro glorioso. A promessa era clara: não estavam fadados à “triste vidinha” da geração anterior, poderiam ter uma vida mais ou menos parecida com a dos povos europeus de que Portugal se queria aproximar. 
O poder de compra era em 1970 metade do da média europeia. Entre 1973 e 2011 foi-se aproximando, de forma progressiva. Alguns começaram a usufruir de prazeres como jantar fora, ir ao cinema ou passar uma semana de férias no estrangeiro. Confirmava-se a promessa de dias melhores, apesar da desigualdade gritante persistir.
O Portugal de 1970 não era só rural e miserável. Era semianalfabeto, empoeirado nos costumes, tacanho nas ideias. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, 27,7% da população era analfabeta; só 0,9% tinha curso superior. Volvidos 40 anos, quando os primeiros "baby boomers” chegaram à idade da reforma, Portugal tinha 5,2% de população analfabeta, 14,8% com curso superior.
“Sobretudo quem era de origem remediada deu um salto muito grande”, nota António Fonseca, que conta 50 anos e tem duas filhas, de 17 e 19. Quando tinha a idade delas, os tempos da vida estavam muito bem definidos. O comum era ir à escola, estudar; sair da escola, começar a trabalhar. A pessoa começava a trabalhar e era adulta. Na dúvida, a tropa fazia de um rapaz um homem. Poucos chegavam às universidades e esses tinham a certeza de que iriam encontrar um emprego à medida. 

A vida era mais linear. Mostra-o até a trajectória de Luís Fernandes. Arranjou aos 24 anos o emprego que ainda agora tem e aos 28 comprou casa e casou-se. Nem precisou de um fiador para obter o crédito à habitação. Divorciou-se. Viveu em união de facto. Tornou a casar-se. E este registo íntimo também é marca de uma geração.
Os estudos da socióloga Anália Torres elencam razões para a multiplicação do divórcio: vulgarizou-se a pílula contraceptiva; aumentaram as liberdades individuais; as mulheres entraram em massa no mercado de trabalho; perdeu peso o sector primário; as famílias encolheram; as relações amorosas tornaram-se mais exigentes.
Os nascidos entre 1945 e 64 passaram grande parte da vida a ensaiar novas formas de estar. E agora, que têm entre 50 e 69 anos, ensaiam novas formas de envelhecer. Alguns quiseram reformaram-se ou estão a reformar-se antes do tempo. Cansaram-se de trabalhar – sobretudo as mulheres, que tiveram de conciliar a vida profissional com a vida familiar, quase sempre com companheiros incapazes de partilhar tarefas domésticas. O marido de Zulmira nem um ovo sabia estrelar. 
A sensação de libertação não dura sempre, avisa António Fonseca. Para a sua tese de doutoramento sobre o envelhecimento, inquiriu 502 reformados e percebeu que a satisfação com a vida cai a partir do quinto ano – “a partir do nono é dramático”. Isso tem diversas explicações e uma delas é a falta de objectivos para os quais canalizar energia. “O gozar a vida é um fogacho. Alguns ficam deprimidos. Arrastam-se pelas superfícies comerciais. Fazem o circuito das doenças. Qualquer sinal os leva ao médico.”
Há quem opte por trabalhar para lá da idade da reforma – uns por razões financeiras, outros para manter uma identidade assente no trabalho. E nem todos os que pedem reforma antecipada querem apenas fugir ao presente. Alguns definem um novo projecto de vida, tratam de reinventar-se.
Manuela e o marido, João Lafuente, trabalham ainda mais agora do que quando ela era professora no ensino secundário e ele se ocupava da informática num banco. “Sempre achei que uma reforma precoce era uma armadilha, sempre achei que tinha de ter um projecto”, diz ela. “A pessoa está habituada a cumprir um horário. Queixa-se disso uma vida inteira, mas sente desconforto quando encontra o tempo aberto. Tenho de ter horários para os meus dias renderem e fazerem sentido.”
Partilham o gosto pela fotografia nas galerias Espaço Mira e Mira Fórum, que abriram no ano passado. Atraem com elas muita gente a Campanhã, freguesia relegada do Porto. “ É uma vida completamente diferente da anterior”, exclama ela. Adorou ser professora. Não se zangou com o ensino. Queria fazer outra coisa. E sente que exerce o seu sentido de cidadania ao “marcar Campanhã de forma positiva”.
Tudo se torna mais difícil quando a reforma antecipada é imposta pelo desemprego e não há margem para recomeçar. A pessoa pode sentir-se um “resíduo humano”, na expressão provocatória do sociólogo polaco Zygmunt Bauman.
No final do mês de Agosto, Zulmira há-de pedir reforma antecipada. No centro de emprego já lhe explicaram que é “o melhor”. Completa 63 anos em Dezembro. Desde os 59 que não consegue regressar ao mercado de trabalho.  Dizem-lhe que naquela idade já não apetece aos empregadores.
Trabalhou 20 anos numa loja. Despediu-se para abrir o seu próprio negócio. Abriu-o em 1986 e fechou-o em 1999. Tudo ia bem até ao marido descobrir um cancro de pulmão. Durante um ano, viveu para cuidar dele. Quando morreu, ficou demasiado desorientada. Nunca pensou que fechar a loja fosse o fim. “Eu sempre adorei o comércio. Pensava que ia morrer no comércio.”
Tinha 49 anos. Fez arranjos de costura para sobreviver. Ainda trabalhou, primeiro, a tempo parcial como repositora numa cadeia de supermercados, depois a tempo inteiro como recepcionista numa empresa de design. Não sabia falar inglês. “Só podia atender chamadas em português.”
Dedicou-se aos netos. Tem dois – um de 13 e outro de sete. Ama-os, mas não deixa que a anulem. “Não posso estar limitada. Os meninos se não puderem vir não vêm. Têm outra avó. Gosto de ir tomar café ou de ir jantar com as minhas amigas. Tenho ido à Baixa com ideia de tomar café e às vezes nem tomo, mas sabe-me bem ir. Vou dar a minha voltinha e faço de conta que fiz uma viagem muito grande. “
A ideia de que o desempregado ou o reformado está disponível leva algumas famílias a tomarem de assalto o seu tempo. E esta geração, ao contrário da anterior, já tende a não achar que isso é um desígnio. Se começar a ser muito solicitada, pode queixar-se de falta de vida própria.
Antes, um velho era um velho. Percebia-se pelo vestuário, pela postura corporal. Até parecia mal usar calças de ganga. “Isso era ser uma velha gaiteira, alguém que não sabia envelhecer”, diz Manuela. “Neste momento, todos os velhos são gaiteiros!” Vingou o culto pela juventude. O mercado publicitário já percebeu. Há cada vez mais anúncios com grisalhos muito enxutos. E a questão que se impõe, repete Manuela, é esta: “A pessoa tem 64 anos, está saudável, tem energia, tem competências, tem uma perspectiva de vida de vinte anos. O que faz com isto?”
Haverá muito para repensar para lá dos programas de voluntariado mais adequados a esta nova realidade, que já não tem só terceira idade, também tem quarta e quinta. António Fonseca defende um modelo de passagem gradual à reforma. “Numas empresas isso não seria possível. Noutras seria e essa possibilidade devia ser dada ao trabalhador. Com reforma gradual ia preparando o passo seguinte.”
O impacto nas contas públicas é cada vez maior. Os pensionistas da Segurança Social já somavam 2.981.635 em 2012; os reformados, aposentados e pensionistas da Caixa Geral de Aposentações outros 603.267. Todos juntos representam 40,1% da população residente com 15 e mais anos. Muitas vezes são eles que apoiam filhos com vidas profissionais periclitantes - tantas vezes espantados por perceberem que, afinal, não haveria sempre crescimento. A sua geração vive melhor do que a anterior, não é líquido que a seguinte possa dizer o mesmo. 

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

" E MAIS O QUE EU INVENTAR ... "



A gente faz os lugares ...
Sem  dúvida,  cada  vez  mais  me  é  óbvio que não adianta estar-se  no paraíso, se  o  paraíso  não  está  em nós ...

Por isso, pode estar-se na maior solidão e abandono, rodeado de gente, pode estar-se infeliz  frente a um cenário deslumbrante, ou no mais cobiçado canto do mundo, no espírito de qualquer mortal ...
E ao contrário, conseguiremos descortinar o sol e sentir o seu calor aconchegante a envolver-nos, conseguiremos sentir-nos plenos ainda que sós, preenchidos de emoções e de paz, mesmo em condições precárias,  mesmo com poucos requisitos cumpridos, ainda que teoricamente talvez isso não fosse expectável .

Picasso dizia " Há quem transforme o sol  numa insignificante bola amarela, e há quem transforme uma bola amarela no próprio sol !... "

E isto é absolutamente verdade, todos o sabemos e sentimos.
A felicidade não está nas coisas, nos lugares, nos momentos ou nas pessoas que os preenchem.  A felicidade está, ou não está, dentro de nós, num coração desarmado, limpo, disposto  e  aberto a deixar-se tomar, invadir, preencher ...
O recheio sempre tem que ser interior ... é o da alma e do coração !  O conteúdo é o da disponibilidade do espírito, para transformar as pequenas coisas insignificantes, em grandes acontecimentos gratificantes.

