segunda-feira, 13 de maio de 2013

" NAQUELE TEMPO ... "


 
Nesta semana que passou, viveu-se  o "Dia da Espiga", ou a comemoração religiosa da Ascensão de Jesus aos céus, quarenta dias depois da Ressurreição Pascal ... se ainda me lembro.
Fora as raízes católicas que já perdi nos meandros do tempo, lembro a quinta-feira "da espiga", vivida em miúda, no Alentejo, claro, e que só pode ser privilégio de quem viva no interior rural, ou perto dele.

Na altura eu vivia em Évora, era menina de tranças e vestidinhos rodados.
As meninas à época, ao contrário de hoje, não vestiam calças nem calções, no dia a dia.  Quando muito, isso era traje da época balnear.
Não obstante, lembro de ter tido umas calças e camisa, em vermelho liso e risquinhas condicentes, "à pirata", que é como quem diz, as nossas "bermudas" de hoje, feitas pela costureira que ia quase semanalmente a casa, fazer os arranjos e roupas simples.
As de maior responsabilidade, ou mais elaboradas, iam para a D. Soledade, a modista da classe "fina" de Évora ... senhora bem apetrechada de figurinos, onde a minha mãe escolhia criteriosamente os modelitos.

Eu vivia então, na Av. dos Combatentes, que ficava num extremo da cidade .  Esta avenida terminava na estação dos caminhos de ferro, e atravessando as linhas férreas, do outro lado, continuava numa estrada que cortava os campos, até ao Bairro de Almeirim.
Era um caminho quase sem trânsito, ladeado por campos cultivados, com searas a perder de vista.
Era montado de sobreiros e azinheiras, e olival com azeitona a formar-se ;
Eram "jardins" de papoilas, malmequeres e flores roxas ... de urzes, estevas e giestas ;
Eram postes de alta-tensão, com os ninhos das cegonhas empoleirados a desníveis ;
Eram varas de porcos, ou rebanhos adormecidos por ali, quando o calor apertava, e o convite, era a sesta para o gado e para quem o pastoreava ;
Era o pipilar dos pássaros pela seara ... os cucos, os melros, os tordos, as alvéolas ... as andorinhas rasantes, em bandos volteadores ...
Era o cantar dos grilos à desgarrada, e a melopeia dormente das cigarras ...
Eram os cheiros adocicados trazidos pela brisa mansa, dos cereais de espiga a formar-se, e dos pólens, a darem-se ao zumbido dos zângãos e das abelhas atarefadas, do meu Alentejo !...
Era o chocalhar lá longe, de quando em quando, dos badalos das vacas, que se misturava ( ao crepúsculo ), com o sino de alguma igreja da cidade, nas "Avésmarias" ...
Era o céu azul de uma Primavera quase Verão, nas terras quentes ...
E era eu, menina, sem saber, sem imaginar, sem sequer sonhar o que a Vida é ...

Apanhava-se o "ramo da espiga", garante de pão na mesa, azeite, "luz", paz e alegria na casa, por todo o ano.
Para isso, deveria ser formado por espigas de trigo ( pão ), um raminho de oliveira ( azeite e paz ) ... e flores, todas as flores dos campos, e de todas as cores que pudéssemos apanhar ( os malmequeres amarelos e brancos simbolizando respectivamente o ouro e a prata,  e  as papoilas, o amor e a vida ).
Era atado com uma guita, e dependurado na despensa ou na cozinha, até ao ano seguinte, até à próxima  "5ª Feira da Espiga", para que o "clima" fosse favorável a um ano de abundância, paz e felicidade na família.

Hoje, na cidade ( sinal dos tempos ), também há "ramos de espiga", onde a contrafacção já chegou.
Longe de searas à séria, o lisboeta que quer fazer uns trocos, vende ramos atamancados, em que as espigas são praganas, apanhadas nos baldios que bordejam os grandes centros.
O resto, bom, o resto é mais fácil de encontrar.  Sempre há umas oliveiras aqui ou ali, meio adormecidas e tristes, fora do "seu" olival ... e flores ...
Desde as papoilas e macelas, a todas as flores selvagens e coloridas, a Natureza não regateia generosamente oferecê-las, em qualquer canto, mesmo agreste.

Ainda que o silêncio dos espaços não impere, ainda que o ar seja poluído, ainda que o chilreio das aves  não se faça ouvir por todo o ruído envolvente ...
Ainda que não haja cegonhas encarrapitadas nos postes de alta-tensão  ...
Ainda  que eu já não seja a menina das calças "à pirata", vermelhas ... e também já não tenha tranças ...

... ainda  que eu já tenha "descoberto" o que a Vida é ... continuará a existir a "Quinta-feira da espiga" !!!...


Anamar


EM JEITO INFORMATIVO :

Consultei este artigo que infra-cito, a propósito, e que achei muito interessante.


  • O Dia da Espiga
     ( Informação recolhida junto do Município de Évora - Núcleo da Cultura )
Coincidente com a Quinta-feira da Ascensão


O Dia da Espiga

O Dia da Espiga, coincidente com a Quinta-feira da Ascensão, é uma data móvel que segue o calendário litúrgico cristão.
Mas, se actualmente poucas são as pessoas que ainda vão ao campo nessa quinta-feira, abandonando as suas obrigações, para apanhar a espiga, ou que se deslocam às igrejas para participar nos preceitos religiosos próprios da data, tempos houve em que, de norte a sul do país, esta foi uma data faustosa, das mais festivas do ano, repleta de cerimónias sagradas e profanas, que em muitas zonas implicava mesmo a paragem laboral. A antiga expressão “no Dia da Ascensão nem os passarinhos bolem nos ninhos” deriva dessa tradição.
A origem gaudiosa deste dia é, contudo, muito anterior à era cristã. Este dia é um herdeiro directo de rituais gentios, realizados durante séculos, por todo o mundo mediterrâneo, em que grandiosos festivais, de intensos cantares e danças, celebravam a Primavera e consagravam a natureza.
Para os povos arcaicos, esta data, tal como todos os momentos de transição, era mágica e de sublime importância. Nela se exortava o eclodir da vida vegetal e animal, após a letargia dos meses frios, e a esperança nas novas colheitas.
A Igreja de Roma, à semelhança do que fez com outras festas ancestrais pagãs, cristianiza depois a data e esta atravessa os tempos com uma dupla acepção: como Quinta-feira de Ascensão, para os cristãos, assinalando, como o nome indica, a ascensão de Jesus ao Céu, ao fim de 40 dias; e como Dia da Espiga, ou Quinta-feira da Espiga, esta traduzindo aspectos e crenças não religiosos, mas exclusivos da esfera agrícola e familiar.
O Dia da Espiga é então o dia em que as pessoas vão ao campo apanhar a espiga, a qual não é apenas um viçoso ramo de várias plantas - cuja composição, número e significado de cada uma, varia de região para região –, guardado durante um ano, mas é também um poderoso e multifacetado amuleto, que é pendurado, por norma, na parede da cozinha ou da sala, para trazer a abundância, a alegria, a saúde e a sorte. Em muitas terras, quando faz trovoada, por exemplo, arde-se à lareira um dos pés do ramo da espiga para afastar a tormenta.
Não obstante as variações locais, de um modo geral, o ramo de espiga é composto por pés de trigo e de outros cereais, como centeio, cevada ou aveia, de oliveira, videira, papoilas, malmequeres ou outras flores campestres. E a simbologia de cada planta, comumente aceite, é a seguinte: o trigo representa o pão; o malmequer o ouro e a prata; a papoila o amor e vida; a oliveira o azeite e a paz; a videira o vinho e a alegria; e o alecrim a saúde e a força.
Além destas associações basilares ao pão e ao azeite, a espiga surge também conotada com o leite, com as proibições do trabalho e ainda com o poder da Hora, isto é, com o período de tempo que decorre entre o meio-dia e a uma hora da tarde, tomando mesmo, nalguns sítios do país a designação de Dia da Hora. Nas localidades em que assim é entendida esta quinta-feira, acredita-se que neste período do dia se manifestam os mais sagrados e encantatórios poderes da data e nas igrejas realiza-se um serviço religioso de Adoração, após o qual toca o sino. Diz a voz popular que nessa hora “as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não leveda e até as folhas se cruzam” . Nalgumas povoações era também do meio-dia à uma que se colhia a espiga.
Noutras regiões ainda, esta data é dedicada ao cerimonial do leite. Na aldeia da Esperança, no concelho de Arronches, este é aliás o “Dia do Leite” e os produtores de queijo ordenham o seu gado e oferecem o leite a quem o quiser. Também em Guimarães, e em muitas freguesias do concelho de Pinhel, o leite ordenhado neste dia é oferecido ao pároco. Em Santa Eulália, no concelho de Elvas, esse leite é dado aos pobres, acreditando-se assim que a sarna não atingirá as cabras.
Nas zonas onde esta data é associada à abstenção laboral, cessam-se muitas actividades como a cozedura do pão ou a realização de negócios. Na Lousada, em Penafiel, não se cose nem se remenda e há quem deixe comida feita de véspera para não ter de cozinhar neste dia.
No que diz respeito ao sul do país, e sobretudo na actualidade, a maioria das tradições do Dia de Espiga resume-se à apanha do ramo da espiga, ao qual, em muitos sítios, se adiciona também uma fatia de pão, para que durante todo o ano não falte este alimento em casa.



Consultei ainda informação, que diz deverem ser em número de cinco, cada uma das espécies presentes no ramo, e outra que afiança que duas espigas de trigo, duas papoilas, dois malmequeres brancos e outros tantos amarelos, e uma haste de oliveira em flor, são a quantidade certa para "não ser demais nem de menos" ...
Há também zonas do país, em que se junta videira ( simbolizando o vinho e a alegria ) e alecrim ou rosmaninho ( simbolizando a saúde e a força ).

Acredita-se que este costume associado à recolha da "Espiga", e que prevalece primordialmente no Centro e Sul do país, teve origem num antigo ritual cristão, que era uma bênção dos primeiros frutos.
No entanto, tendo tanta ligação à Natureza, supõe-se que vem bem mais de trás no tempo, talvez das antigas tradições pagãs, associadas às festas da deusa Flora, que aconteciam por esta altura, e às quais se prendem também as tradições dos Maios e das Maias.

Há zonas de Portugal em que por cada ano, o ramo velho, digamos, é queimado numa fogueira no dia de S. João.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

" ENTRE PARÊNTESIS" - uma curta metragem ...



