segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

" PARALELO 66º 33' 44 '' N "

 





Ainda não falei do branco.  Do branco que não o é apenas ... mas que é laranja, róseo, cinza, verde, mas sobretudo azul !...
E aquele branco também não é apenas a cor que reúne e funde todas as outras, de uma vez só .  Aquele branco é cheiro, é luz e é lua, é silêncio, é agreste como o gelo que o reflecte e é tão fofo e macio quanto a neve que se amontoa.  É frio que corta por fora e é calor que conforta por dentro.  É real e é sonho.  É íntimo, é mítico e é místico ... é uma melodia esvoaçante ...
Aquele branco é uma história sem princípio nem fim que se desfia na penumbra dos abetos, na solidão de um lago gelado, ou no mar que se faz estrada, para que passemos.  É ausência e é presença, na luz que se acende na floresta ... Aquele branco é um convite ao irreal, sendo embora real e se sinta.  É um véu de noiva estendido na escuridão, pelos seres imaginários que adivinhamos ... só adivinhamos !
Não sei descrevê-lo, não quero descrevê-lo ... tudo o que eu ensaie dizer fica completamente aquém do que se experimenta.

Tinha uma enorme expectativa sobre esta minha viagem a terras do Círculo Polar Ártico;  era imensa a curiosidade que me invadia.  Afinal a minha relação com a neve é praticamente inexistente.  Não sou habituée de férias em estâncias de sky como tantos fazem anualmente, cumprindo, parece, uma espécie de liturgia ou ritual formal que os acompanha ao longo da vida.  Uma única vez me abalei até à Serra Nevada aqui na vizinha Espanha, e ainda assim não guardo memórias a contento. 
Ao contrário, privilegio destinos quentes, de sol inebriante, com pores e nasceres de cores envolventes.  Destinos de mares espreguiçados em areias mansas, de coqueiros e cheiros doces de trópicos ou equador por perto.  Destinos que convidem à nudez, ao primitivo, à imersão numa Natureza autêntica, onde a mão do Homem não molde ou defina.
Mas desta feita havia uma espécie de apelo à introspecção e ao silêncio, uma busca por um desconhecido promissor de outras sensações, que passavam muito por uma interioridade imaginada, um silêncio provindo de paisagens inóspitas e solidões apaziguantes.  
E lá fui !

A Lapónia é, de facto, qualquer coisa indefinível e simultaneamente mágica.  Há muito, muito tempo  que eu não via com tanta definição e precisão de imagem, um céu totalmente límpido, pontilhado de infinitas estrelas acesas sobre um breu absoluto. Um firmamento iluminado pelo clarão de uma lua cheia imensa, branca de prata, que reflectida pela neve tornava dia, a escuridão da floresta.
Duas horas de dia, no meio da penumbra e da escuridão que se abate depois das treze horas no relógio.
Um por-de-sol olhado longamente, como uma preciosidade imperdível ... venerado como religioso !...
Tudo foi silêncio, tudo foi mistério ... tudo foi irreal ! E o frio gélido que atravessava tudo mesmo, até às fímbrias das nossas almas, era algo puro, purificado ... quase apetecível !
Só sombras contrastavam nas clareiras desenhadas.  Só silêncio se perscrutava no estalido das agulhas dos abetos, pingando cristais de gelo como pequenas luminárias natalícias ...
Tudo tinha uma dimensão inalcançável, porque tudo o que é etéreo foge à mensuração humana ...

E por entremeio deste quadro silente e adormecido, quais fantasminhas irrequietos, as "luzes do norte", as buscadas e ansiadas auroras boreais, dançavam, indiferentes, um baile de máscaras, espreitando e fugindo, pincelando o escuro da noite, como se brincassem de esconde-esconde perante os olhos siderados de quem, estupefacto as aguardava !...




Anamar

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

" REIS EM TEMPOS DE COVID ..."

 


Normalmente era uma noite gélida.  Era uma daquelas noites típicas do Alentejo interior, nestes Janeiros fim de festas, quando o Natal já fora, o Novo Ano despertara e a vida se preparava para retomar a normalidade.

Breve, o regresso a Évora onde a casa de sempre me esperava, deixaria para trás a mágica quadra que se atravessara.  As aulas do segundo período já acenavam, deliberando o fim das férias passadas ano após ano, em casa dos avós.
Já fora a Missa do Galo, já foram os cantares ao Menino em volta do braseiro sempre aceso naquela chaminé de parede a parede, já fora a consoada com os tios, os primos, os avós, os pais ... e sempre mais algum que aparecia, já foram todas as delícias da avó e das tias prendadas que se juntavam na confecção de tudo o que se esperara o ano inteiro ... Já fora o sapatinho na chaminé e toda a magia em torno da chegada, pela madrugada  ( sempre a horas proibidas à criançada ), do Menino Jesus que haveria de, generosamente, trazer uns chocolatinhos e uma roupa para estrear no dia ... 
Que mais, o Menino não dava e Pai Natal não existia então ...
Árvore também não, e era junto aos sapatos deixados no borralho que os presentes haveriam de se buscar na manhã seguinte !

A noite de Reis, a noite das Janeiras pautava-se quase sempre por um céu bem escuro e limpo, pontilhado por miríades de estrelinhas que piscavam lá por cima.  Há mais de sessenta anos, a pequena vila de Redondo, pouco iluminada, preparava-se para escutar os cantares dos grupos, pelas ruas, de porta em porta, lembrando que os Reis Magos haviam chegado a Belém, também eles obsequiando Jesus pequenino, com os simbólicos ouro, incenso e mirra.
Eu sempre jantava a correr, na ânsia da chegada das outras crianças para que, com casacos bem quentes, luvas, gorros e cachecóis, demandássemos, sacos na mão, as portas vizinhas, saudando os que lá moravam.  Pediam-se as janeiras ... doces, nozes, frutos  e outros acepipes que por bem nos quisessem dar.  
"Estas casas são bem altas e bem altas que elas são, aos senhores que moram nelas, Deus lhes dê a salvação !"  "Oh senhora lavradora, raminho de salsa crua, aos pés da sua cama, nasce o sol  e põe-se a lua" "Esta casa está caiada, esta rua está varrida, moradores que nela moram, Deus lhes dê anos de vida !"
Lembro bem a euforia da corrida de casa em casa, bochechas afogueadas, nem o frio sentíamos, tal o entusiasmo , tal a compenetração !
E havia aqueles que nada davam e se enfastiavam do incómodo. A criançada então cantava, ameaçando  : " Oh senhora lavradora, tem olhos de marrã morta, se não nos vier dar a esmola vamos-lhe cagar à porta !"...

E era assim !
Tudo já foi, quase todos já partiram.  Poucos já lembram.  À maioria não faz sentido, porque o desconhecem, porque o não viveram, porque talvez o não entendam ...
Foram outros tempos, foi outra vida, fomos nós há sessenta anos atrás !
A quem pode interessar ?!...

Ainda assim, nestes tempos que vivemos, gostei de recuar, gostei de lembrar ... voltei a sonhar um pouco !
E a noite está também gélida, as estrelas não se vêem ofuscadas pelas luzes da cidade ... é de novo 6 de Janeiro ... é de novo Dia de Reis !!!

Anamar

domingo, 2 de janeiro de 2022

" O ANO TERMINA E NASCE OUTRA VEZ ... "


 

... diz Simone na maravilhosa e tão conhecida canção de Natal ...