A fotografia mais genuína de um lugar, não é a que cuidadosamente captamos com a máquina.
Essa é uma mera imagem impressa numa película, numa memória.
Essa está despida, nua, vazia ...  Essa, é "curta", incompleta e é irreal.
A verdadeira fotografia não existe, nem vale a pena tentar fazê-la, porque ela é um misto de vectores indescritíveis, incomensuráveis e intransmissíveis.
Ela transportaria todos os valores de cor, luz, brilho, som e imagem, que a objectiva captou e a tecnologia processou, duma forma aparentemente perfeita e sofisticada.  Mas também e sobretudo, ela teria que transportar toda a amálgama de componentes respeitantes à subjectividade, à sensibilidade, à emoção ...
Ela teria que conter o som ( não o que ficou registado na câmara, mas aquele que apenas os nossos ouvidos "ouviram" ... ), o calor ( aquele que nos embriagou e nos impregnou a alma ... ou o friozinho que nos percorreu, porque isto, ou porque aquilo ... ), o silêncio que talvez então nos cortava a respiração ... o tique-taque desordenado das batidas do nosso coração ... ou a mansidão das lágrimas que desceram em emoções incontidas e teimosas ... nesse momento ...
E teria que conter os cheiros que não se descrevem ... nunca se descrevem ... Os sentidos, todos os sentidos também ...
E os sentidos são isso mesmo ;  "sentem-se", não se racionalizam, nem têm alfabeto com que se digam ...

... E  obviamente  "essa"  fotografia,  "essa"  imagem  única  e  exclusiva, é  pessoal, é  impartilhável, é indescritível ...
Viveu-se e é nossa, só nossa ...  É riqueza pessoal.  Morrerá connosco, ou com a morte das nossas memórias !!!

O mesmo com os lugares ...
Posso vivê-los, ou posso só inventá-los.
E vivendo-os, ainda assim, sempre os viverei dependendo daquilo que me preencha e eu transporte dentro de mim, nesses instantes, da minha capacidade de ainda me emocionar, me surpreender, da minha disponibilidade de coração, da grandeza da minha alma ... do espaço que dentro de mim, eu ainda tenha p'ra sonhar ...

Em suma, da força de que eu disponha  para transformar o tal  borrão amarelo, num imenso sol na minha vida !!!...


Anamar

quinta-feira, 31 de julho de 2014

" TANTO TEMPO JÁ !... "




Pensava eu com os meus botões, olhando o insípido cinzento do dia, num Verão nem carne nem peixe :  faz hoje vinte e dois anos que a vida me deu uma rasteira daquelas !
Faz hoje vinte e dois anos que o meu pai me deixou ... E com ele, partiu aquela ingenuidade e bonomia com que acreditamos as coisas certas da vida .
Como se a vida tivesse "coisas certas" !...

Foi o primeiro grande revés, assim uma espécie de experiência em proveta, para ensaios futuros.
A gente balança, a gente degusta o sabor azedo do abandono, a gente experiencia mesmo a doer, uma orfandade estranha, como o menino sozinho que no deserto  olha as areias monotonamente iguais, a perder de vista, sem caminhos ou nortes ... e não sabe para onde há-de ir ...
E zanzamos por ali, sem atinar muito bem se apanhamos os cacos, se reconstruímos o puzzle, se somos capazes de seguir adiante, apesar daquela injustiça contra-natura  e mortal.

Depois, recomeçamos.
E recomeçamos com novos códigos, novas formas de sobrevivência, novos acreditares, novos empenhos ...
Porque o ser humano tem inata em si, a capacidade regeneradora.

Recomeçamos ano após ano, mês após mês, dia após dia, por cada nascer e cada por de sol.
Por cada alegria ou cada tristeza, por cada insucesso ou cada vitória, por cada riso ou por cada lágrima !
Esgravatamos cada pedra coberta de musgo, e com dedos sangrando, progredimos na encosta ... quando quase já não acreditamos !

Renascemos com cada filho que se aninha no nosso colo, com cada neto que nos conta a sua história, com mãe velha, sequiosa de mimos ...
Reerguemo-nos com cada amor que pinta de arco-íris o nosso céu ... ainda que o arco-íris seja passageiro, e sirva só de trampolim às estrelas ... e nós o saibamos ...
Amarinhamos até ao pico da montanha, sempre que precisamos ver o céu azul, quando as forças ficam falhas ... uma e outra vez ... E não sossobramos ...
Olhamos as flores, e deixamos que os colibris bebam as nossas lágrimas teimosas, que às vezes ficam cegas frente ao universo, complacente e generoso ... E ajoelhamos, que é o primeiro degrau  para  a humildade do percurso ...

E recomeçamos, com as bengalas dos que nos amam, depondo armas de mágoa, deixando raivas e ódios pelos atalhos e veredas.
Aprendemos a perdoar, porque queremos e somos capazes ... E um coração sem dores impressas, pesa-nos menos na jornada !
Perdoamos, mas não esquecemos ...
As páginas do livro foram escritas, e sempre as folheamos, quando nos faz falta ...

E recomeçamos, quando parece que já não há muito para recomeçar.
Mas sempre há !   Porque todos os dias têm alvoradas,  e todas as manhãs acordam de uma noite.
E se hoje choramos, amanhã iremos seguramente gargalhar ... porque a roda é isto... voltar ao princípio, todas as vezes que se fechou o ciclo !

Há vinte e dois anos que fiquei mais pobre ... Ilusoriamente mais pobre, apenas !
O meu pai partiu, só porque tinha que partir ... Era a hora, urgia cumprir o decidido.

Deixou-me  uma nuvem de afecto, à qual só eu tenho acesso. Da qual só eu conheço a chave de entrada.
E ganhei um querubim de olhos verdes, gestos doces e asas protectoras, que me toca ao acordar, que me embala ao adormecer, e que conversa comigo à surrelfa, quando ninguém está por perto, na nossa linguagem  única, nos nossos diálogos de silêncio, e eu o "alugo", com  as  minhas  dúvidas, as  minhas ansiedades,  as  minhas  inquietações  e  os  meus  medos ...

É com ele que renasço, quando ofego de cansada ...
É com ele que recomeço, quando penso que já não vale a pena !...

Anamar

quarta-feira, 30 de julho de 2014

" TRANÇAS E LAÇOS "


E depois ela chegou do alto dos seus quarenta anos, e disse :  " Mas tu não tens a noção ?  Perdeste o senso do ridículo, logo tu que sempre receaste isso ... Não vês que tens quase setenta anos ?! "...

Ela, a outra, emudeceu, sucumbiu ao "murro", e ficou fora de combate ...

Afinal, tudo se resumia a ter feito uma trança discreta no cabelo em jeito de bandolete, por sugestão da cabeleireira que teimou em mudar-lhe o visual ... deixá-la mais jovem ...
Mais jovem e bem ...  que visse no espelho, que constatasse como era verdade ... " Olha que bem, p'ra não ser sempre a mesma coisa !..."
Contemporizara, até achara que era verdade. Um ar mais agaiatado, sem o ser, espreitava-lhe das montras e dos vidros das portas, no regresso a casa.

Nunca se atrevia muito à vontade,  a fugir do clássico com que enchia a vida.
Contudo,  sentia-se contente com alguns rasgos temerários, com que às vezes a desafiava .  Como se fosse uma pirraça ou uma partida que lhe pregava, em resposta a tantas outras com que ela a mimoseava.
Parece que um qualquer "lápis azul" no subconsciente, se habituara a mandar e a desmandar, e admirava a independência e a estaleca dos excêntricos.
Achava  que  sem  dúvida era necessária uma "robustez" psíquica,  para passar sorrindo, p'lo meio da multidão ... p'ra desafiar a "carneirada", impor o seu estilo independente.
Exagerava, claro. Mas desta feita, sentia-se furiosa.
"Quase setenta anos" ?  Ela, que não havia muito iniciara a década, não parecia sequer tê-los, e pactuara com  a designação de "sexalescente", quando a brincar camuflava o desgosto do estatuto ?!...

Mazinha ela ... a outra.
Incisiva, cirúrgica, sabendo bem demais onde dava a trancada,  conhecendo à légua a ferida onde escarafunchara ...

E ostentava  a "autoridade" própria de quem sabe do que fala. Ostentava o ar sabedor dos que falam de cátedra.  O jeito provocatório de mestre-escola, que se vê compelido a chamar à palmatória, o aluno "pintas" que deu uma de insubordinado.
Onde é que já se viu, achar que já pode ... que "ainda" pode ???!!!...

Ostentara uma rapidez no gatilho, na avaliação sumária, sem direito a defesa  por parte de quem se "passara", quem perdera o norte, a razoabilidade e o senso de conveniência ...

"Ai, ai ..." - parecia dizer ..."Olha-me esta agora, armada em menina !  Se não ponho cobro nisto, qualquer dia aparece-me de tótós, laços e saia de roda ...   Senil ... a minha mãe só pode estar a ficar senil !..."

Acabou-me com a festa !...
Aquela maldadezinha de fim de dia, pôs-me o rabinho entre as pernas, e fez-me sentir qual rafeiro vira-lata, envergonhado, que não entende por que não pode mijar no pára-choques do carro.
Fez-me sentir uma prevaricadora  entontecida, sem enxergar que a  idade confere acrescidas  obrigações sociais  e  pessoais,  parece ... ao  invés  de  conferir  estatuto,  posto  e  autonomia  (pensava eu, asnaticamente ...).
Idade impede já  (ao contrário do que às vezes eu também achava ), que se possam atrevidamente  enfrentar  descontraídamente as "red lines", que se saltem de ânimo leve, as barreiras ... impede que se tenham veleidades serôdias, tonterias inconsequentes ...
A menos que fiquemos indiferentes a que nos achem "gá-gás" ... é claro !...
E disso, ela, a outra, queria obviamente poupar-me ...

Acho que estava sol, mas apagou-se-me um pouco, no horizonte.
E senti, como se deve sentir a andorinha a que tivessem cortado asas ...
Senti, como se deve sentir a criança que se acha a mais linda da festa, até perceber que talvez não seja bem assim ...

Esvaziei-me.  Como o balão que teve a pretensão de voar, e dez segundos depois, está no chão ...

Acho que ela nunca irá atinar até onde foi...
Talvez...Talvez daqui a vinte e tal anos ela consiga perceber, se ainda puder lembrar ...
Mas sempre vai achar que exorbitei ... tenho a certeza !