Repentinamente, aqui, nesta  mesa  de café,  tive  umas  saudades  loucas  da  minha  vida,  ou  de  pedaços  da minha  vida ... assim  é  que  é !...
Repentinamente, a minha cabeça viajou lá atrás, percorreu outros tempos, vasculhou outra época, dobrou esquinas, seguiu túneis ... outra vez.

Eu tinha menos anos, tinha uma garra imensa que não é a de hoje, queria acreditar sem acreditar mesmo, que tudo o que então vivia e tinha, era o enredo de uma "never ending story" ...

Comparo ( olhando para trás ), esses anos que percorri, com aquelas nesgas de sol que espreitam por vezes, quando num céu escuro, as nuvens se ajeitam, como que a mostrar-nos um "flashzinho" de esperança, lembrando que nem sempre haverá tempestade.

Costumo dizer que dava anos da minha vida, para tirar anos à minha vida, e adoraria ( como se toda a gente não adorasse também ...),  pôr a engrenagem a trabalhar em marcha-atrás, e o tempo em modo "rewind" !
Quando mergulhados nas coisas, raramente temos o distanciamento necessário, para as analisar e vivenciar com discernimento, com objectividade, desassombro, isenção e sabedoria.
Sempre colocamos a nossa vertente emocional, de permeio  à  racional, o que impede maior lucidez e clarividência, para análises, e entendimento de muitas coisas.
Depois, quando as emoções deixam de estar em campo, quando a distância permite ver de fora para dentro, quando o tempo esfria a cabeça ... normalmente desce uma luz, ou seja ... normalmente "faz-se" luz !

É então que "viajamos" às vezes, é então que revemos a "película", é então que somos transportados na máquina do tempo, e "baixamos" noutra realidade  que  já  foi  nossa, e  voltamos  a  vê-la, com um carinho particular, porque as mágoas e o sofrimento foram diluídos.

Eu, consigo desencavar com tanta nitidez, tudo o que já foi, que como uma verdadeira  "espeleóloga afectiva" , revisito com uma acuidade total, os cheiros, os sons, as imagens, as palavras, o vento ou a brisa, o calor tórrido de sol, ou a sua amenidade, dos dias escaldantes de mar e areia, ou dos dias serenos de picos e planícies ... numa perfeita reprise !...

E não amaldiçoo o que foi, apenas porque foi ...
... bendigo o que vivi, como um privilégio ... apenas porque me foi dado vivê-lo !!!...

Anamar

terça-feira, 7 de maio de 2013

" O CHICO "



À noite, chega a "hora das bruxas" ...

Quando as luzes se acendem e as sombras se projectam no chão, e mexem, o Chico fica louco.
E rodopia desvairado, na caça da sombra da sua cauda.  Nem é da própria cauda, como muitos gatos fazem ... é da sombra da mesma, desenhada no chão, que lhe saracoteia aos bigodes, provocando-o, e deixando-o confuso.
É essa, e todas as outras sombras que mexem !...
O Chico não aprecia bolinhas, ratinhos, e outros brinquedos demasiado vulgares.  O Chico, gosta mesmo é do domínio das sombras, que fazem e desfazem fantasminhas, no mármore do pavimento ... E que por não serem figuras fixas, lhe dão a adrenalina do que é e deixa de ser, no momento seguinte ... lhe dão a emoção do visível e do escondido, numa fracção de segundos ...
Isto, para um felídeo, é um desafio provocador à caça, por emboscada, quase sempre!

O Jonas olha para ele, com um ar surpreso e de comiseração, como quem diz : " Olha-me ... olha-me o marmanjo ( porque o Chico faz dois do Jonas, em tamanho ) ... Este gajo, passa-se "!...

Mas o Chico está na dele, e não liga a "mal vestidos" ...

Chegou a minha casa, envolvido num invejável casaco de pêlo negro e luzidio, com reflexos acobreados, quando o sol lhe dá.
É uma panterinha, em tamanho XS.
De pantera, só o aspecto, porque a doçura do Chico, não tem medida.
Habituada ao "bom feitio" do Óscar, que lembro com nitidez ainda, e do qual guardo gratas e indeléveis  "recordações" tactuadas nas pernas, pasmo, por neste momento ter dois doces felinos, a viver comigo !

O Chico já me chegou com cédula pessoal e tudo, que é como quem diz, com o devido registo de baptismo.
Ora bem ... para quê então, baralhar o neurónio de serviço do bicho, trocando-lhe o nome ??!!
Não carecia !
E Chico era, Chico ficou !
O veterinário acrescentou-lhe o "apelido", quando o viu, na primeira vez.  E o Chico, passou mais completamente, a chamar-se de "Chico Escuro", que aliás, tem tudo a ver ...

Tenho portanto, um gatalhão preto, que persegue as sombras, de uma forma um pouco endemoninhada.
E acresce que chegou, no passado dia 13 !!!
Com este cúmulo de coincidências interessantes, o Chico só pode ter entrado, finalmente, para ser portador de sorte, aqui para casa ... que bem precisa é !!!

Gosto de todos os animais.
Dos chamados "de estimação", já tive um pouco de tudo.
Começando com peixes de água fria, peixes de água quente, tartarugas, hamsters, canários e periquitos, até gatos e cães, hierarquicamente subindo na escala inteligente .
O meu voto vai, de facto, para os felinos.
Talvez porque eles sejam um pouco parecidos comigo, ou eu com eles, na forma de estar na vida.
Os felídeos são animais com uma independência invejável, que é coisa de sobrevivência mesmo.
São inteligentes, são curiosos, não se acobardam, são desafiadores, nunca subservientes ...
Mas sabem dar e partilhar afecto.  Claro que, quando querem, não, quando lho pedem !
Dispensam-no sem regateio, a quem elegem.  E uma vez eleito alguém, no seu coração, é amor p'ra todo o sempre !

"O gato escolhe o dono" ... sempre se ouviu dizer.  E o dono deixa-se escolher pelo gato, numa partilha inquestionável.
O gato, ao seu jeito, protege o dono.  Perante estranhos, assume comportamentos que indiciam a espécie de gente, que temos à frente.
Têm códigos de comunicação inteligíveis, para quem a  eles esteja atento.
E depois, para quem acredita, no domínio do oculto, possuem  mesmo, parece, uma capacidade de comunicação, com entidades que escapam à percepção dos humanos .
Dizem, que quando o gato parece olhar o vazio, ou fixa um determinado ponto  no espaço, onde aparentemente nada existe, essa inexistência, é isso mesmo ... "aparente", simplesmente ...

Bom, o meu Chico acaba portanto de ser socialmente apresentado.

E eu, que até aqui, tinha o fetiche inexplicado de possuir ainda na minha vida, um gato preto  ( tendo entretanto estabelecido uma cumplicidade já, com o meu "Farrusco do fiambre" dos terraços  das  traseiras - como já muito contei ), concretizei assim, o meu desiderato.
Tenho "à mão de semear", "ao pé de semear", e "ao cólo de semear", um Chico Escuro que faz as minhas delícias, e  que é um porreiraço de companhia !!!...

 Anamar

sexta-feira, 3 de maio de 2013

" UMA ESPÉCIE DE LOUCURA "...



Passaram Verões, Invernos e Primaveras.
Passaram sonhos, esperanças, convicções.
Vieram sóis, e depois luas e mais luas ... E estrelas ... todas as noites, estrelas ...
Veio o céu escuro e os dias de luz, gloriosos ...

E o mar, esse, não veio, porque esse vem e vai.  Nunca fica.
Tal como o vento ...
Esse, só vai.  Só passa, e sempre me desalinha os cabelos.

Os sorrisos chegaram há muito tempo, e fugiram-me do rosto quando te perdi.
Ainda fui atrás, até àquela esquina. 
Mas  eles  eram  mais  ágeis,  e  foram.  Nem  se  voltaram ... para  sorrir ...
Para quê, se eles já eram sorrisos apagados ?!...

A vida ...  Essa, também foi com eles.
Esta coisa agora, que me levanta e me deita todos os dias, incessantemente, não é bem vida ...
É uma escorrência de tempo, simplesmente.
É um tempo que escorre ao contrário dos caminhos, que sempre têm princípio e fim.  O meu tempo, é um tempo de infinito, e sem norte ou rumo.
Nem eu sei para onde ele vai, sabendo embora donde ele vem ...

Não te alcanço por mais que porfie.  Não tenho passada para te agarrar.
E também já não te avisto, porque teimas em penetrar o nevoeiro.
E  o  nevoeiro  é  aquilo  que  nunca  conseguimos  agarrar,  entre  as  mãos ...
Bem tento afastar os seus fios gélidos e translúcidos, como cortinas de fumo ...  Em vão !...

Tal e qual como as sombras.  Só existem, enquanto o que as faz, continua lá, de costas p'ra luz.
Eu, continuo de costas p'ra luz.
Sempre estou do lado do crepúsculo, virada ao ocaso.  Por isso me anoitece tão cedo !...

Não entendo por que me deixaste seguir na maré, envolta nas franjas brancas das ondas !!...
Não entendo por que não esperaste que as alfazemas florissem, para me vestires de novo com elas, antes de eu partir !!...
Não entendo por que não bebeste comigo, o último cálice daquele vinho morno, para que também a nossa última gargalhada, se nos soltasse do peito, a brincar de felicidade !!...
Não entendo por que me cantaste canções de ninar, enquanto eu repousava a cabeça no teu cólo, e descia as  pálpebras,  mansamente,  julgando  que  o  Mundo  estava  na  minha  mão ... se  era  tudo  mentira !!...
Não entendo por que deixaste que eu acreditasse outra vez, que tinha tranças e saias de roda, e atasse na garganta um nó, com o espanto e a pureza de um amor virgem !!...

E  passaram  Verões,  Invernos  e  Primaveras,  e  a  estrada  percorrida  era  longa ... e  a  estrada  a percorrer,  curta ...
E o cansaço que eu carregava nas costas, era imenso ...
E a cerração que se abatia sobre mim, escurecia o caminho ...
E os olhos cegaram, e o coração parou ...
Nas minhas mãos, o bouquet das últimas rosas, dos últimos dias ...

... e uma curva no limite do horizonte, que não me desvenda, o que depois dela virá ...