O malogrado ano de 2021 terminou de facto, e no imparável rumo da Vida, outro se lhe substituíu, novinho em folha, promissor, mentiroso como todos, insinuando-se com aqueles olhinhos de sonhos, sorrindo como o rosto da criança marota que quer convencer-nos ...
Hoje, nestes dias primeiros, tudo é doce, tudo é tão azul como aquela paisagem silenciosa de neve, da Lapónia lá longe ...
Até porque hoje, nós precisamos que o seja, p'ra não soçobrarmos, não desistirmos e podermos voltar a abraçar os desejos, os planos, as metas, os horizontes esfumados que deixaram há muito de ser definidos !

Este meu escrito ganhou título e lugar, nos últimos dias ainda de 2021.  Mas morreu antes mesmo de nascer, sem força anímica para se fazer gente ou tornar realidade.
Vou querer, contudo, que incorpore ainda assim o meu espólio do ano cessante. Uma espécie de porta a cerrar-se sobre um período inexplicável na minha produção literária.  Um período que não entendo, em que não me entendo, tão escurecido na minha existência.  Um período de um esvaziamento intelectual, de um cansaço anímico, de uma calcinação no coração e na mente.  Um período em que simplesmente deixei de escrever, de conseguir escrever o que quer que fosse, por nada ter que dizer sobre nada, por não nutrir já, nenhum apreço em relação a tantas coisas que sempre me alimentaram o espírito, me erguiam e me davam força p'ra caminhar.
Doente, é como me vejo.  Porque quem não sonha, não se emociona, não dá asas à esperança e à fé para continuar, e se move indiferentemente dia após dia, noite após noite como um autómato, como um robô, como um pássaro apeado, de asas cortadas ... só pode estar doente !

Mas talvez porque outro ano nasceu, e tudo o que chega, tudo o que começa sempre parece transportar-nos um outro acreditar, sempre parece dizer-nos ( como uma criança que pela primeira vez abre os olhos ao mundo ), que é outra vez tempo de viver um tempo novo ... senti em mim um revigor, uma espécie de alegria esquecida, uma espécie de promessa no coração, uma espécie de ânsia de abraçar de novo o sonho, sentindo que talvez volte a ser capaz de sorrir, volte a ser capaz de me sentir viva !

O dia é de muita paz por aqui. 
Amanheceu cinzento, toldado, com um céu plúmbeo uniforme, com um nevoeiro que abafava bem perto, a paisagem circundante, como se tivesse engolido o horizonte.
Também as "nieblas" teimosas acabaram cedendo, a definição do casario foi tomando forma à medida que um sol fraquinho e bem envergonhado se anunciava.  As gaivotas dançando aqui por cima, faziam um bailado lânguido e preguiçoso, ao sabor de uma aragem mais adivinhada que real.  Os seus conhecidos grasnidos ecoam no silêncio da tarde, porque afinal hoje é domingo e o "brouhaha" de sempre, é inexistente.
Apeteceu-me Enya.  De novo, ao fim de tanto tempo sem a ouvir, ela que me apaziguava o espírito, ela que sempre me foi uma referência dos dias de maior solidão, voltou à minha companhia.  
"Winter came" ... tudo a ver com os dias que atravessamos ...

E porque acabei de chegar das terras das neves, dos gelos, das paisagens cinzentas ou azuladas, das terras do silêncio e da escuridão, em que o sol se ergue por duas horas em cada dia ... com Enya voltei a escrever.
Fui, numa viagem que parecia pouco enquadrar-se no meu perfil de mulher do sol, do calor, dos sentimentos impetuosos e quentes, talvez na busca inconsciente duma interioridade que se calhar me fazia falta, dum reencontro  comigo mesma na natureza inóspita e genuína, dum silêncio equilibrante, duma verdade sussurrada, duma identificação de coração e de alma ...
E vi tudo, e bebi tudo e sufoquei-me com as sensações que não se descrevem, e embriaguei-me com as emoções que as coisas simples despertam, e empanturrei-me com a autenticidade de cada imagem, com a surpresa de cada clareira, com o reflexo esmagador que a lua cheia desperta no branco imaculado do gelo, na escuridão das noites onde as constelações se desenham sem esforço ...
Adivinhei a vida errante e dura dos lapões.  Conheci-lhes as histórias, embrenhei-me na floresta de abetos mais brancos que verdes, claudicantes do peso da neve neles poisada, guiei-me em trenós puxados por huskies ou renas, sentada nas peles quentes, frente a fogueiras bruxuleantes, comendo salsichas grelhadas num espeto inventado, acompanhadas de chá de bagas do bosque, bem quente, para aquecer o corpo, já que a alma parecia confortada !...
Varri a superfície do Ártico gelado, no Golfo de Bótnia, em trenós velozes, e deslizei em motos de neve na superfície de lagos igualmente gelados.  E de novo comi bolachas e chá de frutos vermelhos bem quente, para retemperar a hipotermia dos dedos gélidos e insensíveis, enquanto ouvia as histórias deste mundo mítico e onírico ... e esperava o sortilégio de olhar as auroras boreais !

E afinal as "luzes do norte" não me defraudaram !!!...






Anamar

domingo, 12 de dezembro de 2021

" EM BUSCA DAS LUZES DO NORTE "


 

Hoje esteve um dia absolutamente fabuloso !  
Engalanado com um céu limpo totalmente azul deslumbrante e um sol claro e aconchegante, não tinha vento e as temperaturas amenas eram um convite a que deixássemos de lado os casacos mais quentes.  Foi um verdadeiro dia de Outono-Inverno esplendoroso .

Fui caminhar na mata, no meio do verde, dos amarelos, laranjas e castanhos acobreados, no silêncio de trilhos quase vazios, ou não fosse fim de semana beirando o Natal, em que o pessoal lamentavelmente se enfurna nos centros comerciais para os gastos consumistas da época. 
Voltei a ver melros por lá, escutei o gorjeio da passarada residente em Portugal, e até confirmei uma suspeita que tinha : existem de facto, "periquitos de colar" talvez nidificando nas copas das árvores que, com folha perene garantem protecção aos ninhos.
Já me parecera vê-los, voando alto, porque ouvi-los, há muito o assinalara.  Nada de anormal, uma vez que a mata é vizinha do Palácio de Queluz, onde existem colónias desta espécie, no alto do arvoredo.
Os periquitos, tanto quanto julgo, são originários de climas mais quentes.  Costumam ver-se em latitudes tropicais ou mesmo equatoriais, e o facto de se auto-adoptarem no nosso país, deve significar que por aqui, o clima se tornou menos agreste e mais ameno em termos de habitabilidade para determinadas espécies biológicas. Afinal, mais um sinal das alterações climáticas, como o são também, os novos ciclos de vida de espécies tradicionalmente migratórias e que já o não são, como por exemplo, as cegonhas.