Por que é que a gente põe filhos no mundo,  filhos que não conhecemos e que não nos conhecem ???!!!...

Anamar

domingo, 27 de julho de 2014

" NADA A FAZER !!!... "




Não sei se todos serão assim, ou se pelo menos as mulheres serão assim.

Cheguei a uma fase da vida em que se me impõem à frente dos olhos, as limitações inerentes ao avanço dos anos.
Ao longo dos tempos,  sempre fui uma "descontraídona",  uma atrevida e uma desafiadora em relação ao seu percurso.
Achava-me invencível, achava que nada me poderia tirar a robustez. , a agilidade, a invencibilidade... e até a dose saudável de loucura, que achava ser-me devida !...
Como por feitio sempre desafiei os dias e os anos, sempre os provoquei, e sempre fui bem mais saudável comparativamente a muitas colegas e amigas da minha faixa etária, sempre vivi descontraída, sempre ousei isto e aquilo em contra-ciclo com as posturas convencionais, sempre desvalorizei  talvez  demasiado inconscientemente, o espectro dos males possíveis ...

Contudo  o  tempo passa, e de repente há um dia em que às vezes, por nada em especial, parece que acordamos para a realidade, e consciencializamos que talvez,  na verdade,  tenhamos vindo  a  perder capacidades,  desenvoltura,  sagacidade ... E  não  achamos  graça !...
Deixámos de ser escorreitos física e mentalmente, deixámos de ter aquele entusiasmo, de ter aquela disponibilidade de espírito que nos permitia arriscar, achar graça a tantas coisas, avançar p'ra tantas outras, ainda com o desejo de aventura, e com a adrenalina de outros tempos.
Ficámos comodistas, arreigados a uma vida demasiado morna, a disposição para o risco ainda que calculado desapareceu, os medos instalam-se, a noção de fragilidade e vulnerabilidade agiganta-se, a convicção de limitação também, o fantasma do perigo, do susto da incapacidade se instalar, fica premente, e premeia-nos com ansiedades e pânicos, injustificáveis muitas vezes !...

Dou por mim a ter cuidados redobrados, na rua, com as quedas ( parece-me sentença certa, uma fractura de perna, se cair ... Não faço por menos ... )
Dou por mim a verificar desgostosamente, como fica difícil amarinhar a um banco, p'ra acertar o relógio de parede, e a ter medo de subir...Até porque as pernas viraram chumbo ... com os diabos !...
Dou por mim a constatar como a cabeça parece perra, e a linguagem pouco oleada, no falar e no escrever ... eu, que sempre fui desembaraçada para o efeito ... E afianço que começo a ter sinais de Alzheimer incipiente ...
Dou por mim, a ver com desgosto, que objectivamente não vejo ... ou seja, se calhar tenho que me habituar a viver num "aquário" de água turva, porque contornos bem nítidos, olhar acutilante, preciso e límpido ... talvez nunca mais !...
Que ouvir ... bom, se olhar o mexer dos lábios do meu interlocutor, é mais fácil ... Senão ... os sons misturam-se todos, e ao meu tímpano poucos chegam definidos ...
Dou por mim, dei pela primeira vez este ano, na viagem que sozinha fiz recentemente para o estrangeiro, como habitualmente, a apavorar-me na eventualidade de lá poder adoecer, na inventada hipótese de um acidente, de um ferimento ( eu, que sempre achei com alguma inconsciência, é verdade, que não haveria de acontecer logo a mim, e que o isolamento e a distância não eram problema ... Afinal o mundo é logo ali, tudo ao virar da esquina !...
Dou por mim, em última análise, a evitar fazer exames médicos de rotina, porque ... receio o resultado, e mais o que "eles" dêem em inventar !... (rsrsrs)

Bolas !  Isto é velhice ?  É degenerescência mental ?  É estupidez mesmo ???...

Acho que é apenas mais um capítulo da velha guerra sem tréguas, travada entre mim e o avanço dos anos e da vida.
É a inaceitação da inevitabilidade da progressão inelutável do tempo ...
É a  raiva  de estimação contra o ciclo da existência, que me parece sem sentido, sem lógica, sem explicação e sem razão ...
É a  sensação azeda de ser a tal peça de xadrês movida sem regras ( e sem que ninguém mas tenha ensinado, algum dia ) ...
De ser o tal actor largado no palco onde uma peça se desenrola, e a quem ninguém teve sequer a gentileza de  explicar  qual  o  enredo ... menos  ainda  se  queria  participar  da  mesma ...
De ser a marioneta mexida a cordéis, aleatoriamente, ao sabor dos dedos caprichosos de quem tenta dar-lhe vida ...
É a velha sensação, de que alguém prepotentemente  goza, ou perdida ou indiferentemente, com os peõezitos por aqui largados ( nada muito importante, afinal ... ), mera carne para canhão lançada em cenário de guerra ... E que cada um  invente, que se safe o melhor que possa ... que se "amanhe" dentro do contexto ... que descortine como sobreviver !...

E depois há os que sabem fazê-lo, e os que não, os pragmáticos e os que não, os que estrebucham e os que não, os que se importam, e os que se indiferentizam e seguem ... amodorradamente ... anestesiadamente ... apaticamente, sem grandes ondas, turbulências ou convulsões ... navegando à bolina ... acomodados que são !...
E os que não !!!...

É demasiado rocambolesco e de mau gosto tudo isto.
É um "nonsense" sem tamanho, um filme de humor negro de mau gosto, um sketche dos Monty Python em fim de carreira, que não consegue sequer, arrancar-me  já,  uma  só  derradeira gargalhada !!!...

Anamar

domingo, 20 de julho de 2014

" DÁ QUE PENSAR ... "



Já abordei vezes demais o tema das redes sociais, a sua visibilidade, a sua utilização por parte dos cibernautas, e a consequente modelagem social  a que deram origem.

É cada vez mais agressiva, abusiva, invasiva e absurda até, a forma como a generalidade dos utilizadores delas se servem.
Nomeadamente o Facebook, que é praticamente um contrapoder, ou um poder paralelo que ombreia e põe em causa todas as estruturas sociais, profissionais e políticas, nacionais e internacionais, por mais fortes e privadas que devessem ser.
É portanto, verdadeiramente,  uma arma de alcance indeterminado.

Por ele passa de tudo, como se sabe.
Ele é utilizado com todos os fins, sejam inofensivos e mais ou menos louváveis, sejam de devassa e com torpes intencionalidades.

Nele já li diários escritos por pessoas com a vida a prazo, que o utilizaram para partilharem as emoções, e as experiências, indistintamente, quase até ao seu último suspiro.

Nele já se anunciaram actos suicidas, suicídios em directo, atentados, episódios inconfessáveis do ser humano.

Nele já se festejou o milagre da vida, devassando-se e partilhando-se com anónimos, a entrada neste mundo, de seres que não sabem nem sonham !...
E o inverso também.

Depois, todas as especulações sobre tudo, o imaginável e o inimaginável, por lá circulam.
Fazem-se e desfazem-se relações, amizades e romances ...
Queimam-se pessoal, política e socialmente, muitos cidadãos.
Denunciam-se tramas e conspirações.
Forjam-se ídolos, e apeiam-se outros ...
Criam-se correntes de solidariedade humanitária, mais ou menos credíveis, e defendem-se causas, aproveitando-se a velocidade da veiculação da informação entre os povos ...
Defendem-se   verdades   e   princípios,  inventam-se   mentiras  e  calúnias,  delata-se  e  injuria-se ...

E depois, a ironia da vida encarrega-se de criar factos que nos dão que pensar :  Cor Pan, fotografou o avião da Malaysia Airlines que o levaria à morte, horas antes desse desfecho, e publicou-o no Facebook.
Com alguma ironia tétrica, com a displicência, a bonomia e a boa disposição de quem eventualmente inicia uma viagem de recreio ou férias, brincou em ar jocoso, numa clara alusão ao voo da Malaysia Airlines com desfecho enigmático há alguns meses atrás :  "Se também desaparecermos, o avião era este !!!"...

Cor foi uma das quase trezentas vítimas do brutal atentado aéreo, ocorrido com um avião civil, sobre o espaço aéreo fronteiriço Ucrânia-Rússia, abatido por um míssil terra-ar.

Seguramente, ao postar a foto da aeronave e a "boutade" anexa, nunca em verdade terá suposto que seria a última frase que debitaria neste espaço, e que com ela ficaria tristemente conhecido mundialmente,  pelas piores razões na sua vida ... exactamente a sua morte !!!...

As  curvas  e  contracurvas  do  destino  que  dribla  tudo  e  todos,  em  tempo  real,  à  velocidade  do impensável !!!...

Dá que pensar !!!...



Anamar

sexta-feira, 18 de julho de 2014

" MENINO DO BAIRRO NEGRO "



Encerrando as minhas dissertações sobre a recente estada em S.Tomé e Ilhéu das Rolas, e não querendo repetir-me ou enfatizar excessivamente, verdades e sentimentos experimentados, faço aqui uma espécie de resenha e conclusão final, sobre tudo o que lá vivenciei.

Tudo foi visto e experimentado por mim, pelos meus sentidos, coração e alma ...
Como tal, terá a subjectividade inerente e incontornável, obviamente.
Contudo, suponho ter sido justa, isenta, realista, face a uma realidade que muitas vezes mais pareceu ficcionada, pela beleza natural esmagadora, pela dureza e rudeza da vida, pelo mix de sofrimento e alegria de todos os santomenses .

A eles deixo o meu agradecimento, a eles presto a minha homenagem !
Em particular, aos MENINOS de S: TOMÉ, a quem presenteio com este "Menino do Bairro Negro" tão a propósito, e tão sabiamente cantado pelo nosso Zeca Afonso !

Espero que tenham gostado de viajar comigo !