Anamar

domingo, 28 de abril de 2013

" RELENDO ... "



Reler  Manuel  da  Fonseca  levou-me  Alentejo  fora,  até  àquele  casarão.
Aquele casarão que ficava no largo principal da vila, local de passagem dos veraneantes que quisessem seguir até Vila Viçosa, Alandroal, ou  simplesmente até ao alto da Serra, de seu nome "d'Ossa", tão fresca quanto a água nos cântaros de barro, onde se mantinha, tapada com um testo de madeira, ou um simples pires de loiça, quase sempre já "gatado" ...

O casarão era a casa dos meus avós, com paredes de meio metro de espessura, com tectos altos, chão  de tijoleira de barro, e janelas com portadas de madeira por dentro, mantendo a semi-obscuridade, garante da frescura, na canícula dos Verões alentejanos.
As janelas e as portas eram guarnecidas pelo azul-cobalto, das molduras típicas.
Havia todo um terreiro lateral à habitação, o quintal, que abria para o Largo, através de um portão grande, zincado, pintado a vermelho escuro.
Com chão de terra batida, acomodava, quando parados, os carros de muares dos hóspedes.
Isto, porque a casa dos meus avós era uma estalagem, aberta a hóspedes, que normalmente se faziam transportar à época, em carros puxados a "bestas".
Estas eram desatreladas, os carros ficavam adormecidos, no "descarregador", inclinados, com os varais pousados no chão ...
Faziam por isso, as minhas delícias, e dos meus primos, já que neles seguia, em viagens imaginárias, aos tirantes de mulas e burricos, por estradas inventadas, acomodada nos assentos do cocheiro, revestidos quase sempre, a pele, ou com mantas de Reguengos.

No quintal havia um poço, com rochas no fundo, onde as avencas cresciam, e onde o meu avô mantinha os pirolitos fresquinhos, dentro de um cesto, que fazia subir e descer à hora do almoço.
A água do poço, tirada com o caldeiro, dava de beber aos animais, que na cocheira, a "Quadra", como se chamava, repousavam da viagem, e onde nas manjedouras, a palha puxada do palheiro com a forquilha, lhes matava a fome.

O palheiro ... Lembro o palheiro de brincadeiras intermináveis, de saltos e cambalhotas.
Lembro do carregar das gorpelhas de palha, "torres" douradas enredadas, nos carros que as transportavam.
Lembro que a palha descia pela "manga", e era espalhada pelas manjedouras, frente à cabeça das "bestas".
As galinhas e os patos, que ciscavam soltos, colocavam os ovos "a salvo", no calor da palha.
E por isso, a criançada, em gozo de férias, tinha por incumbência recolhê-los, na cestinha que a avó nos enfiava no braço.

No palheiro, o meu avô, quando estava de "boa catadura", deixava pernoitar gratuitamente os malteses, que perambulavam pelas estradas, como pardais à solta, sem eira nem beira.
Figuras errantes, sem chão ou grilhetas que os prendessem a nada nem a ninguém, os malteses, na minha cabeça de criança, eram a perfeita imagem de liberdade, e só me lembravam as borboletas que volteiam de corola em corola.
A "Quadra" acoitava-os, e era vulgar, lá pela meia-noite, o meu avô abalar-se até eles, para verificar se não haveria "beatas" acesas, que lhe pusessem fogo ao palheiro, já que era o vinho que quase sempre os aquecia por dentro, e lhes apagava os desgostos das mentes ...

O largo da vila era de terra batida.
Dividia-se ao meio pela estrada, por onde à hora do almoço e ao fim do dia, passava a camioneta  "da carreira", que vinha de Évora, e trazia alguns, poucos passageiros.
Sempre corríamos em bando, a acenar-lhe !...
A estrada era ladeada por árvores frondosas, de folha perene, cuja sombra era uma bênção no Verão.
Por debaixo delas, no pavimento de terra, fazíamos as três covinhas alinhadas, do jogo do berlinde, com os calcanhares das botas ;  negociávamos os nossos "tesouros" de arco-íris, cautelosamente saídos de um saquinho de pano, exibíamos orgulhosamente o nosso "abafador" invencível, brincávamos de roda, à Cabra-Cega, à Linda-Falua, às Estátuas ... e claro, ao "agarra", que terminava quase sempre, com joelhos esfolados e sangrantes ...

E depois havia a vila, e depois havia o campo ...
O campo de horizontes perdidos, de searas que resmalhavam no roçar das espigas maduras.
Havia o pintalgado do vermelho das papoilas, do branco, do amarelo e do roxo, que são as cores das flores do Alentejo !

E havia as gentes ...
As mulheres,  geralmente  de escuro, embiocadas num lenço de cabeça, atrás dos postigos, ou sentadas pela tardinha, em cadeirinhas baixas, de fundos de buínho, junto das portas ... Os homens, pelas soleiras ou nos bancos da praça, junto à fonte, chapéu inclinado adiante, para sombrear os olhos, e queixo apoiado no cajado que lhes ajudava o andar já trôpego dos tempos, pareciam adormecidos no sossego  que pairava.
A "pirisca" do cigarro, era colocada atrás da orelha, para ser aproveitada até ao fim.  Quase sempre eram cigarrinhos enrolados pacientemente na mortalha, e que morriam no canto dos lábios, esquecidos ...

Por vezes, só os zumbidos de algum abelhão, ou de uma varejeira impertinente, quebravam o silêncio parado ali.
As ondas de calor junto ao solo, distinguiam-se no ar, com nitidez, e para amenizar, regava-se a rua, até que a fresca descia.
Só então, as andorinhas que faziam ninho nos beirais da Câmara, desciam em bandos rasantes, num bailado de prima-dona, e chilreios ensurdecedores.

Era Alentejo ... era a minha infância !...
Lembro bem !!!



 Anamar

" TERGIVERSANDO " ...


Postei ontem que tive um "acesso", um "surto", uma insanidade notória, uma maluqueira incontrolável ... e resolvi viajar, resolvi ir embora, voltar costas, tentar esquecer isto por aqui, numa operação de cosmética à minha vida ( pura cosmética , simplesmente ), numa manobra de faz de conta, numa brincadeirinha em que a menina acredita ser uma das princesas da Disney ...
Assim ... absurdamente, infantilmente, com a ingenuidade de quem acredita, não acreditando na verdade, numa  ânsia  absurda  de  que  com  isso,  conseguisse  mesmo  ir  embora  de  mim  própria,  isso  sim !...

Óbvio que eu adoro viajar.  Isso é indiscutível.
Mais do que todos os luxos imagináveis da vida, para mim, uma viagem é, por todas as razões, uma espécie de lavagem à alma, uma espécie de transmutação de mim própria em qualquer outro eu, uma anestesia a toda a insatisfação com que permanentemente vivo.

É um parêntesis nos meus dias ;  é exactamente a brincadeira em que se entra, em que nos travestimos livremente do que quisermos, em que tanto somos heróis como vilões, bonitos como feios, fadas como demónios ... assim ... num passe de mágica !
Como as crianças fazem, nos seus jogos oníricos.

Uma viagem, é para mim efectivamente, um sonho meu enquanto adulta ;  um sonho que inicio sem querer pensar que acaba, que vai terminar, como todos os sonhos ;  sem querer  consciencializar quanto tem de fugaz esse lapso de tempo, em que o  forço , exactamente a parar, a suspender-se ... como se eu fosse mágica e o pudesse manipular.

Mas também, não vale a pena fingir que não percebo que esta viagem, esta mais ainda que muitas outras, é uma fuga minha "para a frente", como "soi dizer-se".
É um fingir que acredito que se curam cancros com pensos rápidos, fingir que a felicidade é um dos prémios do euromilhões que pode sempre calhar, fingir que a salvação nacional só passa pela nossa vontade !

É a ilusão que se vive, quando na tela do cinema se projecta um enredo no qual mergulhamos, porque nos dá paz, nos faz sentir bem, nos aliena ... e nós gostamos ... e nós deixamos !...

Eu sei que é isso tudo, apenas isso tudo, e também sei que vou encontrar à chegada, a mesma que eu sou, e que simplesmente ficou em "marinada" temporal ...
Sei que vou voltar a vestir o casaco incómodo da minha vida, que deixei dependurado no cabide, atrás da porta, ao partir ...

E tudo inalterado,  seguramente !...
Só que já será dia outra vez, a noite terminou, e o sonho sonhado, também !...

Mas pelo menos ... FUI !...

Anamar

quinta-feira, 25 de abril de 2013

" SEMPRE 25 DE ABRIL " !



Uma semente ficou
na floreira do jardim
Continua a dar-me cravos,
e molhinhos de alecrim ...
São cravos do nosso sonho
sonhado naquele dia,
são sinais de um homem novo,
são a vontade de um povo,
foram um rumo, e um guia !

E os sonhos que Abril abriu
pelas madrugadas fora,
foram paridos na dor,
foram vividos no amor,
estão vivos até agora !
Nas algemas da desgraça
ninguém mais nos vai  prender,
enquanto o coração sonhar,
tiver fé, e acreditar
na força do nosso crer !

São cravos que a alvorada
entregou na nossa mão,
rostos erguidos de gente
com coragem, resistente,
e que sabe dizer  NÃO !...

E por isso, Portugal
que acordaste à claridade,
não adormeças teu chão !
Vem p'ra rua, vem dançar,
faz ouvir a tua voz ...
Lança ao vento a liberdade,
acorda toda a cidade,
como o eco de um trovão !!!

Anamar

terça-feira, 23 de abril de 2013

" DEU - ME A LOUCA" !!!!



Decididamente, deu-me "a louca" !

O Mundo está a preto e branco, o país está mais a preto que branco, as pessoas sofrem, angustiam-se e não dormem, com tanta escuridão à sua volta ... eu, decidi ( em total insanidade, e sem que fosse prudente fazê-lo ... ) marcar uma viagem.

Preciso respirar.  É-me  quase  vital  p'ra  não  sufocar,  partir,  ir  embora .
Por pouco tempo, é certo, mas inventando para mim, que é muito.
Basta que seja outro ar, outro céu e outro mar, para que eu já me sinta num conto de fadas, num qualquer paraíso perdido, com o condão de me deixar arquivado numa prateleira distante, tudo, tudo, o que é a minha realidade descolorida, de uma Europa e de um Mundo  "de gaita"  !

Não se vê nenhuma "luz" nos tempos próximos.
Acho  mesmo, que  já nem será para a minha geração, poder-se voltar a viver com alguma descontracção, ou pelo menos voltar-se a "respirar" até ao fundo, de novo.
Estamos, e continuaremos a estar, num arame sem rede.  Vivemos sobressaltos constantes.
Deitamo-nos hoje, com a insegurança do acordar de amanhã.  As nossas noites são assoladas por pesadelos.
E se, surge uma doença ?   E se, surgem obras no condomínio ?   E se, temos um acidente a que tenhamos que responder economicamente ?   E se, um filho derrapa  além da conta ?
E se,  e se,  e se ???