Bom, estou à beira de me ir embora de novo, para mais uma fugazinha à rotina que nos submete.
Como sabem, e já escrevi muito sobre isso, eu sou um bocado "caixeiro-viajante" de coração e de alma.
O meu pai foi-o de profissão, e eu creio que lhe herdei estes genes inquietos que me neurastenizam se alongar por muito tempo o sedentarismo, na vida e nos lugares ...
Amante que sou do sol, do mar, dos climas quentes e das vivências tórridas, desta feita furo o esquema e vou encetar uma nova experiência, em matéria de viagem.  Vou para lá do círculo polar ártico, vou para a terra do frio, das neves e dos gelos perpétuos ... vou para pertinho do pólo norte, que sempre é um local mítico na mente humana, vou viver a noite instalada, até que a estação mude e volte a ser dia de novo.  Vou procurar um silêncio muito particular que só ali, acredito ser experimentado.  Vou sentir o pulsar duma natureza muito genuína, mergulhar no verde salpicado dos abetos, penetrar a floresta de coníferas, de pinheiros nórdicos, ciprestes, larícias, bétulas, líquenes, cogumelos e tudo quanto constitui a floresta boreal nesta altura do ano, em que a luz escasseia e o Inverno se aproxima.
Vou conviver com as renas, os huskies, flutuar nas águas geladas do Ártico, no que acredito ser uma experiência única, passear na floresta nevada em trenó puxado por estes seres maravilhosos, ou calcorrear os caminhos totalmente brancos, "pilotando" uma mota de neve, ou caminhando oniricamente com raquetes de neve nos pés.
E encontrar os Lapões, já que na sua terra estou.  Perceber alguma coisa sobre as suas vidas, que imagino terão muito de solitárias ...

E claro, no breu da madrugada, à volta duma fogueira, ouvindo histórias, comendo salsichas grelhadas e bebendo algo bem quente e reconfortante, espero ( e seria o corolário da minha viagem ), encontrar as "Luzes do Norte"! 
As fascinantes, mágicas e irrepetíveis auroras boreais, que nas tonalidades mais inimagináveis pincelam, tremeluzindo, ( quais fantasminhas irrequietos ), a linha do horizonte, acendem desta forma, misteriosamente,  o céu escuro, tornando ímpar e inesquecível, esta experiência singular ... mais além!... 
Por latitudes quase proibidas, do planeta Terra !!!...

Anamar

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

" CATARSE "

 


Dezembro caminha a passos largos para o fim.  Frase repetida neste epílogo de mais trezentos e sessenta e cinco dias, não demora, decorridos.
Se eu me ler, ano após ano nesta época, correrei o risco de me ver repetida em cada página, em cada parágrafo, em cada pensamento ... Consequentemente, em cada estado de alma e em cada sentimento, o que obviamente significa que não consigo melhorar no olhar que deito à vida e ao mundo, ano após ano !
Sempre a nostalgia ... sempre a melancolia ... sempre a exacerbada preocupação e angústia crescente com aquilo a que chamam de "futuro" ...

Noutro dia, no cabeleireiro, local privilegiado e vocacionado para se ouvir de tudo e de todos mesmo sem pedirmos, uma cliente lamentava-se pelo facto de, tendo sido uma pessoa "cheia de vida" como dizia, dinâmica, cheia de vontade, de sonhos e de projectos, quando completou setenta anos a sua vida ter sofrido um volte-face  de cento e oitenta graus.  Parece que o avesso da sua existência relegou o direito da mesma para um inesperado esquecimento ! 
Não sei se há marcos particulares na evolução do ser humano, mas como todas as máquinas, mesmo as mais supimpas, de marcas consagradas, a certa altura, de repente, às vezes sem anúncio prévio, começam a claudicar e a dar sinais de mudança, de grandes mudanças, com frequência.
Parece instalar-se uma desaceleração, um atrito notório entre as "peças", uma dificuldade "respiratória" na engrenagem ... e é aí que estes sinais se tornam assustadores nas mensagens que passam.
E num belo acordar, num belo adormecer, ou em plena luz do dia, de repente percebemos as limitações que de subtis passaram a evidentes, percebemos as dificuldades, o esforço, a desmotivação, a falta de energia ... isto, pressupondo não haver razões mais drásticas para preocupações ...
E é quando a caminha nos aninha com doçura, é quando o calor do édredon nos sabe a útero de mãe outra vez, é quando aquela letargia de não urgência se anuncia ... que percebemos definitivamente que envelhecemos ... Não há mais como negar, não há como escamotear nada ... e o saudável seria encarar este estado de coisas, sem demais mágoas ou angústias !
De que adianta termos pena de nós mesmos, que adianta tentarmos fazer de conta, acharmos que talvez não seja nada disso ... mentalizarmo-nos de que lá no fundo, ainda reside em nós aquela miragem de super-mulher ?!

Poissss .... Não adianta, de facto.  Só que eu não consigo travestir-me do que não sou !
Estou a ter uma postura muito errada, destrutiva e derrotista face à inevitabilidade da vida, sendo que de inteligente, isso nada tem ... eu sei !
Tendo a isolar-me, guardo pouca paciência para o encontro e para o diálogo, o convívio quase sempre me maça.  Não tenho pedalada pra sonhos ou projectos. Já não aposto em nada, quase em nada.  Vivo como que apenas em manutenção ... do que existe, do que tenho, do que constitui a minha vida dia a dia.
Dou por mim a pensar ... "o pavimento está tão feio já ... havia de o substituir ... " E logo a seguir : "ai não.  Já não vale a pena.  Fica até ao fim !" 
Ou : "Roupa nova ?  Pra quê ?  A que tenho chega bem.  Afinal só tenho um corpo e neste momento pouco daqui saio ! "
E oiço a Lena que vibra com pequenas grandes coisas ... a máquina de limpar os vidros ... esta linha de cremes para o rosto ... aquela decoração para a muito longínqua / futura casa de Janas ... E penso : Ela já não vai tirar partido daquilo.  Afinal, os anos que chegam, cada vez menos ajudarão alguém que já se diz cansada, agora, no presente de que dispõe.  
Mas ela não perde o entusiasmo, mantém o foco, não desanima ... é positiva, talvez tenha uma postura construtiva, porque sendo intrinsecamente generosa e disponível, a Lena centra-se pouco em si, sai dela e vive em função dos outros. Não cultiva o paradigma obsessivamente negativo que me destrói !
Deve ser esse o caminho !  Será por aí a solução !
Declino convites, reencontros para um simples café, com pessoas que estiveram muito perto de mim há anos atrás.  Não quero que me vejam hoje.  Não quero que me olhem com aquela comiseração com que constato o declínio em outras pessoas.  Não quero que sorriam com aquela hipocrisia conhecida e digam : "Estás óptima !  O tempo não passa por ti !"... e lá por dentro : " Meu Deus, o que o tempo faz às pessoas !"  - buscando nos arquivos da memória aquela que eu era ... aquela que eu fui !
Não suporto essa dolorida injustiça.  Porque temos que nos degradar, e não partimos de uma vez, quando chegar a hora ?!  Porque temos que ficar decrépitos e oferecer de nós, espectáculos menos dignificantes ?! Porque temos que atravessar a tragédia de nos tornarmos meros simulacros do que fomos ?!

Sou uma revoltada com tudo isto !
E depois penso:  "Ridículo este meu sentir !  Tantas pessoas que só quereriam ter a saúde que pareço deter, sem demais exigências !!  Tanta gente que apenas sobrevive, nesta sociedade feroz que não se compadece, tanta gente que luta desde as madrugadas, em dias que pegam com dias, e em que até para dormir pouco tempo sobra,  gente que trabalha precariamente para subsistir apenas, para assegurar os mínimos do futuro familiar ... Sem demais concessões, sem demais benesses, sem demais gratificações !
E eu a conceder-me direito a privilégios ... como se eu fosse alguém ... como se eu merecesse algum desígnio especial nesta selva diária em que simplesmente passamos nos intervalos da chuva !
Estou a ficar alucinada ... estou mesmo a ficar louca !!!...