Um recuo no tempo, retorna-me a S. Tomé.

S.Tomé e a sua ilha satélite, o Ilhéu Gago Coutinho, conhecido por Ilhéu das Rolas,  foram mais uma aprendizagem humana, enriquecedora do meu eu.
Como tudo o que é natural, primitivo, não trabalhado pelo Homem, este destino encerra a ingenuidade, a pureza e a autenticidade de um local onde a nossa mão ainda não fez estrago.
Como tal, um local de verdade !

Olhando atrás, se quisesse ressaltar aquilo que efectivamente mais me tocou, teria seguramente grandes dificuldades em fazê-lo.
Contudo, sem grande dúvida, duas coisas, deixaram claramente marcas de ternura no meu coração :
por um lado, a beleza natural pujante e avassaladora por todos os cantos, num excesso louco de cores, de sons e de cheiros ... por outro, a doçura e a espontaneidade das suas crianças, os tais "bandos de pardais à solta" que nos rodeiam, nos envolvem, nos tocam, e nos amam de imediato !...

São meninos sem nada, absolutamente nada ...
Não têm alimentação de qualidade, ou sequer alimentação ( poder-se-á dizer ), não têm medicamentos, não têm brinquedos, não têm roupa, além dos andrajos rotos e sujos que vestem, não têm livros, jogos, objectos escolares, higiene ou sequer possibilidade de a ela aceder.
Têm escassa assistência médica, dependente sobretudo, do voluntariado generoso do pessoal da AMI, Médicos Sem Fronteiras ou Médicos do Mundo.
Vivem numa sociedade em que o salário médio é de sessenta euros !!!...
Não têm nada, mesmo !!!

Têm-se uns aos outros, nas brincadeiras infinitas, na aldeia, na mata, na terra, nas pedras, nos rios, nas praias.

Têm os mais novos para olhar, os bébés para cuidar, para carregar, como os filhos que terão mal cresçam, e já adolescentes iniciem famílias numerosas, com uma dimensão absurda, numa sociedade culturalmente poligâmica e pomíscua, que como tal, tenho o pudor de valorizar, menos ainda julgar.
Existe uma desinformação doída, na população  ( ainda se acredita que a pílula do dia seguinte passa por uma lavagem na água do mar, após as relações sexuais ).

Têm de sobra, uma dádiva carinhosa para quem deles se aproxima ...

Têm uma alegria ímpar e contagiante, e expressões de doçura infinita !

São meninos que gostam do toque, que nos dão as mãos e nos guiam nas caminhadas pelo meio das suas aldeias.
São meninos que querem mais e mais fotografias, e ao verem-se nelas, exprimem uma felicidade ímpar, saltam, riem, batem palmas ...
São meninos que nos mexem no cabelo, com fascínio, e com ele nos fazem tranças ... E sempre nos acham bonitos ... " a amiga é bonita" !...
São meninos que querem os nossos beijos, nos rostinhos sujos e empoeirados e correm ao nosso lado, disputando o melhor lugar junto de nós ... que acabaram de conhecer ...

Deixam-nos assim com uma emoção pesada no coração, pois nos confrontam com a aleatoriedade perfeita da existência , com a efectiva e real dimensão da penalização das assimetrias sociais.
Quase nos culpabilizamos de uma sorte que não pedimos para ter, de um privilégio que nos coube, e nada fizemos por ele, a não ser pertencermos ao outro lado do Mundo ...

E sentimos a magoada impotência pela incapacidade de revirar o destino, impotência face à distribuição de  uma qualquer justiça social que deveria ser equitativa entre todos os cidadãos, indistintamente do continente a que pertencem, do chão em que nasceram, da sociedade em que foram criados ... sobretudo quando se trata de crianças !

S.Tomé e o Ilhéu das Rolas foi também uma dolorosa e séria lição de vida, foi uma história narrada com personagens reais, bem frente aos meus olhos, foi uma aprendizagem e um abanão na acomodação instalada que possuímos, e de que ainda assim, sempre reclamamos ...

Voltarei !
Gostaria de voltar, sim, a olhar os rostinhos sujos, de ranho à boca, dos meninos dos caracóis e trancinhas, de olhos impressionantemente meigos e desarmados, e escutar outra vez aquela palavra-senha, na correria louca, desenfreada atrás do carro que se afasta : " Doce, doce, doce !... "


Esta, a minha sentida homenagem de gratidão a todas as crianças com quem me cruzei, nesta minha digressão por terras de S.Tomé e das Rolas.

OBRIGADA !


ZECA AFONSO

Menino do Bairro Negro


Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz

Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Vira também

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Se até da gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti

Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção

Anamar

quinta-feira, 17 de julho de 2014

" UMA ANÁLISE FRIA E OBJECTIVA "


Os mercados são a mais genuína expressão de um povo, creio.
Por eles desfilam múltiplos perfis humanos, por eles passa  toda uma miscigenação de raças, de rostos, de cores, de vozes e de cheiros. Eles são uma mostra extraordinariamente rica, de um  multiculturalismo evidenciado.
São o pulsar e  o  fervilhar de gente,  são o ritmo cardíaco  que nos desafia  a  um mergulho ao âmago da alma e do coração de um país ...
Eu diria que eles são imbuídos de um espírito ritualista e mágico ...

Em África, em especial, há todo um "colorido" peculiar.
As frutas que sempre são variadas, misturam-se com os legumes, nas bancas, no chão e nas cestas.  Têm cores e formas inenarráveis e curiosas.
Confundem-se com a cor dos panos que envolvem as mulheres da cabeça aos pés, desde os turbantes, aos que à cintura suportam os bébés nas costas.
O peixe, fresco ou seco, de todos os tamanhos, cores e formas, de espécies que desconhecemos muitas vezes, aguarda em baldes, aguarda no chão, ao sol, às moscas, à poeira ...
O "brouhaha" é ensurdecedor. Os decibéis vão muito acima do normal ... e há uma azáfama qualquer, e uma qualquer alegria contagiante, no ar !...
Mas é assim !
Tudo isso é "normal".  A realidade nada tem a ver com a nossa, os ritmos de vida também não !

Com as suas particularidades, há contudo sempre muito de semelhante nos mercados.
Eles são ponto de encontro diário e de estadia em permanência de horas, dos vendedores, que por isso já são uma família, acredito.
As mulheres permanecem acocoradas, sentadas por ali ;  as crianças, quase nascem, e já ocupam posto no mercado.
Dentro de caixas de cartão, à sombra de chapéus de sol que mal protegem do calor abrasador de África, iniciam as suas vidas ... gerações dos que serão os putos livres e soltos que parecem eclodir do nada, em cada esquina das aldeias, em cada canto da mata, em cada beira de estrada ...

E depois há o âmbar da pele  nos corpos expostos, suados mas cheirosos ...
Há o branco luminoso de dentes impressionantemente regulares e saudáveis ...
Há o requebro e o dengue lento, de ancas roliças que passam, lentamente, preguiçosamente, com algum erotismo nas curvas e no olhar ...
Há os rostos lavados e sem artifícios, das crioulas ... e há os sorrisos rasgados, ou as gargalhadas trocadas, entre quem está e quem circula ...

Sempre que visito um país estrangeiro, procuro não falhar o mercado local.
Procuro não falhar, observo, "bebo", tomo o pulso, analiso, aprendo ... registo, se puder e tal me for consentido.
Nunca utilizo a câmara fotográfica com humanos, sem que o requeira, sem que isso me seja previamente autorizado. Sempre respeito o direito à privacidade e à imagem individual.
Foi assim em Bali, em Zanzibar, em Samaná, em Cuba, Costa Rica, Tailândia ... por aí ... em tantos outros sítios desse mundão !...
Foi também assim  em S.Tomé.

As crises sociais e as assimetrias, amargam os povos.
Na maior carência, as pessoas desesperam e perdem os louváveis valores que as norteariam.
As raivas e os ódios recrudescem.  A miséria  sempre é má conselheira, e desencava "machados de guerra".
Ela traz à tona o que de pior o ser humano alberga no coração.  O Homem cega, e assume posturas selváticas inexplicáveis.  Acredito que em qualquer lugar do planeta, e mesmo em qualquer civilização ...

Experimentei, estranha e surpreendentemente, este estado de coisas em S.Tomé.
No meio de um povo que beneficia de uma Natureza generosa, pródiga e espectacular, um povo que tem as crianças mais doces do mundo, um povo cujas raízes afinal cruzam as nossas, as portuguesas, experimentei  tristemente, pela primeira vez na vida, atitudes odiosas de rejeição, racismo e xenofobia .
Só porque aos olhos dessas pessoas, eu era turista, eu teria dinheiro ... e eles, o povo, ostentava bem, a miséria em que sobrevive, o sofrimento em que arrasta as suas vidas !!!...

Obviamente  não  faço  juízos  de  valor.  Obviamente  relativizo,  porque  obviamente  até  entendo !...
Apenas lamento.  Não por mim, mas pelos santomenses  mesmo, já que este país, sem recursos, pobre e largado ao seu destino ( estamos em África, é bom não esquecer ... ) apenas terá como futuro, a meu ver, a aposta  no café e no cacau, em exportação devidamente dinamizada e implementada, em grande escala ( o que ainda não acontece ), e evidentemente, o turismo, fonte promissora de receitas, graças a  todo o potencial natural de que dispõe.

Mas claro que não a qualquer preço ... E é pena !...

Anamar

quarta-feira, 16 de julho de 2014

" O PREÇO DA INSULARIDADE - aquele embarcadouro ... "



Estamos na  " gravana " ou estação seca, aqui em S. Tomé.