Nunca vivi a "tapar buracos", que é como quem diz, a esticar a manta do palhaço, como diz um amigo meu.
P'ra tapar a cabeça, destapam-se os pés, e para tapar os pés, falta na cabeça, porque sempre é curta ;   não dá para repousarmos tranquilamente, que não arrisquemos constipar-nos.

Tento acalmar-me às vezes, a pensar que à minha volta, "grosso modo", o cidadão comum que me rodeia, vive um pouco da mesma forma.
E ouve-se dizer : "desde que dê para o mês " !  "é assim : este mês faz-se isto, e aquilo espera para o próximo" !...
Deus do céu !  As gerações actuais, porque têm idades diferentes, resistências diferentes, e até formas de pensar diferentes,  têm uma flexibilidade maior, uma adaptabilidade a estes esquemas, mais folgada.
Eu, venho do tempo do "pé de meia", da "segurança" para o dia de amanhã, para a doença futura, para a velhice próxima.
Eu, venho do tempo de que o passo teria que acompanhar a perna, e nada de megalomanias, de deslumbres ou malabarismos desavisados.  Nada de aventuras suicidas, nada de "desvios" permitidos ...
E pronto ;  esse era o espírito dos meus pais, e o espírito sempre existente, enquanto  "fui gerida" economicamente, em lar matrimonial.

Depois ... bom, depois bagunçou-se tudo !
O Mundo "embananou-se" quase logo  ( eu acho até, que havia uma qualquer conspiração astral, programada contra mim ... rsrsrs ) !
E como sem ovos não se fazem omeletes, nem das cartolas, os coelhos saem assim sem mais nem menos ( porque deram em ficar espertos ), eu, "embananei-me"  também !
Eu, e mais quase dez milhões de portugueses, que eu sei !

Claro que há quem esteja a dar-se muito bem nisto tudo.
Como há sempre quem se dê muito bem, e seja muito sagaz no mexer dos cordelinhos certos, em qualquer altura.
E normalmente são sempre os mesmos !...
E isso é que me dá uma raiva desgraçada !  Porque há efectivamente gente, cujos horizontes são privilegiados, e com uma capacidade, eu diria inata e singular, para da "merda fazer ouro" ...
E são de novo, sempre os mesmos !!!...

Eu não fui "fadada" com essas capacidades.
Nem ninguém com escrúpulos, ausência de jeitinho para  expedientes,  ou  outros  esquemas  pouco transparentes,  o  consegue ...
E por isso, olhem ... já não sei o preferível ...

Depois, desgraçadamente, na minha época, também se acabaram os "tios do Brasil", figura vetusta, parda e sovina, que "abrilhantava" com os "níqueis" aferrolhados, as famílias, em gerações passadas.
O "tio do Brasil", era o frequente benfeitor, quando partia, e enchia os cofres dos que por cá ficavam.
Dava sempre jeito, um qualquer desses "tios", que nunca víramos, não conhecíamos, nem lembrávamos ... mas que fiel ao sangue a correr nas veias, não nos renegava a herança choruda, no dia do ajuste final !...
Pois nem esse  bendito "tio", eu desencantei ... bolas !!!
Por mais que esquadrinhasse a árvore genealógica, ninguém, dos meus, se demoveu a ir para Terras de Vera Cruz, em busca de outros horizontes.
Oh gentinha !... Mania dos alentejanos, ao contrário de portugueses mais aventureiros e inconformados de outras  zonas  do  país,  se  agarrarem  ao  torrão  natal,  num  saudosismo  e  masoquismo  idiotas !...
Passar miséria, talvez, mas nunca deixar o seu chão e os seus, também !...

Sei é que me deu  "a louca" !...

E pensei : "Perdido por um, perdido por mil !  Qualquer dia, bato a caçuleta e vou-me embora ...
Qualquer dia, o "lar" está à minha espera ...
Qualquer dia, o cancro, o Alzheimer, a esclerose não sei das quantas, as cataratas nos olhos e a surdez nos ouvidos, esperam-me ao virar da esquina.
As artroses, as pernas que ficam madraças,  as últimas mais-valias físicas e mentais, vão à vida ...
Qualquer dia, qualquer dia, qualquer dia ...
Quase já ... me transformo num "esgar humano", num "simulacro de pessoa", numa "sombra passante"  ... numa tontinha, a quem, à mesa, têm  que  por  o  guardanapo  no  pescoço  e  os  talheres  na  mão ;  numa incontinente  de  líquidos  e  gases,  nos  locais  inapropriados  ( para vergonha, dos que se haviam habituado a  verem-me  como  "invencível",  como  "gente",  como  "gigante",  quase ... )

Qualquer dia, ninguém  mais me quer escutar, porque baralho as conversas, não oiço os diálogos, fico porca na higiene, e chantageio emocionalmente tudo e todos  ( como é apanágio de um "velho" que se preze ) ...

Qualquer dia "embico" nos próprios pés, refino a tão "requintada" maneira de ser que já tenho, apuro a "raiva" de vida, que já sinto ... e lixo a vida a todos os que me rodeiam ...

Então ... se qualquer dia é isso tudo, que se vai passar ... que se   "f.... a taça" !!!
Tenho todo o direito  que  me "dê a louca" !!!...


Anamar

segunda-feira, 15 de abril de 2013

" IL TROVATORE "



Baixei a  S.Carlos, naquele domingo, pelas quatro da tarde.
Lisboa, estava tão adormecida quanto o dia.
Um dia de meio de um Abril incumpridor, que há muito deveria estar a festejar a Primavera, e ainda não lhe vira a cor !

A carruagem parou finalmente ... uma caleche azul portentosa.  Dei uns trocos ao cocheiro, alguns mil réis, peguei a sombrinha, calcei as luvas pretas de doze botões, que tirara, porque afinal também não estava frio, e encontrei-me na calçada.
Havia algum movimento, apenas junto ao Teatro, porque os passantes no Chiado, eram avulsos
Uma tira estreita de água e monte, avistava-se entre dois prédios de cinco andares.
No Tejo, uma vela de  barco da Trafaria, fugia airosamente à bolina, e uma galera toda em pano, trazida pela aragem, passava envaidecida.
De resto, apenas algumas tipoias de praça, circulavam pelo Chiado e pelo Loreto.

À passagem, ainda olhei para o Grémio Literário.  Quem sabe estava por ali o Ega ?!...
Mas não ... Aquele malandro deveria estar ainda a dormir, depois de mais uma noite de esbórnia, talvez lá por Sintra.
Afinal, o Lawrence's costumava prendê-los, a ele e a Carlos, naquelas longas reflexões e filosofices, madrugada adiante, sobre a política tão atormentada, dos tempos que se viviam ...

Em S.Carlos, esperava-me "Il Trovatore".
Certamente a élite intelectual de Lisboa, não perderia a Trilogia de Verdi, que corria, na temporada.
Como sempre, eu afrontava as damas da sociedade, e espicaçava-lhes a curiosidade e uma pitadinha de inveja, atrevendo-me a escutar Verdi, sozinha, no camarote recatado, que Carlos mantinha reservado para mim.
Os binóculos e o leque, encontravam-se obviamente, na bolsinha de mão.
Com o   meu vestido de cauda de "côrte", decotado, de seda da cor do trigo, duas rosas amarelas e uma espiga  nas  tranças,  que  me  compunham  o  rosto  ruborizado,  não  passava  contudo,  desapercebida !

S.Carlos estava um "mimo" !
As cortinas pesadas, "marron", com pendentes dourados, os florões trabalhados em talha, as pinturas nos tectos e nas paredes, os lustres e a profusão de apliques fabulosos, com abundantes pingentes em cristal, eram inigualáveis.
O  camarote real, frente ao palco, encimado pela coroa régia, rodeava-se dos restantes, adamascados em rosa  velho. As efígies de compositores, nas paredes,  os baixo-relevos de um bom gosto indiscutível, as estatuetas da "Virtude" e do "Costume",  ladeando o palco , o relógio adormecido nas horas ... tudo era perfeito !
Nas frisas, os cavalheiros, de colete branco, camisa frequentemente adornada com pregadeira a rigor, sob o paletot , os sapatos irrepreensivelmente envernizados, luvas e bengala de cana da Índia, encastoada, davam um toque "raffiné", quando regressavam do "fumoir", nos intervalos . Era vulgar trazerem o seu monóculo devidamente assestado, para a "função".
As damas da sociedade, como convinha, ostentavam delicada saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma  infinita  languidez  em  toda  a  sua  pessoa,  e  um  ar  sonhador  de  romance,  e  de  lírio  meio  murcho ...

Ainda faltava um pedaço para que o pano subisse ... e contemplando a sala, absorta, relembrei as últimas conversas tidas com Carlos, a propósito do país ... a propósito de Lisboa.
"Um navio fretado à custa da nação, em que se mandasse pela barra fora, o rei, a família real, a cambada dos ministros, dos políticos, dos deputados, dos intrigantes ....
Porque, suprimida a cambada, o país ficava desatravancado, e podiam começar a governar, os homens do saber e do progresso, porque estes, não são maus ... estes, são umas cavalgaduras " !... - dissera-me, preocupado com o estado da Nação.

Enquanto isso, Lisboa está um marasmo !
"Aqui,  importa-se tudo.  Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias ... tudo nos vem em caixotes, pelo paquete !
A civilização custa-nos caríssima, e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas "...
"Vive-se em meio de uma choldra ignóbil !
Predomina uma visão de estrangeirado, de quem só valoriza as civilizações que julga superiores. Principalmente os políticos, que são mesquinhos, ignorantes ou corruptos !...
Enfim  ...  um  país  que  se  dissolve,  Maria  ... Incapaz  de  se  regenerar" !!!...

Interessante esta dissertação de Carlos.
Lúcida, sempre lúcida.
Era forjada nos longos serões de cavaqueio, passados no Ramalhete, depois do avô se recostar ( após o seu whist indispensável, na mesa de pano verde, junto à chaminé, onde agora a chama dos carvões escarlates, não brilhava.  Afinal, era Abril, não esqueçamos !... )
Serões onde não faltava, claro, o Ega, o Craft ( um "doido" a conhecer ), o Cruges ( um geniozinho adoidado ), o Taveira sempre muito correcto, o Marquês de Souselas ... todos em cavaqueira prolixa, à volta de um St. Emilion ou dum Porto, puxando o lume ao charuto .