Anamar

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

" PEQUENOS / GRANDES TESOURINHOS "





Este tempo gélido embora ensolarado que nos remete para o aconchego de casa, encaminha-nos por vezes, para actividades nem sempre previsíveis.  Entre ler, passar e repassar a visualização de fotos de arquivo, até ao vasculhar mais exaustivo do computador em busca de esquecidas memórias, fiquei-me hoje perdida por vídeos que testemunham eventos, momentos ou circunstâncias que, já com alguma longevidade, fazem parte indestrutível da história da minha vida.
Verdadeiros pequenos / grandes tesourinhos que nos adoçam a existência !...
 
Não direi tratar-se de efemérides absolutamente felizes, ou totalmente feliz aquilo que reportam. Trazem-nos contudo, momentos que foram inteiramente felizes aquando foram vividos e partilhados.
Um deles, a reportagem do casamento da minha filha, já lá vão vinte e dois anos.  O outro, o baptizado do António, meu primeiro neto, juntamente com o necessário baptizado em simultâneo da tia, a minha filha mais nova, para que a mesma "amadrinhasse" o primeiro evento, passando desta forma de tia simplesmente, a madrinha do rechonchudinho menino então com quase quatro meses.

Ambos os eventos decorreram em Viseu, o primeiro na Igreja da Misericórdia dessa cidade e o segundo numa outra igrejinha menor, cujo nome não retenho.

O casamento, com total pompa e circunstância, desenhado ao pormenor nos mínimos detalhes pela noiva, teve de vida cerca de dois anos apenas, e o bebé nascido em Agosto de 2001, "assistiria" à separação dos pais, já pelo Natal desse mesmo ano !

Pode perguntar-se, uma vez que se adivinha muito de dor e sofrimento em todo este aparente conto de fadas desfeito ... castelo ruído em tão curto espaço de tempo, por que então eu reincido, masoquistamente parece, em ocupar tardes ociosas, a rever e a deleitar-me com imagens que talvez não acarretem memórias muito doces ??!!

Pois bem, além de me deliciar efectivamente, vendo e revendo uma e outra vez todos os pormenores, os mais ínfimos,  totalmente concebidos e gerenciados pela protagonista principal, revejo, bem ali pertinho de mim ( parece ), tantos rostos, tantas vozes, tantos gestos, tantas histórias que de longe se tornam próximas outra vez !
E porque a ilusão é meio caminho andado para a felicidade, como me sinto feliz, revendo tantos que já partiram e dessa forma regressam momentaneamente ao meu convívio, tantos a quem os vinte e dois anos projectaram da infância à idade adulta, e tantos outros  ( então ainda remoçados pela idade que detinham mas também pela alegria que se desfrutava ), e que hoje ocupam a galeria sénior à qual também pertenço !

São muitos os que já nos deixaram.  Chegam a ser dezenas.  Esses, partiram mas ficaram gravados nos nossos corações e na nossa memória "ad eternum" !   Esses, hoje, são apenas uma saudade que dói ...
Histórias inacabadas, vidas que seguiram cada uma nos seus trilhos, rotas que eram cruzadas, se interligavam e que se desviaram definitivamente ... amizades e amores que se interromperam ...
Tudo por ali passa, no visionamento de cada imagem, no olhar cada sorriso, no escutar de cada gargalhada ou na partilha de cada pedaço de conversa ...

E percebendo os caminhos que pareciam obviamente abertos e não o foram, e olhando a imprevisibilidade dos destinos daí em diante, vendo a efemeridade dos tempos desenhados e incumpridos no que pareciam rotas certeiras ... claramente entendemos como a vida faz e desfaz, brinca e judia com tudo e todos ... dá e tira ... promete e não cumpre ... sem que nada possamos fazer, a não ser continuar sempre a sonhar, a tecer ilusões e castelos de nuvens de algodão, quais carneirinhos soltos nos céus, que sempre nos levem mais além, no sopro da aragem !...

A isso, chama-se esperança renovada !...

Anamar 

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

" OUTONICES "


 
Na mata os pássaros já pouco se ouvem.  Por certo, alguns demandaram paragens quentes para os meses que se avizinham.  As árvores e arbustos pintalgam-se das cores da época, ou simplesmente despem o que ainda vai ficando dia após dia,  resistindo ao vento ou à brisa que corre os caminhos e as veredas.
O chão de todos os trilhos está atapetado de um manto fofo de folhas secas, esquecidas pela aragem, e que nos estala debaixo dos pés, à passagem.

Dezembro espreita na curva da estrada.  O Natal vem ao nosso encontro em passadas largas, pressurosas  e impacientes ... Em suma, estamos naquela quadra que me confrange e a qual pularia nos destinos do calendário, se o pudesse !
É interessante, porque se trata de um sentimento que eu sei partilhar com muitas outras pessoas, talvez mais do que as que pudéssemos suspeitar.  Efectivamente, é um período de momentos difíceis, sobretudo quando se vivencia uma faixa etária já não muito promissora, e em que aquilo que mais povoa o nosso espírito, são memórias idas.  
Atravessamos estes dias quase sempre lembrando.  O passado é a época da vida que mais nos acompanha, pois o presente nem sempre nos gratifica e o futuro é um pouco uma miragem, lá longe no deserto das emoções.
Os sonhos já não vão cabendo muito nos nossos corações, pois o tempo útil adiante, afigura-se-nos  um doseador parcimonioso.  Então, pouco mais deveremos perseguir, do que a ideia velha de um "carpe diem", simplesmente !
Os lugares vazios já são muitos, nas mesas, nas casas, nas conversas, nos risos ... nas histórias ...
Sempre à nossa revelia, por isto ou por aquilo, as vozes vêm sentar-se à nossa beira, preenchendo os silêncios doídos.  E queiramos ou não, os nossos, todos os que nos escreveram a história, perduram presentes nas nossas vidas !
É quando pensamos no tanto tempo que perdemos ou desperdiçámos alienando quantas vezes as  suas companhias, como se tivéssemos à frente todo o tempo do mundo para as usufruir e desfrutar.
Quanto do que deveríamos / quereríamos ter dito, se silenciou nas gargantas ... porque não fomos capazes, porque não soubemos ... porque não valia a pena ... porque não tivemos tempo, na voragem louca dos dias !...
Quantos afagos, mimos ou carinhos sufocámos ao nascerem ... quantas palavras, soluços ou desabafos secámos, não dissemos ou escutámos ...
E não é nada disso.  Nunca foi nada disso !... 

Esta viragem do tempo, este encerrar do que foi, seguido de um reabrir do que virá, difuso e nebuloso no devir, sempre me deixa nostálgica, saudosa, ansiosa.  Esta época de recolhimento e de balanço obriga-me a regressar à concha, a remeter-me ao silêncio pacificador, a aninhar-me num limbo protector onde adormeço em paz !
É uma espécie de tempo de transe em que reabilitamos as doçuras que vivemos, em que embalamos as recordações que ficaram, em que repovoamos as noites com a sorte de conseguirmos repegar os rostos que nos habitaram, sentindo o calor das mãos, o afago dos abraços ou os beijos das cumplicidades e dos afectos ... Até que acordemos outra vez ... ou que adormeçamos um dia, na eternidade !...