Nunca pensei que no Equador pudesse haver frio, e dias infindáveis sem que o sol rompa a abóbada cinza carregada, aqui por cima das cabeças.  Um capacete denso, de nuvens persistentes e espessas consegue pintar de tons pardos e escurecidos, o multicolorido desta ilha, que para mim era o paradigma eterno  da luminosidade, da cor, do brilho e da alegria.
Criei essa fantasia baseada em informação deficiente, seguramente, ou simplesmente porque ainda que melhor documentada estivesse, creio que nunca acreditaria que pudesse ser diferente.
Mas o facto é que já aqui estou há quatro dias, e ainda não vi o sol, a temperatura ambiente é desconfortável ( até porque vim desprevenida para termómetros mais baixos ),  há algum vento, e banho de mar, também é mentira, já que as correntes e as marés são muito fortes e perigosas.

As cores deste maravilhoso ilhéu estão obviamente prejudicadas, não obstante a beleza esmagadora oferecida por uma Natureza excessiva, rica, luxuriante e esfuziante também ...
Assim, parece que perambulo num cenário fora de contexto, ou que contemplo um postal ilustrado a preto e branco.
O dia tomba repentinamente cedo.  Pelas seis da tarde é mais que lusco-fusco, e se quando amanhece o rosto do dia se anunciasse mais magnânimo e promissor, com sol a raiar, céu azul e temperatura morna, apeteceria sair da cama, vir para o exterior, absorver os cheiros, os sons, extasiar-me, deixar-me simplesmente envolver.
Assim, durmo até mais tarde, e experimento uma sensação de desperdício de  tempo.

Mas é assim !
A época seca caracteriza-se climatericamente desta forma, e não há nada a fazer ... A não ser, claro, regressar na época das chuvas, do sol forte e do calor impiedoso ... ( rsrsrs )

A lancha que liga o ilhéu a S. Tomé, vai e vem  três ou quatro vezes por dia.  Carrega quem trabalha do lado oposto àquele em que vive, e os turistas que chegam e que partem.
A insularidade tem o seu preço, de facto !

No pequeno cais de encosto da embarcação, juntam-se os autóctones :  as mulheres em desocupação de fim de tarde, a criançada no terreiro da Igreja, paredes meias com o embarcadouro, indiferente, nas brincadeiras sem fim, os rapazes da ilha lançando conversa fora e graçolas de circunstância, actualizam notícias da Ilha do Chocolate.
Aqui, é local de encontro e de lazer.  As notícias vão e vêm, as boas e más novidades também.
Eu diria que é o ponto mais importante do ilhéu.  É uma janela que se abre ao mundo, ao mundo que está do lado de lá, nem que o lado de lá seja  tão simplesmente a ilha-mãe, S. Tomé !
É a única ponte que têm.
Por ela seguem os doentes em busca de auxílio na capital, seguem as crianças para a escola, sonhando com outros futuros ... seguem os mortos, a caminho de S. João dos Angolares ...
É  o local de despedidas e de chegadas, com todas as tristezas, incertezas e angústias, mas também todas as esperanças, ilusões e quiçá alegrias, dos que partem e dos que chegam.
Ali se despedem os que vão, em busca de trabalho, de sorte e de melhor destino, seja em Portugal, em Angola ou Cabo Verde ...
Para trás ficam os idosos, os familiares chegados, os amigos e os filhos, que dirão um adeus interminável, enquanto a  "João de Santarém" se afasta mar adiante, e até que a distância a reduz a um pontinho lá longe, perdido no meio do oceano, em direcção à Ponta da Baleia.
A dor e as lágrimas, a nostalgia e a saudade  ficarão afogadas na indiferença salgada das ondas, até ao dia em que de novo a embarcação se corporizará, quando as águas devolverem a casa, aqueles que haviam partido ...

Nas Rolas, contudo, tudo terá permanecido exactamente igual, como se o tempo tivesse adormecido, amodorrado na sombra do caroceiro  gigantesco do terreiro poeirento, paredes meias com a aldeia, paredes meias com a Igreja, paredes meias com o mar e o cais de embarque ... sempre com o chilreio da criançada descalça, suja e rota, em correrias, nos jogos de futebol, ou nas corridas dos carrinhos improvisados !!!...

Este, o preço da insularidade !!!...

Anamar

terça-feira, 15 de julho de 2014

" LEVE - LEVE ... "



Não sei se é leve esta vida ...

Esta gente não tem água em casa, não tem luz nem todos os outros bens que julgamos indispensáveis.
A roupa lava-se no tanque da aldeia, estende-se no chão, nos muros, nas pedras e sobre as plantas.
A água traz-se em latas ou contentores, aos ombros, desde cisterna ou poço.
Quer-se comer, planta-se a terra, faz-se a horta.  As frutas, são as árvores fruteiras da mata que dão. E são infinitas !
Derrubam-se os "caroços" do caroceiro, abrem-se com uma pedra, no chão, e de dentro, come-se o pinhão.
A fruta-pão, a papaia, a jaca, a carambola, a  castanha, a  cajamanga, o  sape sape, o maracujá, a  banana  ( sete variedades diferentes, na ilha ), a goiaba, a manga, o cacau ou o café ... espreitam a cada canto.
Os cocos aliviam a sede.  Caídos aos milhares por todo o lado, abrem-se de qualquer jeito.  Ou com uma catana certeira de gente experiente, o que ainda assim arrepia o coração de quem vê e nunca fez, ou simplesmente sob o impacto de um pedregulho valente.
Depois, é só beber ... A água é sempre fresca !

Lança-se a canoa ao mar, e traz-se peixe, ou mergulha-se e busca-se nas profundidades pródigas.
Põe-se a arma ao ombro e caçam-se rolas, ou morcegos.
Os animais andam soltos pela aldeia e pela floresta.
Por ali, cabras e cabritinhos, porcas e leitões, galinhas, patos, cães e gatos, deambulam e chafurdam por entre os humanos ... por conta própria e entregues ao destino !

Nos céus, os morcegos avistam-se. Vêm, ao cair do dia, de S. Tomé, dormir às Rolas, numa migração diária em busca de fruta madura. São frugívoros.
Andorinhas rasam as águas, mas são os falcões que imperam nos céus de S. Tomé.

O café colhe-se, torra-se e mói-se.  O cacau, também.
Toda a qualidade de plantas desta floresta luxuriante, se usa na alimentação, na higiene, e na cura ou prevenção de maleitas.
A erva-mosquito usa-se no "calulu" ( prato típico confeccionado com legumes, óleo de palma, peixe seco, ou mesmo  frango ), ou ainda no molho de fogo.
A mandioca, o coentro selvagem ( de sabor idêntico ao que conhecemos, numa planta com aspecto totalmente diferente ), o chuchu, o inhame, a pimenta, a cana de açúcar e tantas outras espécies vegetais, enriquecem o prato santomense.
O vinho de palma, colhido em bica instalada na própria palmeira, pelo colector nativo que escala o tronco em segundos ... trepa... por nós, se o provarmos ...
O micócó utiliza-se em omeletes, em sopa, estimula o apetite, purifica o organismo e potencia o desempenho sexual masculino, quando em chá.
A casca do mucumbli é usada num chá de efeitos gastro-intestinais, ou mesmo como analgésico.  Por isso, também se usa como banho aliviante das dores.
As folhas da goiaba e do abacate têm também o mesmo mérito.
Já as folhas frescas da salaconta, servem para confecção de chá, ou mesmo como bem-estar para as mulheres durante o período menstrual.
Das flores de ylang-ylang, a árvore do perfume, fazem-se essências de cheiro idêntico ao jasmim  misturado com amêndoas, ou simplesmente preparam-se  banhos agradáveis e cheirosos.
O Goji Berry, folhas de sabor ácido e toque áspero, mascadas ou esfregadas nos dentes, tornam-nos brancos.

Estes, alguns exemplos desta parafarmácia natural, à disposição, em que as medicinas alternativas têm passado de geração em geração, são prescritas pelos curandeiros, e constituem rico património cultural, mantido incólume desde tempos ancestrais.
Trata-se de um invejável repositório de saberes, transversal aos tempos.

A floresta de S.Tomé, equatorial, cerrada e quase impenetrável, possui as mais diversificadas espécies de madeiras.
As árvores, de corpulência esmagadora, dão sombra e dão a matéria-prima para a construção das embarcações.
Sobretudo as "okas", árvore que pode atingir 30 metros de altura, e com um diâmetro de tronco impressionante, associada a espíritos maléficos  da época da escravatura.  O seu abate carece de autorização governamental.
Das madeiras da floresta, num trabalho de maestria e criatividade, sai também o artesanato local.
É o caso da árvore-cinderela, que por ser bastante macia, permite a escultura de tudo o que possa imaginar-se.

As crianças da aldeia fazem a primária aqui nas Rolas.  Existe uma escolinha na aldeia de S. Francisco, que alberga a cerca de dúzia e meia  de crianças do ilhéu.
Estudam matemática, língua portuguesa e meio físico e social.  Só mais tarde, quando acedem às classes posteriores, estudam os seus dialectos ( crioulo fôrro de S.Tomé, lunguiê  do  Príncipe, e  angene -  dialecto da  zona  dos  angolares, também  na  ilha  de  S.Tomé ).
Por isso, diariamente se levantam às cinco horas da manhã, e com mar manso ou "grande", rumam, na lancha, até à capital.
Só regressam perto das cinco horas da tarde, na última viagem que faz a travessia diária para o ilhéu.

" Leve-leve" ... Tudo para eles é "leve-leve" ...
Com  ar  tímido, doce  e  sorridente,  garantem-no ao  visitante  incrédulo ... Repetem-no, em jeito de verdade !...

Não fiquei nada convencida !
Acho sim, que o coração dos santomenses é que é "leve-leve", na forma adocicada, generosa, afável e amiga, com que quase globalmente, nos acolhem indistintamente, e na grandiosidade dos sentimentos de alma, que partilham desinteressadamente.
Tão magnânimos, espontâneos e puros, quanto a simplicidade da sua terra, das suas vidas e da sua raça !...