Pena que tais serões não incluíssem senhoras, presentes ...  Isso seria um desaforo seguramente !
Contudo a curiosidade, o interesse, o gosto por essas tertúlias, em que também se tocava Mendelsshon ou Chopin, aguçava-me o apetite desde há muito, e incendiava-me arroubos contra a discriminação social, como se as mulheres, não fossem também cabeças pensantes, e tivessem apenas como "obrigações", os bordados, o piano, as recepções, quais  bibelots decorativos, de "pose" irrepreensível ...
Tudo demasiado entediante !...
Maçante, o perambular pela luz difusa dos palacetes, cultivando a palidez nacarada nos rostos e cólos !!!...

E assim foi !
Despertei deste torpor, quando o Conde de Luna  lamentava,  que a sua amada Leonora preferia as serenatas de um certo trovador ... que ninguém sabia verdadeiramente quem era ...
E a música de Verdi, transportou-me então, em sonho, até ao final do quarto e último acto !...

No regresso, ainda passei pela Brasileira.
Tinha um encontro marcado, anos depois, com Pessoa ... e ele não faltou !
Nas madeiras, nos tectos trabalhados, nos espelhos e nas telas sobre as paredes adamascadas ... nos grandes lustres suspensos, e mesmo nos balcões ... ele escrevinhava por lá ...

Juro que o vi, e trocámos algumas  "impressões" literárias ...
Proseámos um pouco, e ele confidenciou-me que ... virados os séculos, o país continuava exactamente a mesma ignomínia !!!...
Afinal, tinha acabado de escrever o seu "Nevoeiro" ...

Nevoeiro

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ansia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!






Anamar       

quinta-feira, 11 de abril de 2013

" A TORRE DE BABEL "



Cada história é feita de muitas histórias  e  cada história  conta muita histórias.

Seja o que for que contemos ou que escutemos, essa narração sempre terá muitas versões.
Primeiro, objectivamente,  será a história que queremos contar, ou que no-lo querem contar.
Contamos o mesmo episódo, inconscientemente até, de formas diferentes, consoante o ouvinte que temos do outro lado.
A este, enfatizamos isto, àquele omitimos aquilo ;  aqui, acrescentamos este pormenor com que a história melhoraria, além retiramos aquele outro, que possivelmente  tornaria  fastidiosa a narrativa.
Há coisas que alguns entendem, e outros ... nem pensar !

Historinhas dentro da história principal, estruturam-na, conformam-na, dão-lhe sentido, explicam-na.
Muitas vezes tornam-na mais perceptível pelo receptor, outras, tornam-na enjeitada pelo mesmo, por excesso de pormenores, maçantes e dispensáveis.

Frequentemente, acrescentamos-lhe o tal "ponto" de quem conta um "conto", embora estejamos convencidos, que não narramos mais nada, além da versão "verdadeira" ... a nossa.
Simplesmente, porque como achamos que foi exactamente aquela que vivemos, apossamo-nos da mesma, e passa a ser a "nossa história" !

Mas tudo é absolutamente subjectivo.
E o "filme" que juramos ter visto e sentido na nossa cabeça, ao mesmo tempo, na mesma sala de cinema, à mesma hora ... não foi nada do que o espectador que estava ao nosso lado, viu e sentiu.
Eu vi  "assim" ... ele viu "assado".
E para ele, a história que ele viu, é que é "a história" !...
Obviamente, será a partir dela que ele criará as suas versões, para posteriormente contar e recontar, claro que de forma diferente, por cada vez que a conta !...

E no fim da cadeia narrativa ... se calhar o que fora preto, já está branco de neve !

Depois há também a subjectividade de que o narrador da história a vai imbuir, de acordo com o seu próprio estado de espírito, do momento.
A mesma história fá-lo-á sorrir ou irá magoá-lo, aparecer-lhe-á iluminada de sol, ou escura de tempestade, consoante ele próprio o esteja por dentro, e consequentemente, consoante seja a sua receptividade à mesma, no momento.
E nem sequer é porque ele o queira, conscientemente. É porque a "vê" assim, inteiramente à sua revelia.

E dependendo disso mesmo, ele a passará adiante, dentro desses parâmetros, querendo ou não ...

Ou seja, a história não existe mais de "per si", mas apenas tem vida, pela mão, ou melhor, pelas palavras do "contador" da mesma.
Como tal, a sua adulteração é inevitável.
Mas posso perguntar : " Que adulteração " ?
Porque a verdadeira história, ninguém sabe qual é !
Não será a que eu vi, a que o outro viu, nem sequer a que o "realizador" concebeu, até porque, se calhar, nenhuma  é  real ... embora  muitos  estejam  convictos,  que  possuem o  conhecimento  da  veracidade  do enredo ...

E assim, nunca ninguém se irá entender neste Mundo !
Sempre discutiremos o que foi, como foi, se foi, quem está certo, quem está errado, o valor da minha verdade, o valor da tua verdade, da verdade individual ou da colectiva ...
Por isso é tão difícil entender, valorizar, julgar, porque à partida é difícil interpretar, e consequentemente mais difícil ainda, decidir ou tomar qualquer posição, com isenção ...
... porque isenção, é outra coisa que não existe, na verdade !!

No filme "A vida de Pi", inquirido, Pi teve que narrar duas histórias diferentes, do seu percurso, aos mesmos ouvintes.
Pediu-lhes então que escolhessem a que lhes interessava, a que achassem convincente;  porque a real, a vivida por si, se  mostrou inverosímil aos olhos e aos ouvidos de quem a escutou.
Não era aquela que eles "queriam" ouvir, afinal !!!...

Já imaginaram  -  nos mais de sete bilhões de seres humanos que ocupam o planeta Terra, pressupondo que cada  um  terá  a  sua  história,  feita  de  muitas  histórias  e  contada  por  tantas  outras  -  como  é  que  alguma  vez  ou  algum  dia,  nos  poderemos  entender ???!!...

Como  numa  verdadeira  Torre  de  Babel ... "jamais" !!... diria  o  outro !!!...

Anamar

quarta-feira, 10 de abril de 2013

" PASSAGEM "



É um tempo de passagem
o meu tempo de viagem,
tudo o que a Vida me dá ...
É o que é e não é,
uma verdade e mentira,
um sonho partido ao meio ...
é estrada entre cá e lá !...

É caminho de chegada
e é caminho de partida.
Não é um lugar de estar,
Não é lugar de ficar ...
Não é um lugar de tempo,
porque há pressa de passar ...
E porque é urgente chegar,
não é tempo de lamento !...

Não estende as suas raízes,
Não tem escoras, não faz ninho ...
Só me traz mágoa e tormento ...
Não é de lugar nenhum
e é de todos os lugares ...
Tem urgência de partir, mal acaba de chegar ...
Não tem alma ou coração,
pois ninguém segura o vento !...

Nestes meus dias cansados,
queria unir as duas margens,
queria deitar e sonhar...
Indiferente, a água corre,
debaixo daquela ponte ...
E o sol,  lá no horizonte
também já se vai deitar !...

E tu chegas, e tu vais ...
tão breve quanto a aragem despenteia o meu cabelo ...
Não ouves o meu lamento,
foges de mim, como o vento !...

Meu amor, não partas já ...
Deixa eu inda acreditar,
que o meu tempo de viagem,
este tempo de passagem,
existiu p'ra te encontrar !...

Anamar

sábado, 6 de abril de 2013

" BELEZA PURA " - palavras para quê ?

Hoje, sem nenhum preâmbulo, além de vos convidar a relaxar sonhando ... contemplem estas maravilhosas imagens ...

Nem tudo tem que ser a preto e branco, aqui, neste meu espaço


Anamar


quarta-feira, 3 de abril de 2013

" DEVANEIOS "



Gosto de escrever, de fotografar e de viajar.
Aqui estão as três actividades ou "hobbies", que mais gozo me dão, fazer.

Com a primeira, imprimo as emoções, que são sensações já trabalhadas.
Extravaso, tricotando ideias, misturando convicções, buscando respostas para dúvidas, desenhando no papel, o imaterial que está dentro de mim, trazendo à luz, o que faz parte do domínio da escuridão da alma.

Escrevendo, abro-me, disseco-me, com os bisturis do sonho que não refreio, e que deixo fluir ;
avanço por mim adentro, cirurgicamente, na busca de cantos e recantos inalcançáveis ... alguns que nem suspeito que existem.
Na escrita me exponho, me questiono, às vezes numa conversa de surdos, porque não obtenho respostas de nenhum lado.
Com as palavras, dialogo com parceiros reais, umas vezes ... inexistentes, outras.
Com as letras, construo e desconstruo cenários inverosímeis ou só sonhados, por inviáveis ;
Brinco de caleidoscópio de alfabetos, e giro, giro as pecinhas, que aleatoriamente, no jogo de espelhos, como na vida, me devolvem o possível e o impossível, e me deixam brincar, sem reclamarem ...

Ao escrever, fotografo e viajo.
Faço a minha fotografia subjectiva, do objectivo, e do que invento ;  fotografo-me e fotografo os outros, e o tudo, que é o somatório dos retalhos, por aí perdidos.
A escrita é frequentemente a minha alucinação, porque é livre, não censurada, libertina.
E viaja.
Viaja sem fronteiras, sem barreiras ou moralismos.  Vai exactamente até onde eu quero ... até onde eu sinto.
Pode ser carrancuda, de cenho carregado, de sobrolho franzido ... ou pode ser brincalhona, infantil, desarmada, inconsequente, lúdica, como num jogo de roda.
Com ela, posso construir um zoo de homens enjaulados, e um mundo de bichos livres e coloridos ... É só eu querer !
Ela pode decidir por um sol prateado em vez de dourado, a iluminar um firmamento verde-esperança ... ou escolher um calendário só de Primavera, com o mar sempre manso e preguiçoso, a dormir na areia branca, com gaivotas, mas também com flamingos ... porque eu gosto !!!
Ou então, um céu negro de borrasca, com nuvens encasteladas e vento zangado e bravio ...
E com todas as corolas da Terra, a abrirem flores, sem cessarem ... com as cores que nenhum artista matizou ... Só porque eu gosto também !...

Enfim, com a escrita pincelo telas, crio histórias que existem e que não existem, e mergulho nelas, confundo-me com elas, e com elas mascaro a minha própria história ...