"Eu sei que é Outono e o meu espírito amarelece sempre com as folhas, as mesmas folhas que cobrem por inteiro os antigos caminhos" ... mas tudo isto é também VIVER !...

Anamar

domingo, 21 de novembro de 2021

" UNS E OUTROS ... "

 


Por vezes flagramo-nos encompridando a mente sobre o que foi, como foi a nossa vida pregressa.  Por vezes surpreendemo-nos deambulando sem rumo definido sobre tudo o que já vivemos, como o vivemos, porque o foi dessa forma.
Quase sempre, esse "passeio" não programado, se faz acompanhar de um saudosismo e de uma nostalgia que inevitavelmente nos fazem recuar no espaço e no tempo, ao que fomos e ao que éramos então.

É domingo, dia já fechado, no silêncio da minha casa os gatos dormem-me aos pés.  Mais uma semana a começar, o vórtice do tempo a acelerar para o Natal, para o fim do ano, para o virar outra vez da ampulheta dos dias ...
Continuamos com uma cansativa realidade de tempos estranhos, pesados, assustadores, entrando inapelavelmente numa quinta vaga da pandemia deflagrada há quase dois anos.
Uma sensação de insegurança e de instabilidade instaladas, lembram-nos diariamente que continuamos a viver uma roleta russa por cada dia das nossas vidas. 
E o que se vive e o que se sente, além dum cansaço instalado, além dum desgaste psicológico irreversível a acentuar-se, é, de certa forma também já, uma espécie de quase indiferença e saturação face às notícias e aos acontecimentos circulantes.  Dou por mim, na maioria dos dias totalmente desinteressada da actualidade que me cerca, não abrindo sequer o televisor sobretudo nos serviços informativos.
Parece que sinto uma conformação absurda, uma acomodação triste e indiferente sobre o que me rodeia, uma impotência e uma inércia de quem já jogou a toalha ao chão.

Há pouco, arranjando-me para sair, peguei numa bijuteria adormecida numa gaveta e coloquei-a, distraidamente, mecanicamente, meio absorta ... meio cá, meio lá.  Um gesto automatizado, distante, sem intencionalidade consistente. E pensei : como me arranjava ao pormenor há alguns anos atrás !  Como nunca saía de casa sem me maquilhar, sem escolher diariamente a roupa a vestir, o calçado e os restantes adornos adequados ... Os saltos ... o salto alto era parte intrínseca da toilette, a bota, de salto fino ou não, de bico se a moda o ditasse ...
Daí os pares de calçado existirem por aqui, p'ra todos os gostos em cor e forma, as malas em consonância também ... e os cachecóis, agora que o frio começa a despontar, e os fios, brincos e mesmo chapéus ... porque tudo valia a pena, porque havia destinos a ir, sítios a frequentar, lugares e pessoas a encontrar ...

Hoje, os ténis reinam no vestuário usado, não só porque integram o equipamento das caminhadas, como porque são mais cómodos e seguros nas calçadas irregulares.  Já dei uns quantos trambolhões na rua, perdi o jeito de me equilibrar no sapatinho delicado, ganhei medo no caminhar ... desabituei-me quase de olhar o espelho, porque afinal perdi mais juventude, sonhos e ilusões nestes últimos tempos do que nas últimas décadas da minha vida !
Casa - compras - casa e pouco mais, são a história do meu quotidiano.  Pouca paciência, não recebo nem faço visitas.  Genericamente, as conversas cansam-me.  As pessoas também.  E dou por mim, agreste, deixando mesmo transparecer alguma impaciência além da conta ...
Sinto uma espécie de não valer a pena, estranho e complexo que me toma e angustia.
A silhueta que hoje detenho desagrada-me e entristece-me.  Ganhei peso, perdi formas e a frescura da pele foi-se também, com o transcurso dos tempos.  Sem retrocesso, sem volta, duramente implacável ... como uma irreversível e injusta condenação ...

Acho que nunca me pareci com a minha mãe.  Em quase nada, como costuma dizer-se, saí a ela.  Quase sempre, com pena e perda minhas.  Mas numa coisa somos iguaizinhas, estamos a tornar-nos iguaizinhas: no desgosto e na inaceitação da degradação inevitável do envelhecimento, na mágoa que tinha, como ela dizia, de envelhecer ...
A inconformação da perda das capacidades, as limitações objectivas nas faculdades físicas e mentais, sentidas e avolumadas diariamente, foram-na entristecendo e moldando negativamente nos derradeiros anos da sua existência. 
Eu sigo o mesmo trilho ... azedo, escuro, sem horizonte ou sequer um colorido arco-íris que adoce os meus dias ...

Eu sei que é inútil, é uma luta sem glória, é uma pura perda de tempo, eu rebelar-me contra tudo isto;  é mesmo uma idiotice, uma infantilidade, por certo um sinal de insanidade ... mas é assim que me sinto, este é o registo do meu permanente estado de espírito.
Por isso não entendo a leveza, a bonomia, quiçá mesmo a euforia com que uma amiga ufanamente me dizia há pouco :"sou cota ... ora bem ... e então ?  Sou bem feliz assim !..."
Como as pessoas são diferentes !!!...

Anamar

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

" FIM DE LINHA "

 


Acho que não existirá nada mais destrutivo para um coração de mãe, do que ter que desistir de um filho.
Porque afinal, isso sempre será alguma coisa absolutamente contra-natura, monstruoso e inequacionável !
E para se chegar a esse extremo, para ter que se fazer uma opção dessas na vida, é porque se esgotaram seguramente todas as tentativas, todas as aproximações, todos os esforços ... mas também todas as esperanças, todos os caminhos a percorrer, todas as expectativas credíveis ainda, de um possível retrocesso numa relação mortalmente inquinada.
Quando o diálogo entre as pessoas não passa de uma conversa de surdos, quando as costas se voltam, quando já não se descortina um lampejo de fé num volte-face, e se percebe que já não existe sequer uma linguagem minimamente perceptível ( não digo obviamente convergente ) ... quando nenhuma mensagem passa para o outro lado e sempre encontra um muro intransponível ... percebe-se que o cordão umbilical, o tal que uma mãe acredita nunca ser totalmente cortado ao longo da vida ... o foi, sim, e o foi em definitivo !

Parece impossível isto poder acontecer, quando o mesmo sangue corre nas veias, quando para o bem e para o mal, uma mãe tenta fazer o melhor que sabe e é capaz ( ainda que com todas as imperfeições, todas as omissões, incoerências, faltas e incapacidades ... porque de humanos falo ).
Parece incompreensível que numa relação mãe-filhos possa no extremo, chegar-se a uma desistência, uma desaposta, um caminho sem retorno.  