Anamar


segunda-feira, 14 de julho de 2014

" UMA JANELA DE PRIVILÉGIO "




Um pé em cada lado da Terra, um olho espreitando cada nicho de céu estrelado, os braços abertos para que envolvam  o Mundo ... eis o centro do planeta ... eis o planisfério desenhado aos nossos pés ... e o privilégio de se ter uma "janela" na latitude zero, onde a estrela polar e o cruzeiro do sul  namoram, em noite de céu limpo !...

O Equador a fazer-nos sentir míticos, quase religiosamente especiais, num silêncio que se nos impõe.
Silêncio de lugares solenes, como se não pudéssemos perturbar a magia que impera.
Aqui, até a floresta se cala, e o vento só sussurra ... não se atreve mais !...

Naquele mapa-mundo, Portugal bem pequenino na escala universal, ali está, numa cor destacada.
E o marco, o marco como preito de homenagem dos ilhéus a Gago Coutinho, lembra que foi ele que entre 1915 e 1918 ali pousou, numa missão geodésica, e confirmou, pelos estudos efectuados, que a linha zero de latitude, passava mesmo por ali, nas Rolas !

Essa linha imaginária parece sugerir-nos, que quem pisar aquele chão não mais ficará igual, porque ao alcance de um passo, estão-nos as duas metades da laranja, para onde a nossa varanda de privilégio assoma.

Os hemisférios beijam-se lúcubres, em luxúria tão natural e despudorada, quanto aquela com que a floresta beija o mar, descendo ravina abaixo, até às águas azul-turquesa, ou verde-esmeralda.
Os coqueiros e as palmeiras fazem equilíbrios de génio,  pelas rochas negras das encostas vulcânicas, sempre em vénia marítima.
E quando desistem, é no mar que os gigantes repousam e se aquietam, é nele que tombam os corpos, é a ele que se entregam, feito canoas errantes no sabor das marés ...

É assim S. Tomé, onde o sol, mesmo quando só promete  e a gravana nos deixa sequiosos, está lá, por detrás do dossel das nuvens espessas e uniformes ... S. Tomé,  onde a luz envolve, onde a brisa é mansa, e os cheiros são doces ... tão doces quanto a doçura incomensurável das suas gentes !!!...



Anamar

domingo, 13 de julho de 2014

" TEM DOCE, TIA ?... "




De repente fiquei "tia" de uma dúzia de meninos : os meninos de S. Tomé.

No Ilhéu das Rolas, as crianças brincam livres e soltas, descalças, rotas e sujas, pelo meio das pedras, nos troncos das árvores, no terreiro da Igreja.
Narizes ranhosos, desenhos nos rostos de lágrimas misturadas com pó, joelhos esfolados de pedra traiçoeira.
Ali mesmo ao lado está o mar, e estão os turistas que chegam na lancha, duas ou três vezes por semana.  A maioria, portugueses, os que eles mais gostam porque falam a sua língua, ainda têm os seus genes.

Os rapazes fazem bolas improvisadas com plantas fibrosas, que ganham consistência de futebol.  As meninas com o cabelo a tecer trancinhas, contas de cores coloridas entremeadas, e colares nos pescoços morenos, riem, riem sempre.
Rodeiam-me como um bando de pardalitos indisciplinados, e deliram com as fotografias.

" Tira outra, tia " ...
Sozinhas, de corpo inteiro, em pose estudada, num sonho imaginado de artista.
Uma, e outra, e mais outra ... porque nesta, o irmão pequenino também se pôs à frente, ou a amiga se fez à pose, sem autorização ...

"Como te chamas, tia ? " - pergunta cada uma que chega, uma, duas, dez vezes ...
"Tem doce, tia ? " - uma, duas, dez vezes - em sorriso descarado !

Em S. Tomé, os meninos pedem cadernos e lápis. É já a escola que os apoquenta.
Ou livros, para lazeres que não preenchem, porque não têm com quê, além da rua, da terra que é de todos, do mar e da praia, dos brinquedos que inventam, das frutas da floresta generosa, do terreiro poeirento da Igreja, e das árvores para treparem ...

Ah ... claro ... e da alegria esfuziante das brincadeiras livres e soltas ...

Os meninos das Rolas não sabem nem sonham, como são afortunados !!!...




Anamar

sábado, 28 de junho de 2014

" JÁ VENHO ... "



Estou de partida ... Parece que  finalmente estou de partida !

Sempre,  antes de qualquer viagem, bate uma ansiedade estranha.
É um misto de curiosidade pelo desconhecido que me espera, é um receio de que algo inesperado possa surgir lá e também cá, com tudo o que fica ...
E é também uma nostalgia, apesar do cansaço instalado, de tudo o que deixo ... pessoas, bichos, coisas ...
Porque afinal tudo isso, bom ou mau, é a minha realidade diária, é o aparentemente certo na minha vida, é a minha rotina.

O Homem é um animal de hábitos, e tendo embora um lado bem aventureiro de viajante, dentro de mim, uma ânsia da novidade, uma necessidade saudável de quebrar rotinas, que afinal penso ser inerente a quase todos ou todos os seres humanos, sempre se me aperta um nó no peito, na hora de fechar a porta de casa e olhar p'la última vez os meus gatos, que sem a noção do tempo ( espero ), continuarão a aguardar que eu volte da rua ... na hora de desligar o telemóvel, porque o avião já aquece os reactores ... no momento em que passo a ser eu, só eu, eu comigo mesma apenas, frente a todas as emoções, dúvidas, decisões, escolhas, com os olhos bem abertos, os ouvidos bem despertos, o coração bem disponível, vazio de tudo o que seja negativo e angustiante, se possível ...

E pronto !

O mais que eu vir, que eu viver, que eu experienciar, como uma infantil aprendiz de vida, totalmente desarmada, e vazia de pré-concepções e juízos, de alma lavada, coração receptivo e sequioso, e uma cabeça povoada de sonhos e fantasias ... contarei na volta, com o entusiasmo de todas as histórias plenas de ingenuidade, bonomia e pureza, sempre bebidas  em  deslumbramento, pelos  marinheiros  de primeira viagem !!!...

Por cá, fiquem em paz, com tudo de bom nas vossas vidas ... e, ATÉ  BREVE !!!...
Porque eu ... JÁ  VENHO !!!

Anamar

domingo, 22 de junho de 2014

" BREVE PARTIREI ..."



Cheirava a chuva, na mata, hoje ... Cheirava sobretudo a terra molhada, enquanto o ar desanuviado de poeiras estava leve, puro, fresco !
Tinha havido uma renovação, porque a água que tombou copiosa dos céus, neste segundo dia de Verão, fizera uma faxina por lá.

Passei e não encontrei vivalma, não obstante ser domingo, não obstante não ser fim de semana de praia ... Restaram-me os pássaros volteadores, os insectos batendo asas de queratina por entre o restolho ressequido aqui e ali, ou as borboletas em bailados diáfanos de elfos, na busca de pólens à discrição ...
Talvez as pessoas tivessem receado que as chuvas a destempo, mais que as orvalhassem ... as encharcassem mesmo.

Lembrei as abençoadas chuvas tropicais, lembrei o que são as borrascas em terra de calor a sério, e de chuva a sério também!
Já tomei grandes aguaceiros, estrondosamente fortes, curtos, saborosos.  Já apanhei com grandes trovoadas bem por cima da cabeça, enquanto me sentia privilegiada, e me deleitava por poder atravessar a tempestade ribombante, dentro daqueles mares cálidos de águas dormentes e preguiçosas, enquanto as luzes rasgavam o firmamento, desenhando lasers nunca igualados.

Estranhamente também aí, as pessoas fogem, correm a abrigar-se não sei do quê, nem para quê ...
Do que afinal, sendo uma bênção da Natureza, apenas nos relembra o gosto que é, estarmos vivos !
E nas águas, que por reflectirem o céu  se tornam plúmbeas, me envolvi como em manto doce, me aninhei como em alcova de amante ... e absorvi até à alma, longamente, o cheiro salgado do mar ... o cheiro adocicado da terra úbere!...

Breve partirei ...
Breve procurarei as terras magnânimas ... uma vez mais.  Vou encontrar o centro da Terra, vou procurar aquela estrada invisível que corta oceanos, atravessa continentes, e fala uma única língua, a única que liga os mundos ... todos os mundos ... a universal !
Breve verei a multitude das cores da paleta do Mestre, breve me extasiarei com os verdes, os azuis, os ocres, os castanhos, os dourados e os prateados das orlas de vai-vem ...
Breve vou absorver todos os cheiros que não se descrevem, todos os sons e os silêncios, todos os cânticos e todas as vozes ...
E verei rostos que não conheço, mas que de repente ficam meus ... Olharei outros tantos sorrisos ladinos, de outras tantas crianças  como todas ... porque as crianças são todas iguais, e os seus sorrisos desarmados, são sempre de querubins !...
E verei os sóis a acordarem e a deitarem-se, entre os laranjas, os fúchsias e o recorte  negro das palmeiras esguias e dos coqueiros despenteados ... E a  lua, que em quartos ou  plena, torna o mar numa poalha de prata ...
As estrelas povoar-me-ão os sonos, porque ponteiam os céus escurecidos ... e os sentires, todos,  montam vigília e sentinela, para que nenhuma emoção se perca por lá, e para que a verdade e a autenticidade das terras do café, do cacau, dos escravos e das senzalas,  que ecoam pelas encostas e perpassam pela mata, me devassem, me penetrem e me preencham ... em plenitude !...

Puro hedonismo, no sonho, no desejo, na alma de viajante que transporto em mim ... porque "só existe um êxito : a capacidade de levar a vida que se quer" - Morley, Cristopher


QUEM SOMOS

O mar chama por nós, somos ilhéus
Trazemos nas mãos sal e espuma
cantamos nas canoas
dançamos na bruma

Somos pescadores-marinheiros

de marés vivas onde se escondem
a nossa alma ignota
o nosso povo ilhéu

A nossa ilha balouça ao sabor das vagas

e traz a espraiar-se no areal da História
a voz do gandu
na nossa memória ...