Quando fotografo, escrevo de outra maneira.
Quando fotografo, procuro com o olho da câmara, aquilo que os meus olhos nem sempre vêem.
Recorto do que vejo, só o que me "toca", e deixo o resto às escuras.
Quando fotografo, tenho o poder mágico do Aladino da Lanterna, tenho o poder divino de fazer e desfazer, num piscar de olhos, e num clique temporal.

E  invento como quero, também ...
Posso  tornar aquele canto de tonalidades mil, de sol e luz esfuziante, num lugar tão cinzento, escuro, frio  e nebuloso, como o meu coração poderá estar naquele momento.
Basta querer ...
E posso fazer ao contrário, e abrir de repente, aquela imagem penumbrenta, em luz e cor, à medida da minha loucura, e do meu prazer lúdico de ser Deus !!!

Depois, bem, depois é dar som e cheiro a tudo aquilo ...
E juro-vos ... não tem nenhuma dificuldade !
Todas as minhas fotografias têm calor, frio, sol, chuva, aromas doces de campos íntimos, perfume entontecido de mimosas ou glicínias,  chocalhos de ovelhas na pastorícia, e zumbidos de abelhas  e zângãos, a beijarem descaradamente os botões das roseiras bravas, recém-abertos ...
Todas têm o sopro da brisa que perpassa, o grasnido das gaivotas, o piado da coruja, e a batida das ondas, mansa ou agreste, nos rochedos lá  em baixo ...
Todas têm o afogueado dos rostos, e o suor dos corpos, as batidas descompassadas dos corações, as cumplicidades gravadas em sussurros ou silêncios, o frio das mãos geladas, entrelaçadas nos bolsos, e têm também os risos cristalinos da felicidade, ou mesmo o soluço das lágrimas, que correram teimosas ...

E têm voz ...

Têm palavras que foram ditas, e ficaram ... palavras perpetuadas, que se colaram à imagem, e fazem a história daquela fotografia "ad eternum" ...
Ou silêncios adivinhados ... que não desvendam o seu significado ...
E contam, por isso, histórias também ... Escrevem momentos ...

As viagens ...
Bom ... viagens é tudo o que faço, vinte e quatro horas por cada dia.
Viajo quando vou, e viajo quando fico...
E  faço  as  mesmas  viagens,  rescrevendo-as  e "pintando-as", das  mais variadas  formas, com  todas  as  nuances possíveis,  a  meu  belo  prazer !
Viajo acordada, sempre ... neste espírito inquieto, sôfrego, insatisfeito e meio desbaratinado, do meu "tudo" ou "nada" ...
Viajo na inconformação de me saber confinada a espaços, a pedaços de vida, curtos demais para a minha ânsia ...
Viajo, quando me transmuto constantemente em outras personagens que invento, porque as desejo muito ...
E viajo a dormir, à minha revelia, p'ra destinos que nem escolho.
Às vezes, queria aquele sonho em "suporte de papel" ou registo fotográfico, para o reler e o rever, até me esgotar ... para nele viajar uma e outra vez, até me exaurir ...
Outras, não !!!...

Mas quer escreva, fotografe ou viaje, levo na minha bagagem o sonho que me acompanha, levo na cabeça o chapéu que me protege das intempéries do destino,  nas mãos, as flores que vou colhendo nas bordas das estradas ... e no coração a ingenuidade da criança que nunca deixarei de ser !!!...


Anamar

segunda-feira, 1 de abril de 2013

" A FALAR ALTO ..."



Finda a Páscoa, Abril chegado, o sol espreita, muito reticente, já que ainda está muito por detrás das nuvens, e a metereologia não é animadora para os póximos dias.

Hoje, sinto em mim uma determinação, ganas, necessidade absoluta de, como numa qualquer expurgação, me deixar ungir pelas águas do Abril, que agora abriu.
É uma espécie de corte com o Inverno duro, profundo, depressivo, escuro,  e  desesperante,  como o que findou,  e me atirou, quase nos atirou  a  todos,  para  um  cansaço de alma, e uma desesperança tão penosa, quanto ele  o  foi.

As águas de Março fecham o Verão no Brasil, canta a saudosa Elis Regina ... Fecham o nosso Inverno ...
Seria desejável que o fizessem !

Estamos todos a precisar de dar uma boa sacudida de asas, como os passaritos ao saírem da poça de chuva onde se banharam,  saltarmos  para  o galho mais alto da cerejeira florida, lá donde se avista o Mundo, e acreditar que podemos voar, seja lá  isso  o que for.
Sinto hoje em mim,  uma ânsia de um qualquer fecho de ciclo, uma ânsia absoluta e imperiosa de um virar de página, um desejo de renovação e recomeço de mim mesma.
Como se eu pudesse ( quem sabe, posso ? ), fazer o meu próprio e urgente "reset".

É  verdade,  que  "empurro"  um  pouco  estes  pensamentos  p'ra  frente ...
É verdade, que estou a tentar impor-mos, não sei se com convicção que chegue ...
É  verdade, que me guerreio p'ra neles acreditar, porque como alguém sequioso no deserto, ou encontro água, ou morro ...
Como alguém que sufoca, ou oxigeno os pulmões ou sucumbo ...
E  na minha característica e habitual "bipolaridade", deixem-me ver o azul agora, porque logo à tarde, provavelmente já troveja dentro de mim ...
Eu conheço-me ...
Qualquer lampejo de sol me leva ao topo da montanha, qualquer pingo de chuva me submerge, qualquer golpe de vento me derruba ...

Neste momento, dentro de mim, é uma questão de sobrevivência.
Ou consigo fazer-me uma "faxina" na alma, ou já não me levanto. Ou consigo inventar que ainda há objectivos a cumprir, ou estaco por aqui mesmo ... Ou acredito que ainda posso ter vida pela frente, ou desisto, e mais vale parar de vez ...

Sinto, que esticar mais este adormecimento que são os meus dias totalmente desinteressantes, não é mais possível, sinto que fingir que este adormecimento em que vivo é sustentável ( quando sei que não o é, mas sim, destruidor ), é absolutamente falacioso ... Sinto que continuar apenas a fazer de conta que vivo, como uma marioneta a reboque dos ritmos que me vão empurrando adiante, só empurrando e eu deixando-me levar, só levar - sem agente ser sequer, do meu próprio destino - é de loucos !
Sinto que fazer de conta que existo ... só fazer de conta, porque afinal desempenho as funções vitais e outras, programadas para o comum dos mortais ... não é mais suportável !

Percepciono ter chegado a uma encruzilhada, não sinalizada, e tenho que decidir de uma forma determinante e urgente, que caminho escolho seguir ... porque tenho que tomar um.
Não dá mais p'ra ficar parada numa indiferença doentia, numa estagnação mórbida, numa anestesia de vida ... vendo-a como uma película a que assisto, como mera espectadora !
Não se pode fingir apenas, que se existe ...
Só nós somos agentes dos nossos próprios destinos ... ninguém mais.
E urge fazê-lo, porque a contagem decrescente está aí, segundo a segundo, na ampulheta do Tempo !...

Eu sou um  espanto ... vou ter que confessar !...

Passou talvez uma hora, pouco mais, desde que reflicto aqui no meu cantinho do café, "as usual" ...  e neste momento, já não sei bem se a tal determinação, as tais ganas e a tal necessidade absoluta de ... com que iniciei os meus escritos, ainda têm "pernas para andar" ...
É que acho que, como um balão de menino, furado, me fui esvaziando, esvaziando de mansinho ... e pronto ... agora, que são seis  da  tarde,  naquela  hora  "macaca"  em  que  o  sol  ( quando o houve ), se recolhe para dormir, eu sinto-me perdida, mas perdida mesmo ...
Perdida, de aperto no coração, a doer sem remédio, e sem rumo ou norte.
Só sei que tenho aqui no meio do peito, um buraco.
Juro que tenho ... e quem me ler só pode dizer que sou louca !

Era cómodo que o fosse ...  Mas  completamente,  porque  desta  forma,  não  está  a  dar ...  juro ...  não está  mesmo  a  dar !!!...

Anamar

domingo, 31 de março de 2013

" O FIM DA LINHA - os nossos oito minutos "



Dizem que se o Sol explodisse agora, apenas daqui a oito minutos, a Terra escureceria e gelava.
Esse é o tempo que a sua luz leva a chegar até nós ...

Quase tudo nas nossas vidas tem  " 8 minutos " ;  o tempo entre o acontecer, e o aceitarmos que aconteceu.
E esse intervalo de tempo, pelas mais variadas razões, desejamos muitas vezes "encompridá-lo", tal a negação que fazemos das coisas, por sofrimento, por dor, por incapacidade de aceitação, por defesa, por sobrevivência mesmo.

Durante esse interregno, fingimos que tudo está igual, fingimos que nada aconteceu, fingimos que continuamos a viver, porque recusamos o "baque" que virá a seguir.
É uma hecatombe para a qual não estamos preparados.
Esse tempo de inevitabilidade, obviamente, é o que leva a percorrer o corredor da morte, até à sala da execução, é a pausa que medeia entre a toma do veneno e o seu resultado, os minutos que transcorrem entre o início do terramoto, e o seu fim.
É um período de recusa, uma espécie de suspensão de vida, uma espécie de frase deixada entre parêntesis.
Um período em que "ignoramos" o que vem à frente, e continuamos ligados ao que existia, ao que tínhamos, e ao que vivíamos.

É um tempo de alucinação provocada, de "mise-en-scène" programada, um tempo em que nos agarramos ao que estamos perto de ter que largar, no desespero de o manter !
E por isso tendemos a esticá-lo, a alongá-lo, a perpetuá-lo.
Esse tempo de inverdade, de ludíbrio abençoado, de ilusão construída, de mentira misericordiosa, era o que levava a "rosa" a ser feliz ainda, só porque acreditava que o seu Príncipe voltaria no dia seguinte, para a regar, mesmo sabendo que ele estava de partida, do asteróide do sonho ...
Era o que fazia a Maribel repousar placidamente o seu queixo de menina, no portão, vendo o "Homem das Rosas" desaparecer na volta do caminho, mesmo quando ele lhe deixou uma rosa branca, que já era uma despedida ...
É  o tempo de doçura e paz que degustamos, quando dedilhamos uma mensagem especial de telemóvel, só porque  durante  esse  tempo  que  se deseja longo, temos o destinatário bem ali ao nosso lado, sem poder fugir ...
É o período em que mantemos os ritmos pertencentes à realidade que não queremos perder, e os agarramos com unhas e dentes, porque eles são portadores de Vida ... ainda !!!