As pessoas não nascem ensinadas.  Costuma dizer-se, e é verdade, que os filhos não vêm acompanhados de livro de instruções.  Ter e educar um filho ao longo da vida, não é apenas isso.  É uma tarefa hercúlea, submetida em permanência a milhares de factores condicionantes, milhares de vectores que se prendem com a realidade pessoal, personalística, familiar, social e todas as outras turbulências que quantas vezes de imprevisto, se instalam na vida das pessoas, as surpreendem e lhes determinam os percursos.
Mas as crianças crescem e, da dependência vital que mantiveram com os pais, surgem então, indivíduos autónomos, com personalidades instaladas, com capacidade de observação, análise e crítica de tudo o que os rodeia.  E é salutar e desejável que isso aconteça.  Afinal trata-se de seres em formação face a uma existência desafiadora, que os testa e põe à prova em permanência, já sem a rede parental a dar-lhes total cobertura ou protecção. 
Criaram-se afinal adultos que têm o mundo à frente.  
E a sã convivência então, entre pais e filhos, compreendendo-se e aceitando-se mutuamente, mormente entre mães e filhas ( em que a igualdade de género facilitaria teoricamente pelo menos, a compreensão do estar e do sentir da realidade ), aliada a uma maturidade exigível a uma fase da vida já muito mais responsável, geraria uma cumplicidade que então levaria a uma maior tolerância mútua, uma maior aproximação, partilha e simbiose.

Sem recriminações, sem dedos acusadores de erros ou falhas ( porque TODOS os temos e cometemos ), sem ofensas e agressões gratuitas, geradoras de mágoas quase sempre irreversíveis, sem ressentimentos e raivas ou ódios acumulados nos núcleos familiares, com tolerância, afecto e compreensão, iniciar-se-ia então uma outra fase da vida mais construtiva, estando já os progenitores numa faixa etária carente  de outro tipo de apoios, de estruturas, de amparo e aceitação ... Deveria encarar-se o futuro com adultícia, tolerância e paz.
Isto, o desejável ! 

Ao contrário, quando pais e filhos deixaram de ser "amigos", quando sentimentos destrutivos se instalam, quando animosidades muito sérias tomam irreversivelmente conta das pessoas, cegando-as, criando fossos intransponíveis entre elas ... quando o filho se sente "ameaçado" em vez de protegido e querido, e no seu íntimo só existe desconfiança, pensamentos persecutórios e uma turbulenta desestabilização que o faz agredir gratuitamente os pais ... quando o diálogo possível e desejável deixou de existir sem retorno ... e as pessoas se tornaram ressentidas, no mínimo estranhas e já não pertencentes ao "sagrado" núcleo familiar ... então, de facto, percebemos magoadamente, que se atingiu um fim de linha !!!

Anamar

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

" ESTE MUNDO NÃO É PARA VELHOS ... " - II

 


Pareço resistente a escrever.  Pareço resistente a engrenar outra vez, na normalidade da minha vida.  Porque ela, sem palavras largadas nos papéis que me rodeiam, não é bem a minha vida !
Não sei o que se passa comigo.  Parece haver um desligamento estranho da realidade.  Parece existir um desinvestimento em quase tudo o que me fazia, me fez sentido, me alimentou emocionalmente, ao longo dos tempos.
"Não vale a pena, não tem interesse, não abre janelas, não acrescenta, não inova ... pouco é, além de nada !..." - estes, os pensamentos que me assomam, estes os sentimentos que me invadem, quando penso em escrever ...
E passa hoje, como passou ontem, como passou há uma semana, talvez um mês ... e eu, exactamente no mesmo lugar ...

Estranha, esta sensação de orfandade ! Porque é de orfandade que falo. 
Pareço ter perdido referências, pareço velejar sem vento em águas mortas, pareço ter esquecido a significância do viver. 
Deveria doer.  E não dói.  Apenas corrói, esta incapacidade, este arrastamento rio abaixo, de barco de papel a desfazer-se ... de emoções a mofarem, em sentidos requentados ...
Um imobilismo, um encolher de ombros, uma impassibilidade atroz ... um atordoamento ... uma indiferença ...
E contudo, pareço entupida. Pareço engasgada. Pareço sufocada. Pareço atolada em pântano fétido.
Não estou bem assim, mas não consigo dar um só passo em frente.

Entretanto, o tempo, que quase sempre e levianamente nos habituamos a culpabilizar de tudo, vai decorrendo, pingando a ampulheta dos dias, com uma mornidão exasperante.  Também o tempo parece tolhido, parece amodorrado e parece mesmo adormecido, como as cores mansas e doces da estação que atravessamos.
São cores pachorrentas, são cheiros sem sobressalto, são momentos sem história, como se a vida se tivesse deitado para a sesta. 

O tempo, essa entidade estranha ... culpa do Homem ! Para quê contá-lo ?  Para quê marcá-lo, fraccioná-lo, ansiá-lo, odiá-lo ... esquecê-lo ?! Por que não, vivê-lo, apenas ?!
Os animais não têm "tempo".  Não sabem o que isso é.  Não se afobam, não se apressam, não se adiantam nem atrasam.  Não se angustiam com ele ...
Os meus gatos amanhecem, repetem rituais biológicos, dormem, acordam e recolhem-se se o firmamento já só se ilumina de estrelas.  Não se perguntam por que é assim, se o caminho à frente será longo ou será curto ... se é lento ou lhes foge vertiginosamente.  Não se perguntam se dispõem de muitos ou poucos aniversários ainda ... porque já isso pertence à contabilidade dos humanos.
E vivem.  Simplesmente vivem.  Existem por aqui.
A borboleta rompe as paredes ténues da crisálida, estica as asas, espreguiça-se, e abre-se ao mundo.
Um dia ? Alguns dias ? Algumas horas ?
E isso interessa ?
Nós contamos, recontamos, fazemos previsões, estatísticas, tendências ... Nós medimos o que supostamente nos sobra ... Menos um dia, menos uma semana, menos um mês ... quase fim de ano outra vez ! 
E a angústia sobe, o peso imensurável desce nas costas, na mente, nas forças e na vontade, como uma espécie de condenação, como armadilha de que, apanhados, não mais escaparemos. 
E centramo-nos inevitavelmente nas doenças, nas queixas, nos sintomas, nos sinais aparentemente alarmantes, todos eles.  Tudo pressupõe alguma irregularidade orgânica.  Tudo é a antecâmara duma desgraça anunciada ...
Vive-se em susto.  Vive-se sem escapatória ... " A vida tudo dá e tudo leva !" - slogan realista mas desesperador, dito e repetido pela boca da minha mãe ...
Acuada... é assim que me sinto.  
Desde que este determinismo me tomou, nunca mais fui a mesma.  Emprateleirei os sonhos, engavetei os desejos, desapostei nos projectos ... como se em nada já valesse realmente a pena, apostar . O peso do tempo, esse tirano, esse ditador implacável, destrói-me, todos os dias um bocadinho mais !

Ontem desci para um café "fora de portas", supostamente para arejar ... 
Um grupo de conhecidos também em hora de lazer, ocupava mesa próxima.  Pessoas da minha geração, mais coisa menos coisa.
Médicos, consultas, análises, exames, panaceias, complementos e suplementos das unhas dos pés à cabeça ... dores, reais ou previsíveis, profilaxia de toda a tipologia para o que se tem, mas também para o que hipoteticamente se pode vir a ter ... foram exclusivamente o cardápio das conversas, enquanto engoli a bica.
Engoli, porque fugi rápido. Pus o caminho às costas e zarpei, quanto antes, porque se bem não estava, pior fiquei !!! Um cenário irritantemente dantesco !
E pronto, na generalidade as pessoas vivem nesta corda bamba. Tudo isto é realmente doentio e demolidor do equilíbrio de cada um, por mais sólido que ele seja.