Somos a mestiçagem de um deus que quis mostrar

ao universo a nossa cor tisnada
resistimos à voragem do tempo
aos apelos do nada

Continuaremos a plantar café cacau

e a comer por gosto fruta-pão
filhos do sol e do mato
arrancados à dor da escravidão


OLINDA BEJA  ( poetisa natural de S.TOMÉ E PRÍNCIPE )


Anamar

quinta-feira, 19 de junho de 2014

" MEC ... excelente, como sempre !..."

Divulgando o que merece, aqui está um autor que sempre me surpreende pela forma lúcida, objectiva, clara, sensível, com que aborda os temas.

Não queria que este texto se perdesse na turba das crónicas, notícias, colunas de opinião, e tanto outro disseminar de informação da nossa profusa comunicação diãria.
Assim, publico-o aqui, no meu cantinho, para que possa ser saboreado, usufruído, reflectido por quem a ele aceder, e tenha alguns minutos do seu precioso tempo  para  que  nele  se possa   " passear "  e  quem  sabe ... deleitar !...




Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão.

Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.
Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido....Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem.

A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.

Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.

O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira.

E valê-la também.

Miguel Esteves Cardoso

Anamar

sábado, 14 de junho de 2014

" VIAJANDO NOS SONHOS ... "



Uma viagem é um sonho que sai do universo onírico,  torna-se palpável,  materializa-se, ganha substância ...

Ao contrário dos sonhos, a viagem tem o antes, o durante e o depois.  Começa a programar-se, e com isso "descola" na nossa mente.
Enriquece-se em tudo aquilo que lhe adicionamos mentalmente, numa preparação meticulosa, desejadamente diversificada, intencionalmente multifacetada.
Transforma-se num sonho monitorizado, com asas que nos começam a crescer na alma.
Do alto do galho onde a sonhámos, atrevemo-nos a ensaiar voos, por espaços e horizontes, em direcção a sóis que se põem e nascem fulgurantes, em mapas desconhecidos ...
Temos connosco a expectativa do não conhecido, aureolada pela curiosidade, ânsia, vontade e liberdade sonhadas.
Até porque os espaços longínquos que nos espreitam, e nos fogem na realidade quotidiana, sempre se condimentam nas cores, nos sons, nos sabores, na luz, nos cheiros, nas gentes e quase sempre nos silêncios da interioridade que nos despertam, do intimismo p'ra onde nos conduzem ... porque nos emergem o melhor que possuímos ...

Para mim, são o regresso ao âmago, ao avesso do meu direito, são o retorno à purificação dos sentires embiocados, são o retomar da viagem uterina rumo a outras essências, outro chão e outra verdade ...
São reencontro comigo ... do que sou, mas não sou aqui ... São redescoberta do equilíbrio ... São partida p'ra novas chegadas, para o autêntico, o verdadeiro ... são mergulho no que importa ... finalmente !!!

E por isso escolho o verde, o mar, o sol, a lua, a areia e a rocha, pássaros e flores, vento e trovoadas ... escolho a brisa e os silêncios, a genuinidade das gentes, perfumada com as flores de  acácias, com o aroma das especiarias e da terra molhada, impregnado  na pele encharcada pelo aguaceiro torrencial ...
E não escolho o betão, nem as casas, nem os bairros, os fumos e os horizontes quebrados, o sol que se esconde, pedindo licença aos espaços exíguos libertados por entre as torres.
Não escolho museus, palácios, ruas, cacofonia alucinante de vozes e gritos sibilantes, que me agridem o coração.
Não escolho os destinos onde a mão do Homem trabalhou, sofisticou, enfeitou, artificializou ... não escolho os caminhos onde a sua pegada se afundou, não escolho os espaços que ele polui e destrói ...
Fujo das metrópoles, as grandes cidades não me movem, a sua laboriosa concepção, também não ... a sua  arquitectura trabalhada e presumida, as maravilhas da tecnologia ou os "milagres" megalómanos do seu ressurgimento, menos ainda !...
E nunca me arrependo !!!...

Desta vez também é assim ...
Busco o paraíso e lamento não trazê-lo comigo, na volta ...

Porque as viagens, como os sonhos, também têm o seu despertar.
Como com eles,  com alguns deles, também lamentamos que se esfumem no tempo, naquele clique injusto de apagar de luz, ao desligar-se o interruptor.
Como eles, alguns deles, foram janela aberta por algum tempo, num interlúdio ou intermezzo de vida, cujo sabor experimentado, desejaríamos perpetuar no nosso coração.
Foram uma nesga entreaberta na porta da monotonia do nosso quotidiano ...
Foram uma nesga de azul, no cinzento plúmbeo em que mergulha quase sempre a nossa realidade ...
Foram uma demão de tinta colorida, no opalino, desvanecido em cada aurora das nossas vidas !!!...



Anamar

sexta-feira, 13 de junho de 2014

"COISAS QUE FICAM ... HISTÓRIAS ANTIGAS "



O  Santo  António,  cartão  de visita e rosto de Lisboa, está de novo no calendário.  No calendário e nas ruas ...

Tenho esse problema mal resolvido na minha vida ...
Seguramente ... porque  se ainda me regressa à memória ano após ano, e me deixa um gostinho de mágoa ténue, é porque não está resolvido na minha cabeça.
Passo a explicar :  desde adolescente, desde os áureos tempos das loucuras, das brincadeiras, dos convívios, na fase irreverente da minha história, e numa altura em que os riscos sociais não eram gravosos ... sempre sonhei festejar uma noite dos "Santos", como se dizia.
Ir a Alfama, percorrer os bairros alfacinhas, madrugada adiante, comer as sardinhas a pingar no pão, o vinho e outros petiscos, ao som das marchas populares, debaixo dos mastros armados nas ruas, com grinaldas e balões, bandeirinhas em papel, ver os tronos nas pracinhas e vielas, visitar as escadinhas, os becos e os pátios ... saltar as fogueiras ... com o cheiro a manjerico a tiracolo ... sempre foi um sonho meu.
A maioria das colegas de faculdade não faltavam, sobretudo as que, sendo da província, estudavam sozinhas em Lisboa, alojadas em residências universitárias ou em casas particulares.
Contavam então histórias inocentes de paródia, de alegria, de irreverência, de saudável convívio, no dia seguinte, ou no outro ... porque o seguinte era o feriado da cidade, e a noite também fora longa, e havia que dormir ...

Eu, nunca tive autorização para ir.  A minha mãe, no seu melhor "estilo de educação", não me permitia alinhar nessas brincadeiras, apesar dos meus pedidos insistentes .

Visse as marchas pela televisão, visse a transmissão dos casamentos na Sé, comprasse um manjerico como mandava a tradição, uma alcachofra para florir, fizesse umas "simpatias" ao Santo, com uma amiguinha vizinha do mesmo prédio ... e já estaria de bom tamanho ...
Até  porque a data, sempre beirava a época de exames, que não se compadeciam com dispersões supérfluas ...

Queimava a alcachofra ( no bico do fogão, porque as fogueiras pertencem às festas ) e deixava-a ao relento para florir, como bom presságio, deitava um ovo num copo com água, para  que nele  se desenhasse ou não, o almejado véu de noiva  ( rsrsrs ), sinal de que, solteira não ficaria ... colocava num prato com água, exposto à madrugada, pequenos papéis dobrados, com nomes de candidatos, para que no dia seguinte, o mais aberto, me desvendasse o esperado nome do futuro namorado ... e pouco mais ...

Essa, a minha "relação" com o santinho casamenteiro, à altura, apesar de, sempre de "olho gordo", eu invejar a liberdade de quem podia brincar noite dentro, numa confraternização e num bairrismo únicos, na noite em que Lisboa se torna menina-gaiteira !

Mas o tempo passa, os anos também, e a época para tudo, esfuma-se ...

Seguiram-se as minhas filhas ...
Essas sim, já não faltavam às festas, na melhor tradição lisboeta, em grupos de amigos e colegas de estudos.
"Vamos aos Santos" ? - ouvia-as combinar pelo telefone ...
E eu, magoada por dentro !...

E nunca percebi, e sempre me interroguei se seria mesmo assim ( e não uma enorme injustiça ao Santo ... ), quando me garantiam no dia seguinte, que a magia, a aura dourada e a mística com que eu emoldurava o evento, estava só na minha cabeça, porque sempre o proibido será o mais desejado ...
Uma grande confusão, uma grande barafunda, sardinhas a preço proibitivo, frias e mal conseguidas, num atendimento péssimo...
Em suma, simplesmente um bilhete postal elaborado e aproveitado para turista consumir  ...
A isso se resumiam os Santos Populares ...

Bom, não posso confirmar nem desmentir .
Acho que vou morrer sem nunca ter feito o gosto ao pé, à boca, aos olhos e ao coração !
O Sto. António sempre irá ser para mim, apenas um registo de imagens desfilando pela televisão, um clima adivinhado mas nunca vivido, de um povo e de uma cidade que jamais toquei de perto ou experimentei, um pulsar desconhecido, de corações foliões que se partilham a compasso, num bairrismo que só eles conhecem, uma mágica ou uma "religião" seguida fervorosamente, sobretudo pelas almas brejeiras de pessoas simples, anónimas, que por tradição, fé e alegria esfuziante, esquecem tudo por uma noite, e vêm p'ra rua brincar !!!...


Anamar

sexta-feira, 6 de junho de 2014

" APONTAMENTOS "



A abóbada das avenidas e pracinhas começou a ficar lilás.
Os jacarandás voltaram a florir, polvilhando com lágrimas roxas, o chão das ruas que pisamos.
É quase Verão, é quase Sto. António ... Lisboa enfeita-se !