No filme "Extremamente Alto, incrivelmente Perto", relata-se a história da relação pai-filho, entre um homem que morre no atentado de 11 de Setembro nas Torres Gémeas, e o seu  filho, um  pré-adolescente, com quem tinha uma ligação muito estreita.
Tinham por hábito, na sua convivência diária, manter jogos destinados a estimular a curiosidade, a perseverança, o espírito de aventura e a disciplina do miúdo.
"Não páres de procurar" ... "Se não procurares, nunca saberás" ... eram frases, que o pai repetia a Óskar frequentemente, para incentivá-lo nas brincadeiras.

Depois da tragédia, Óskar entra num período de recusa do acontecido, e tenta manter, de todas as formas, o pai "vivo", na sua vida.
Para isso, inicia sistemática e persistentemente, a busca  da resolução do último desafio, que nos jogos, o pai lhe havia proposto.
Exaustivamente, Óskar toma como meta de vida, "nunca parar de procurar" a solução para o enigma, que lhes ficara entre mãos.
E  enquanto  durar  essa  intrincada  busca  da  solução, Óskar  vive  os  "8 minutos",  na  sua  relação  com o  pai.
Esses  seus  "8 minutos",  são  desejavelmente  longos,  e  de  preferência,  sem  fim ... obviamente !...

Na verdade, esses "8 minutos" são sempre os "8 minutos" mais curtos, e que mais longos queremos tornar, nas nossas existências, em qualquer circunstância.
Enquanto eles estiverem a decorrer, nada "aconteceu", continuamos a "viver para", continuamos a respirar o mesmo ar, continuamos a ouvir as mesmas vozes, a ver as cores, a sentir os cheiros do que era, e não é mais, mas que não temos força para aceitar que já não seja.
São os últimos  "8 minutos" de "Vida" ... porque depois deles, vem a "Morte", vem a injustificação do "estar", vem o fim das nossas razões e objectivos, vem a perda do tronco que nos mantinha à tona, vem a derrocada do que nos espaldava, e com ela, iremos nós também para o fundo ...

Eles, são o cordão umbilical que ainda nos deixa "ser", são a ponte que une margens, que quereríamos sempre unidas ...
São  os  últimos  "8 minutos",  do  nosso  "fazer de conta" ...
Porque então, quando eles se nos escoarem em definitivo pelo meio dos dedos, teremos mesmo chegado ao fim da linha !!!...

Anamar

sábado, 30 de março de 2013

" LENDA "


Viraste pedra ...

Eu sei, que hoje não és mais do que o granito da Serra,
dos penedos imemoriais que os musgos cobrem.
Duro, agreste e insensível aos ventos e às chuvas ...
enrodilhado no meio da floresta,
silencioso e quedo ...

Eu sei que só escutas o canto dos pássaros, o zumbido das abelhas, e o sussurro dos ventos
que te moldam,
e te contam histórias, e mistérios da terra das Gentes ...
Hoje, eu sei que  recolheste  à terra, te confundiste com ela, e regressaste ao útero que te gerou.
Sei que desceste às profundezas da sua verdade,
e esqueceste ... adormecido nos milénios !

Nas noites de lua cheia, quando Cíntia dança pelos picos e clareiras, o seu bailado de loucura,
quando as mouras encantadas, os príncipes, as ninfas, os elfos e os duendes, conspiram sobre amores perdidos,
( por entre o nevoeiro que sobe do mar ),
e os picos reflectem as miríades de estrelas
que assomam, tímidas ...
tornas-te gente, ganhas alma, ganhas corpo, coração e sexo ...

É então, que um soluço ecoa pela mata,
um gemido estremece as pedras,
e há um grito que se mistura com o lamento do gavião, ou com o piar da coruja,
e que aterra as violetas das encostas ...

Nesse silêncio de infinitude,
nesse espaço de eternidade,
correm-te lágrimas no rosto, sangras no coração, lateja-te o sexo ... e lembras ...

É o tempo do Tempo !...

Lembras então,
que houve tempo em que havia tempo ... o tempo dos Homens !...
E lembras a marca do teu corpo desenhada na minha cama,
o calor dos teus braços que ateava inverdades no meu coração,
as manchas do teu sémen, feito semente no meu jardim ...
e a tua fogueira, que queimava o meu ser,
aberto em corola de Primavera chegada ...

Lembras que havia uma luz doce que pairava,
porque a escuridão tinha ido embora ...
E havia cânticos, que embalavam sonhos ...
e havia aquela viagem etérea, que fazíamos, rumo a destinos nossos,
como as mariposas volteiam rumo à luz ...

... para também, como elas morrermos ... sempre morrermos ...

Mas isso foi nos tempos sem memória ...

Porque hoje ...
Hoje, Cíntia não dança mais nas clareiras e nos picos,
em  noites de lua cheia ... lá na Serra ...
Hoje, os seres das entranhas, os seres das trevas,  calcorreiam os caminhos iniciáticos,
em busca da luz, num karma nunca cumprido ...
Hoje, a  realidade  tornou-se lenda,  "ad eternum" ...

Porque ...

Hoje, tu viraste pedra ...

Anamar

sexta-feira, 29 de março de 2013

" RECORDO ... "



Mais uma Sexta-Feira Santa, perfeitamente enquadrada  na tradição.

Recordo estas mesmas palavras escritas no ano que passou, o que significa que tal como no anterior, e no anterior e no anterior, sempre o dia de hoje é escuro, cinza, e frequentemente de chuva, na tal contrição e recolhimento,  de que a Igreja nos fala nos Evangelhos.  Afinal, vive-se a morte de Cristo.
Este ano então, com a persistente pluviosidade de um ano extraordinariamente molhado, o dia de hoje faz jus a um verdadeiro dia de Inverno, numa Primavera que brinca ao Carnaval connosco.

E obviamente que, valorizando ou não, estamos em mais uma "marca" temporal, calendarizada pela Igreja Católica : a Páscoa.

Recordo Páscoas de vários rostos e de várias vivências, na minha vida.

Quando menina, lembro  particularmente a Páscoa religiosa, vivida no Alentejo, com toda a tradição aprendida nos bancos da catequese.
Era época de férias escolares, eram dias despreocupados em casa dos meus  avós, e era todo o ritual católico em que cresci, a desenrolar-se, como já descrevi aqui em anos anteriores, entre Quarta-Feira de Cinzas e Domingo de Páscoa, culminando com o expoente máximo, a festa da Ressurreição de Cristo.

Além destes eventos religiosos, que eram  vividos  mais como qualquer acontecimento social que coloria diferentemente os dias, na pacatez de férias desocupadas, do que com um real entendimento religioso ( já que eu era menina, de sete, oito ... dez anos ), o que lembro com maior nitidez ( e há realmente coisas espantosas nos desígnios da mente humana ), era o sol que sempre iluminava a manhã do Domingo, e as amêndoas, as bolotas e os rebuçados de meio-tostão,  atirados  para as ruas, para os magotes de criançada, quando ao meio dia de sábado, as Aleluias se ouviam  repicar na torre sineira da Matriz.

De facto, eu garantiria que não atravessei um Domingo de Páscoa sem sol !...
Há coisas espantosas !...  Ele colou-se-me seguramente aos olhos, nesse dia !...

Recordo também, e este pormenor enternece-me ainda hoje, quando o lembro, o facto de todos irmos à missa de Domingo de Páscoa, ostentando na gola, na lapela, no vestido, um pequeno raminho de alecrim, florido e cheiroso obviamente,  nesta época do ano.
O início da Primavera, a renovação da Natureza, e o engalanar dos campos, onde  a maioria das plantas, mesmo as mais singelas e discretas, acordam e se enfeitam, florindo, contempla também a discrição do alecrim, que se faz notar, particularmente pelo aroma que exala, e não propriamente pela humildade das suas pequenas flores azuis ...

Outra sensação que experimentava então, e que lembro com nitidez, era uma certa leveza de alma com que sempre regressava da missa de Domingo, como se um fadário, uma turbação ou uma dificuldade que eu também tivesse atravessado, tivesse enfim, cessado.
Parecia que algum mau tempo tinha passado, parecia que mesmo inconscientemente, também eu me deixara invadir por toda a Via Sacra, e havia em mim uma descompressão, como alguma coisa doída que fora superada ... Hoje, a esta distância, ainda lembro perfeitamente ...
E olhem que, como disse, eu era bem criança na altura ...
Estas eram as Páscoas da minha infância, as Páscoas de Alentejo interior, as Páscoas, como costumo dizer, de família completa, de mesa farta, de regaço de avó ... do tamanho do Mundo !...

Anos depois, muitos anos depois, vieram as Páscoas da Beira.
Nessas, eu já transferira a brincadeira, a desocupação, a  despreocupação  de vida, para as minhas filhas,  elas agora, com a minha idade de então.
Acho que eram Páscoas mais "pobres"...
Tenho a certeza que se contassem as referências que têm, aquilo que não esqueceram, de bom e de mau, elas circunscrever-se-iam às brincadeiras, aos passeios de bicicleta pelos campos, e à "chanfana", prato obrigatório do almoço de domingo, em casa dos avós paternos, para o qual sempre tinha que haver alternativa, porque nunca consegui que dele comessem ...

Para mim, era um período de pausa escolar, que me levava de Lisboa para a Beira Alta, que me tirava da rotina da cidade, que me permitia o contacto com a Natureza, o ar livre, e com sorte, com o sol às vezes já aconchegante, nesta altura do ano.
Era a possibilidade de sentir os aromas, as cores e os sons, dos campos ;  de sentir o cheiro ( que sempre lembra casa e família ) da  broa   a   cozer   nos   fornos   da   vizinhança,   e   do   Bolo   da  Páscoa   ( sucedâneo do folar do Alentejo ), bolo finto,  tendido,  e  cozido  no  forno  de  lenha,  em  cima  de  folhas  de  couve, que  os padrinhos  dão  aos  afilhados,  nesta quadra.
Era época de passeios a pé, só comigo mesma, sem horas ou compromissos, apenas viajando com a mente preguiçosa e vadia, esvoaçante como os pássaros acordados pela Primavera, que cortavam os céus em chilreios de acasalamento .

Bom, e restam as Páscoas de hoje.
Essas, são passadas num "quatro assoalhadas" no meio do betão da cidade incaracterística, sem festividades religiosas, sem Alentejo, também sem Beira, quase sem família ( porque derivam para outras paragens ), sem alegria particular, sem a criança que fui, ou a jovem que também fui, e sem os passeios despreocupados e retemperadores pelos campos, que estão agora tão longe de casa ...