À nossa volta, a realidade social, familiar, no país, no mundo ... tudo aquilo a que se vai assistindo, no nosso círculo, ou em domínios mais remotos, transporta, a todos os níveis, uma carga de insegurança, de insatisfação, de incerteza, de consequente angústia, de medo ... um medo fóbico, devastador, que adoece e destrói irreversivelmente, tanto mais acentuado quanto mais avançada for a faixa etária das pessoas. 
Parece que nada já tem solução, que tudo está desconjuntado, é absurdo, é estranho e parece não nos fazer sentido.  Consequentemente começamos a sentir o incómodo de termos que viver uma realidade que não entendemos, nos é penosa, não nos faz sentido e ameaça já não albergar espaço para nós.
Parece que o único caminho que nos sobra, portanto, será partir !

"Este país não é para velhos",  nome dum filme que vi há largos anos no cinema ( 2007 ), pode mesmo ter uma abrangência contextual mais alargada, pois afinal, este mundo é que parece não ser já para velhos !...

Anamar

domingo, 12 de setembro de 2021

" IGUAL A MIM MESMA ... "

 


O tempo parece ter dado a volta.
É verdade que estamos a 12 de Setembro e o Outono espreita.  É verdade que a luminosidade do sol não é de todo igual, e percebe-se tão bem a doçura e o intimismo dos dias que já aparecem sonolentos em rota de hibernação, não demora !
Nada já tem o mesmo rosto de há dias atrás, tudo parece tocar a recolher ... da natureza, aos seres vivos.
E no entanto ainda ontem terminámos um período anual de azáfama, de vida corrida, de cansaços acumulados, e olhávamos gulosamente o sempre almejado Verão, o sempre auspicioso período de férias, de descanso, de liberdade, de descompressão e realização de projectos elaborados.
Ainda ontem, e no entanto tudo não passou de um parêntesis temporal que esvoaçou num piscar de olhos, como uma nuvem que se tivesse dissipado no firmamento ...

Este início de mudança que mexe com tudo o que nos cerca, este convite sentido ao silêncio introspectivo duma natureza que também se despede da pujança dos dias quentes de céu azul e límpido ... e começa a bocejar, a encasular-se, a recolher-se sobre si mesma, lembra e retrata a curva descendente também, de mais um ocaso nas nossas vidas.
Nunca tão depressa o tempo nos escorregou das mãos.  Nunca tão ligeiro, ele, indiferente às nossas angústias, dúvidas e interrogações, se nos esboroou por entre os dedos, como um menino traquinas, brincando com os nossos medos e aflições.
O ano vai a três quartos.  Não demora é Natal outra vez.  Não demora, o calendário vira a página, e nós, impotentes, olhamos para trás e já pouco encontramos do que fomos deixando.  Os lugares, os hábitos, as rotinas ... as pessoas ...
Partiu muita gente, no nosso círculo de relações, partiu gente demais na sociedade de que fazemos parte, muitos rostos que compunham o nosso dia a dia já não estão ... Tudo se descaracterizou e há um desconforto sentido dentro de nós, por todas estas ausências, por toda esta irreversibilidade da vida... por toda esta perda incontornável ...
Entretanto, demasiadas catástrofes naturais foram acontecendo, num planeta sofredor dos atropelos sentidos.  Várias convulsões sociais, guerras, ataques, conflitos ... Morte, sofrimento, desesperança.  Dor, luto, intolerância ... 
Tudo nos dói.  O que foi e nunca deveria ter sido.  O que é e nunca deveria ser !...
Sempre, o Homem no seu pior !

E já é noite outra vez.
Comecei a escrever, frente à minha janela, como sempre, com o computador sobre os joelhos, num lugar de silêncio, de tranquilidade e de paz.  Ia a tarde a meio, o sol, fraco e envergonhado, duma luminosidade de adormecimento, vestia de patines douradas um firmamento indeciso entre permanecer adocicado ou deixar que as nuvens que se desenham lá na linha do horizonte, subam e tragam a chuva prometida já para esta madrugada ...

Fico-me por aqui.
Um aperto bem no meio do peito retrata a angústia que sinto.  O olhar "molhado" que me aflora, retrata a sensação nostálgica e doída que me acompanha, dia após dia e que não consigo afastar de mim.
Uma tristeza profunda ... não me perguntem do quê, ou porquê ... Não saberia, honestamente responder !...

Anamar

domingo, 5 de setembro de 2021

" RESTOS DE UM VERÃO ... "



"Restos de um Verão" foi o título aposto ao meu escrito de hoje que volta a pecar pelo atraso, pela desmotivação, pelo desinteresse.  De facto, mediarem duas semanas entre a minha última abordagem a este espaço e hoje mesmo, é facto que cada vez menos encaixa na minha personalidade, que cada vez faz menos sentido, que não tem justificativa ou razão.

Necessidade de escrever sempre foi, por assim dizer, um sinal que eu sabia ler.  Sempre foi a busca de uma terapia para a alma, o esvaziar de um coração atormentado, a abordagem de uma escapatória em estrada conturbada.
E por isso, sem olhar para os lados, sem grandes exercícios censuratórios ou reflexivos, aqui vinha numa busca de remédio eficaz para a insatisfação, para o reencontro comigo mesma, para este deambular perdido em labirinto de sentimentos.
Aqui, quase sempre me encontrava;  aqui, quase sempre me abrigava, como de temporal fugida;  aqui, quase sempre reunia os cacarecos perdidos e espalhados, de mim mesma !
Porque enquanto escrevia, praticava também uma espécie de catarse, depurava os amargores dos dias desenxabidos e defraudantes, arejava angústias teimosas em me afrontarem.  E, operava em mim o milagre do esvaziamento, o varrimento das dúvidas existenciais em solilóquio amigo, o desapego dos "monstros" impositivos e massacrantes que me assombravam as madrugadas silentes.
E já valia, por isso, a pena !

Hoje, não encontro, de facto, resquícios de mim mesma, perdidos por aí.
Hoje, silenciei por dentro, sossobrante a um vazio sem remédio.  Pareço levada pela avalanche de um qualquer tornado trucidante do meu eu, no corpo e na alma.  Pareço subjugada a uma indiferença doída, pareço sucumbida à inexistência de luz no caminho, de horizonte desenhado nas alvoradas, de portas ou janelas franqueantes de auroras frescas e coloridas.
Hoje não encontro objectivo, rumo de valer a pena, força para sacudir as penas encharcadas deste pântano pestilento que arrasto indiferente, há tempo de mais.  
E desisto, e não escrevo, e vou simplesmente desfiando dias ...

À minha volta, nos conhecidos, nos amigos, também as realidades são semelhantes.  Doenças inesperadas e fatídicas mesmo em faixas etárias improváveis, digamos ...  saturação, falta de paciência, demência a acentuar-se em alguns, mesmo naqueles que nos habituámos a ver como muralhas que pareciam inexpugnáveis na vida, desinteresse generalizado por tudo o que nos rodeia ... em suma, uma mesmice e um cinzentismo em existências onde parece estar a apagar-se a claridade.
Tudo isto, sem outras perspectivas, sem outros rumos, sem outros sonhos !!