Mais um ano passou, é o que isso significa !

Maravilhei-me ao vê-los a azular em explosão de cor, tal como há muitos anos me extasiava, quando numa noite qualquer de Primavera, ao regressar das aulas, o vento de feição me surpreendia com o cheiro do pitosporo da minha praceta.
Aí, eu percebia que o calendário tinha dobrado outra folha, que o hibernante Inverno passara, e que a renovação estava aí, outra vez !...

Mas isso já foi, faz tempo.
Agora já não há pitosporo na praceta, já não há aulas, nem regresso delas, pela meia noite, com frio, chuva, ou bom tempo ... assim, nas tais noites de me cheirar a flor de laranjeira, e de eu sorrir ... a sentir-me agradecida !

Estes sinais da Natureza, estes presentes gratuitos e nunca regateados, esta generosidade suprema, esta harmonia perfeita que só a Vida nos providencia,  é algo inatingível,  e é algo incomparável  à  maior obra de arte produzida pelo Homem, por maior que ela seja ...
Atingi uma fase da minha passagem por aqui, em que me sinto mais e mais marginal da sociedade em que me insiro e dos seus valores, mais e mais desligada dos contextos que ocupo, a nível pessoal, material e social, mais e mais indiferente aos seus conteúdos ...
Por outro lado, sinto-me privilegiada pelo facto de, sem nada pedir ou dar em troca, poder usufruir da maravilha perfeita e equilibrante que desfila frente aos meus olhos, e de que usufruo, só pelo facto de os ter, de ter olfacto, ouvidos e coração.  Em suma, pelo facto de estar viva, simplesmente !...

Não é à toa, que cada vez mais sinto em mim um apelo pelos espaços amplos, pelos horizontes sem limite, pelo silêncio audível das grandes planícies, ou pelo chilreio cúmplice dos pássaros no emaranhado dos bosques ...
Não é à toa que me emociono ao ver as areias brancas, e  todas as cores da esmeralda  à turquesa, dos verdes aos azuis intensos, das águas para lá do nosso continente ...
As cores variegadas dos pássaros, das borboletas, dos insectos em zumbidos ensurdecedores ... dos que conhecemos, e de todos os que vamos conhecer ...
Não é à toa que deixo o sol atravessar-me a pele e envolver-me o coração, com o calor entorpecente ... num convite à modorra e ao voar do sonho ...
Ou que me inebrio com o adocicado de todas as flores, naquele cheiro que não se descreve, apenas se sente, se reconhece,  e nos preenche, como uma poção mágica que nos transportasse a outra dimensão !...
Não é à toa que me deixo solta no vento, deitada no sal das marés ... embalada pelo vai-vem das águas que apenas adormecem , languidamente na areia, com toda a voluptuosidade de bailado dos deuses ...

Não é à toa que, nesta passagem  ( sim, porque eu vim de algum lado, não pertenço bem aqui ... e estou a ir ... seguramente ), mais e mais vou, busco, procuro, fujo ... fujo da insatisfação da minha realidade maçante, decepcionante, cansativa e tão sem graça ... e sucumbo ao sonho ou embrenho-me em realidades outras, que não estas ... e sempre caminho nas asas da imaginação  e do devaneio !!!...

Não é à toa que vou ter saudades, muitas saudades, do azul-violeta das campânulas em cachos pendentes, dos nossos jacarandás ... um dia, quando partir, e não estiver mais cá ... tenho a certeza !!!...

Anamar

quinta-feira, 29 de maio de 2014

" NADA É EXACTAMENTE ..."


Nasci no pós-guerra, não  muitos anos  depois da Grande Guerra de 39 / 45 ter terminado.
E nasci no Alentejo pobre, desfavorecido, neste país, afinal  também desfavorecido da sorte.
Não fui filha de latifundiários ;  de meu, tinha apenas o que o trabalho do meu pai, providenciava.
Não faltou nunca, contudo, abastança na mesa. Para o resto, também se ia dando um jeito.
Casa própria não existia, carro nunca tivemos, esbanjamentos não eram possíveis.
E ainda assim, sem nunca o meu pai tirar férias para si próprio, já  propiciava, a mim e à minha mãe, um período de férias no Algarve, em quarto alugado de casa particular, ou de  residencial modesta.
Mais por razões de saúde, hoje lembro bem o espírito da coisa.  A praia faz bem a uma criança !...

A vida corria mansa, sem sobressaltos, bem desenhada nos espíritos.
O meu pai trabalhava como comerciante, tinha  um salário mais ou menos certo ao fim do mês, com ele se contava, com ele se geriam os dias.
Prossegui estudos, avolumavam-se as responsabilidades, mas era pacífico que eu tiraria um curso superior, para o que tivesse jeito e gosto, porque um emprego certo, me esperaria no fim do percurso. 

Fui educada dentro dos moldes sociais, familiares e morais da altura, o que significava  rígidos, sem concessões, com exigência e seriedade, mas sem sustos ou surpresas ... Era assim, e todos sabíamos como era.
Os valores inalienáveis do  respeito, da humildade, da educação, do trabalho, do esforço, da honestidade, da generosidade, do sacrifício e da dedicação, eram trabalhados na família, na micro e na macro-sociedade em que nos inseríamos, nos núcleos profissionais, nos círculos dos conhecidos e amigos, e também dos desconhecidos com quem partilhávamos a vida.
Era estimável que nos pautássemos com dignidade, honradez e rectidão, por forma que em qualquer momento e em qualquer lugar, nunca fôssemos apontados por motivos menos válidos. Sempre pudéssemos andar "de cabeça erguida" ... este, o slogan !

E os que o não eram, aqueles que feriam os valores genericamente vigentes, e defendidos  pelas estruturas sociais definidas, eram facilmente identificáveis.  Não existiam muitos alçapões, moitas ou tocas, onde se pudessem  acoitar.  Não se escudavam  no seio de suspeitos protectores, com nomes sonantes ...
Mais cedo ou mais tarde seriam referenciados,  e marginalizados pela própria sociedade, que não contemporizava e naturalmente os expurgava.
Era exactamente assim !

Formei-me e fui trabalhar.
Talhada tradicionalmente para o casamento, realização óbvia e quase incontornável das mulheres da minha geração, escolhi ser professora, destino consentâneo e ajustável  às tarefas  de mulher e mãe ( algo também demasiado previsível e óbvio, no universo feminino, quase sem excepção ) .
Conhecia perfeitamente a carreira que tinha pela frente, sabia das seguranças profissionais a nível do trabalho, os deveres e as regalias  que o caminho me assegurava.
O meu primeiro vencimento foi de 4$50, como professora eventual, recebido então em dinheiro vivo, num envelope que o Chefe da Secretaria  me entregava , contra a assinatura mensal da Folha de Vencimentos.

Sabia que teria anualmente actualizações do vencimento, depois de ter passado a Professora Agregada, e finalmente a  Efectiva do Quadro.
Sabia que usufruía de diuturnidades com incidência temporal regular, sabia exactamente quantas horas teria que prestar em leccionação efectiva ( não existiam ao tempo, outros "faits divers" ... ), quantas me eram equiparadas  no trabalho de Direcção de Turma, quantas horas iria beneficiando de desconto no cômputo total do horário, à medida que envelhecesse ... sabia qual a valorização exacta que acrescia à minha nota profissional, por  cada ano de leccionação ... Enfim, sabia muitas coisas ... exactamente !!!

E sabia também que, eu que começara a ensinar aos vinte anos, teria o fim da minha carreira e a almejada reforma, quando atingisse  em alternativa, ou 36 anos de serviço ou 60 de idade ...
E também sabia a fórmula exacta com que seriam feitas as contas da minha futura pensão, baseada nos anos de trabalho e nos vencimentos auferidos ...

Depois, também se previa sem grande margem de erro  ( a menos que algum imprevisto gravoso se nos atravessasse na vida ), a curto, a médio e a longo prazo, como iria ser economicamente em termos de estabilidade, de segurança, de gestão, a nossa vida ao longo dos anos, e no seu fim.
Era possível delinearem-se estratégias, assumirem-se responsabilidades, correrem-se riscos ( porque o eram sempre calculados ), fazerem-se opções, escolherem-se caminhos ... porque qualquer um que escolhêssemos era nosso conhecido, qualquer responsabilidade seria honrável, qualquer plano, criteriosa e seguramente analisado antes da decisão, qualquer estrada tinha luz e saída ... e os sonhos ainda eram permitidos !!!...

Os mais previdentes, e normalmente era-se algo previdente, procuravam  fazer ao longo da vida ( porque isso era ainda viável ) , um pé-de-meia, para uma eventualidade na velhice ... como se dizia.
Uma "eventualidade" ... Porque esta não existindo, o resto estaria acautelado.
Havia respostas sociais asseguradas, em termos da assistência à saúde. Precárias, é um facto ... não satisfatórias, é verdade ... mas existiam .

Bom, poderia ficar infinitamente a dissertar, à medida que fosse lembrando, o desenrolar deste filme que nos conduziu aos dias de hoje.
Os dias de hoje, que nós, os que viemos lá de trás, custamos a perceber, a aceitar, a partilhar ...

Mas não vale a pena, pois todos sabemos a realidade que vivemos na actualidade, e todos conhecemos o principal motivo de, os da minha geração, se sentirem peixes fora de água, sem azimute e sem norte ... perdidos, com a sensação de vivermos numa Torre de Babel de valores, regras ou normas ...
O  principal  motivo deste cansativo, destruidor e angustiante  "stato quo ", tem um nome :  insegurança, indefinição, incerteza ... dúvida ... susto ... porque sobrevivemos afinal  em  tempos em que "NADA  É  EXACTAMENTE ..." !!!

Anamar