Ah, é verdade ... e sem o raminho de alecrim, que com o seu  cheirinho, seguramente não me deixaria jamais esquecer, que afinal ... estamos na Páscoa !!!...
Mais uma !!!...

Anamar

quinta-feira, 28 de março de 2013

" PALAVRAS "



Só me restam as palavras,
Aquelas que semeio em brancas folhas,
porque os lábios as não proferem
no susto de se ouvirem e se doerem ...

Aquelas palavras, que o vento que me bate na janela
sempre leva para longe,
para lá do cume da serra ...
e que ecoam na penedia ...

Palavras que gritam,
palavras que choram,
e se degladiam
na ânsia de se dizerem,
na vontade de correrem até ti ...

São junções das letras que tenho espalhadas nos livros da alma ...
a que o corção corre a dar sentido ...
São construções encasteladas,
destruídas pelas ondas que não poupam os areais
quando a maré sobe,
e a brisa que embala as gaivotas,
as repete e as repete, num eco de eternidade !...

As palavras são o som da minha fome,
o desatino da minha alegria,
ou da minha mágoa,
nos dias em que me perdes, achando-me,
tal como no caminho em que me perco, esperando-te,
e em que me matas, com esperanças de Vida,
neste navegar de mar encapelado !...

Comigo só tenho as palavras
que silenciaram,
porque os ouvidos as esqueceram,
as mãos deixaram de as dizer,
e os olhos choram, só de lembrá-las ...

Como são injustas, as palavras !...
Como são curtas, e mentirosas, as palavras !!!...

Anamar

quarta-feira, 27 de março de 2013

" CONFISSÃO "



Anseio partir
Partir daqui, partir de mim e partir também de ti ...
A Primavera ficou por lá, e não quer chegar !

Dizem que é Páscoa outra vez ... Ainda foi ontem !
Mas hoje não tenho as amêndoas das Páscoas dos meus avós,
e também não tenho as de licor, que o meu pai comprava
como se fossem brinquedinhos de criança ...

Já faz tanto tempo ... e esteve tanto frio, entretanto !

No meu jardim, este ano, os alecrins não floriram,
e as glicínias, com tanta chuva, mais parecem cachos de lágrimas,
do que de flores roxas e perfumadas ...

Óbidos também já foi, faz muito ...
no dia em que o Senhor dos Passos desceu à rua,
onde as pessoas contritas O esperavam, recolhidas ...

Sabes, eu emocionei-me então de O olhar !...

Eu não acredito no Seu divino.
Vejo-O como um jovem, dolorido e sangrante, a percorrer aquele destino.

Todos temos um, não é ??
Só que a nossa cruz não se vê ...
mas pesa, pesa Mundos nas nossas costas !
E o roxo das nossas vestes, é o que nos embrulha a alma, nos dias das vidas ...

O meu Alentejo também já verdeja,
mas esse, é vaidoso e enfeita-se ...
Sempre se enfeita, com a generosidade das papoilas, das estevas, das macelas e das urzes.
As "maias" talvez já perfumem aquela terra de solidão,
que me pariu, como gera o pão no seu ventre,
e o dá à luz,
ano após ano, vida após vida !

A mim, deu-me este anseio de partir,
esta inquietação de marinheiro das searas douradas,
o cansaço do caminhante, apoiado no bordão que o leva, o suporta e o ampara ...

Não há estrela que me norteie lá na planície,
Não há água que me dessedente,
Não há rumo naquela vastidão,
nem sequer um horizonte que me faça parar ...

Por isso, tenho pressa de partir
antes que o meu tempo acabe ...
Partir daqui, partir de mim e partir também de ti !...



Anamar

segunda-feira, 25 de março de 2013

O " DESTINO " IRREMEDIAVELMENTE INFIEL DO " MACHO "...



Estava aqui a reflectir com os meus botões, e o que reflecti não acrescenta nem retira nada  a tudo quanto seguramente é do domínio de todos, nem mesmo tem um pingo de originalidade na história dos "géneros", transversalmente à Vida,  tenho a certeza, !

Resultou a minha reflexão de um facto algo insólito,  que reporto como hilariante, que me fez sorrir ( já que não sou de riso fácil ), e que deve ter deixado alguém  talvez "atrapalhado", ou pelo menos "um pouco lixado" ... se é que os homens se atrapalham com coisas destas ... o que duvido !!!

E prende-se ao facto de, pelas 8 horas da manhã, me terem caído no telemóvel, duas mensagens que não me eram dirigidas, e que por desígnios do destino, ou porque o diabo está por vezes atrás da porta, o emissor das mesmas, teve o azar de ter disparado erradamente.

A pessoa que emitiu as mensagens é minha amiga, tem uma vida familiar construída equilibradamente, com filhos em idade escolar, inclusive.
É o tipo de "chefe de família" - puxando agora este chavão em desuso, mas que acho que se apropria aqui lindamente, para que percebam o que quero dizer - absolutamente certinho, cumpridor de horários, dedicado, preocupado ... em suma, eu diria tão exemplar, que incapaz de " partir um prato",  ou  "meter a pata na poça ".
Pois bem, as mensagens foram disparadas em hora de distração ... e como vos disse, erradamente ...
Azar dos azares !!!

Nada importante afinal, estou certa !  ( Eu é que ainda me esforço para acreditar no Pai Natal !!... )

Foi então que comecei a repassar na minha mente, como numa espécie de "rewind", o perfil de miríades de homens que conheço, que conheci, com quem convivo, uns mais amigos que outros, uns mais proximamente que outros, uns na categoria de conhecidos, outros nem tanto.

E realmente ... voltei a sorrir ...  Só sorrir !
E pensei com algum desânimo : " De facto, pobre da mulher que acredite que pode acreditar ( desculpem a redundância ) no parceiro,  que com ela divide este planeta " !!!...

Não vou pormenorizar, não vou sequer enumerar, não vou concretizar ( não vem à colação, embora na minha  cabeça  tivessem  desfilado  dezenas  de  perfis  todos com  rosto,  na maioria ... apenas  referidos  por  outrém ... alguns ).

Na  realidade, o  "bicho-homem"  não  resiste  a  sossobrar  aos  seus  desígnios  de  "macho", de "animal-macho" ...
Isso,  sobrepõe-se a tudo ...
Ao razoável, ao aconselhável, ao "direito", ao correcto, ao justo, ao certo, ao honesto, e se calhar ao coerente e digno ( e ficaria aqui a enumerar razões, que não esgotaria ... )
É um impulso, uma "pulsão sexual" irresistível,  uma necessidade de afirmação de virilidade, talvez uma insegurança,  que de quando em vez o assalta e tem que ser reforçada,  para o equilibrar e tranquilizar ... Sei lá !!!
Sei,  é que  se  lhe impõe uma estranha necessidade de desligar uma "cabeça" !...

É característica de género, só pode.  Não tenho dúvidas !...

No domínio dos humanos, com a carga moralista que sobre nós se abate, obviamente essa questão é imediatamente rotulada de infidelidade, de depravação, de safadeza, de mau-caracterismo !...
Eu tenho um amigo, que diz  que o Homem é intrinsecamente  polígamo, e que é "contra-natura" ter uma só mulher.  Por essa razão nunca casou .  Teve e tem relações mais ou menos longas, ao sabor do seu bem-estar, e pronto !  Salta  "de galho em galho", até que  "o tigre que existe nele", sossegue, como diz, a sorrir !!!
Esse, ao menos é coerente, ou frontal, ou realista ...
A maioria  tenta camuflar.
Sabe que essa postura é fortemente refreada de facto, pela moral judaico-cristã vigente e ainda não liberalizada, que nos espartilha, apesar da abertura cada vez maior da sociedade, e da "tolerância" progressiva da mesma, aos costumes ( que deita diariamente abaixo "tabus" e inibições ).
Como tal, hipócrita e cinicamente, tenta dar uma de "bom menino", "enquadrado" e " inocente" ... e depois ...  engana-se  nos "sms" ... ou  deixa  "rabos  de  fora", encontrados  sem grande  esforço  pelos  mais  atentos !!!... ( rsrsrs )

Noutras civilizações, noutros povos norteados por outras determinações morais e religiosas, esta questão fica diluída ;  não é sequer considerada.
A poligamia pode ser aceite como normal.
É normal o sultão ter várias mulheres nos haréns. As tribos índias, os aborígenes e outras etnias, vivem com partilha "pacífica" de fêmeas.
Muitas civilizações orientais e africanas, alicerçam-se em células poligâmicas, também.
Os muçulmanos permitem-no.  Os budistas, não sendo uma religião, mas uma filosofia de vida, aceitaram a poligamia, bem como o hinduísmo e  o judaísmo conviveram com ela, enquanto que o mormonismo  a pratica.

Entendo como prova de que  a componente genética é determinante, o que se observa  com toda a clareza no reino animal.
Sabemos que quase todas as espécies, se configuram em células encabeçadas pelos machos dominantes, os machos-alfa, que têm o privilégio de escolherem e congregarem à sua volta, um sem número de fêmeas, garantes da sobrevivência e continuidade  da espécie, simplesmente.
Obviamente que no reino dos ditos irracionais,  não há regras religiosas ou morais, condicionantes ou castradoras  das posturas de vida e convivência.
Consequentemente, o que impera e determina, são portanto exclusivamente as características  naturais, genéticas, "selvagens",  na verdadeira  pureza do termo.

E imagino ( ainda a sorrir ), no início deste meu texto, os homens que me lerem,  a "torcerem-se", eles sim com um sorriso amarelo, e a dizerem :
"Como se, e em particular na actualidade, a Mulher não fosse tanto ou mais predadora que o Homem, e como se a "ética" feminina neste momento, chamemos-lhe assim, não fosse exactamente igual " ?!...

Contudo, refuto  parcialmente  esta análise, visto que continuamos a viver  numa sociedade ainda claramente machista, e a conduta prevalecente, é, como sabemos,  a de permissividade em relação à prática masculina.
Por isso acredito que, estatisticamente por aqui, tal como na savana africana, continuamos a ter o "leão dominante", a escolher o naipe feminino em que reinará !...

Lá, como cá !...
E  tudo isto adveio  afinal,  do equívoco de alguém, hoje pelas oito da matina ... ou da "irremediável" condenação à  infidelidade do "macho",  coitado !!!...

Anamar