E assim vai fechando mais um Verão.  Assim os dias vão encurtando.  Daqui a pouco, daqui apenas a poucos dias, mais um Outono se apruma para chegar com a melancolia que lhe é característica, com a doçura também, dum intimismo e duma solidão que aninha mas também dói ...
Daqui a pouco as folhas douradas tombam, o vento arremessa-as em rodopios ... Daqui a pouco, os areais esvaziam e o domínio é já só das gaivotas que os habitam ... Daqui a pouco, o mar perde o azul e o verde e o prateado de dias promissores ... e acinzenta com o borrascoso dos céus nele reflectidos ...

E mais dois anos das nossas vidas se esvaíram, e esvaziaram da ampulheta que persiste em despejar ... inevitavelmente ...
Cansaço !!!

Anamar

sábado, 21 de agosto de 2021

" UM COLAR DE MEMÓRIAS "...



Hoje pus um colar.  Um colar que adormecia há anos e anos na escuridão da gaveta.

É um colar de osso, esculpido à mão, talhado com a rusticidade e simplicidade dos povos autóctones.
Vejo-me a comprá-lo.  Era um dia de sol quente e luminoso como é o sol daquelas paragens ... como pertence ao sol ser, naquelas paragens ... Porque era um dia perfeito com um sol de sonho num azul de promessas ainda ...
Era a Tailândia, destino mítico, as tribos do norte, na fronteira com Myanmar ( que haveria de conhecer muitos anos depois, noutro contexto totalmente distinto.  Quando eu também já não era mais eu ... mais de uma década passada ).

Há imagens que nos ficam com uma nitidez absurda, num mecanismo maquiavélico que não se explica, com cores, cheiros e sons tão claros e desenhados, que reflectem tudo como em tempo real desfilando numa tela de cinema.
Acho que teimam em perdurar porque não queremos separar-nos delas por nada, não as largamos por coisa nenhuma, não as deixamos ir como se fossem tesouros de valor inestimável.
São como páginas escritas, e o que está escrito dificilmente se apaga !
É estranha esta necessidade doída que me assoma de revisitar o passado, como se fazendo-o, eu conseguisse, num passe de mágica, lá retornar.  Como se conseguisse reabilitar a que eu era, recuperando o tempo que foi.
Porque tem dias que há um buraco bem aqui no meio do peito, que reclama o preenchimento, neste vazio depauperado de emoção...

Tudo a propósito, penso, de páginas viradas, de intenção de caminhos adiante, de necessidade absoluta de conseguir olhar p'ra frente, deixando de olhar o ontem, deixando de me prender com a dobragem dos dias sem demais aflições com o amanhã, pois que no devir, sei lá se ainda aqui estou ...
Tudo a propósito de ansiar partir de novo, ansiar viajar p'ra destinos de silêncios, onde apenas o mar me aninhe, o sol me aconchegue, o vento me espalhe da mente tudo aquilo que perturbe o meu espírito, cansado e desordeiro.
Tudo a propósito de ir por aí, deixando p'ra trás o nefasto, ignorando todo este pesadelo que se arrasta há tempo demais, este cansaço sem fronteiras, estes dias descoloridos e desesperançosos, dando uma demão de tinta à Vida, que tantas e tantas vezes interrogo. 
Iludo-me.  Sei que me iludo, porque toda a busca só se concretiza se a reconstrução começar dentro de mim ... e essa é uma tarefa que eu sei ser praticamente inalcançável.

Sou um espírito atormentado. Sou aquele pedaço de nada importante que a maré leva e traz e volta a levar sem rumo ou destino. Donde veio, para onde será jogado ? Ninguém nunca saberá.
É simplesmente um detrito no meio do vórtice da correnteza, sem força, determinação ou capacidade de escolher um novo caminho, de percorrer uma outra estrada ... de procurar um novo amanhã ... dia após dia, ano após ano ... tempo atrás de tempo, sem remédio ou solução.

Assim sou eu, o corolário de contas desfiadas dum colar que nunca ninguém entenderá !

Anamar

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

" HOJE FOI ASSIM "


Hoje assumi ser necessário retomar um pouco da rotina de outros tempos.  E por "outros tempos" refiro a era anterior à Covid, quando a vida parecia ter algum grau de normalidade.  Sabíamos então, mais ou menos, o que nos esperava nos dias que decorriam.  Sem grandes surpresas e de acordo com o delineado, planeávamos e cumpríamos, a menos que surgisse algum imprevisto.

Sempre fui muito uma mulher de rotinas.  As rotinas são, de alguma forma, uma almofada de conforto, um mecanismo de poupança de esforços, físicos e psicológicos. 
Nas rotinas as "surpresas", agradáveis ou não, poupam-nos mais, dando-nos tempo para estratégias de ponderação, aferição e solução. Teoricamente teremos mais espaço de manobra e protecção pessoal, face até a imprevistos.
Pode ser cómoda, porque diminui a entropia de que sempre somos escravos, mas pode ter uma vertente manifestamente negativa, também. De facto, a rotina pode ser profundamente entediante, por repetitiva, cerceadora da criatividade, da ousadia, do arrojo ... do colorido.
Submissos a situações rotineiras, temos tendência à acomodação, ao imobilismo, ao deixar correr.  Ou seja, desmotivamo-nos e acinzentamos os nossos dias.

E de facto, os meus andam numa mesmice, andam numa apatia e numa desinteressante realidade. São dias pantanosos, sem frisson, sem adrenalina, sem o combustível tão necessário ao impulso fundamental, para que em cada um saltemos da cama dispostos a fazer história com ele ...
E isso seria sinal de Vida.  O resto é uma modorra mortal, é um arrastar do mundo sem rumo ou glória !

Bom, e resolvi ir tomar um café "outdoor", que é como quem diz, ao café aqui da esquina.  Um café sem história, mas pelo menos fora das quatro paredes confinantes que diariamente me engolem mais e mais.
É um lugar que tem para mim uma conotação particularmente afectiva.  Foi café / restaurante de toda a vida, carismático que era, aqui da urbe.  Engraçado que ainda hoje, muita e muita gente quando o quer referenciar, o nomeia de acordo com o passado.
É um marco na minha estrada, portador de muitas e doces memórias.
Hoje, para mim é um espaço descaracterizado, e enquanto lá estou, deixo que me atravessem, como projectados na tela de um cinema,  tantos e tantos momentos, acontecimentos, rostos e palavras que também escreveram a minha história ... 

Assim, tudo se resumiu a descer, pegar no livro que leio, em papéis de rascunho para o que desse e viesse, e a carregar a ilusão de que a rotina arrastada iria finalmente ser alterada.
Tirando quatro ou cinco pessoas que faziam parte das tertúlias useiras e vezeiras do Pigalle e que deixei praticamente de ver, nada mais, só a absoluta sensação e certeza de que nunca mais nada poderá ser retomado, de que nunca mais reviveremos o que era, o que foi ... ou prosaicamente e sem nenhum espírito de novidade, que nunca mais seremos os mesmos, que nunca mais o que deixámos regressará ... ou dito de outra forma ainda, que o Tempo, essa entidade sádica, gozadora e castigadora, jamais será  reversível !

Entretanto, terminei o livro que andava a ler e que é uma biografia ficcionada de Florbela Espanca, e embora "grosso modo" conhecesse a história desta mulher inteira, sem baias ou limites na sua existência, desta mulher frágil, sonhadora e utópica que nunca desistiu de buscar e viver a autenticidade que acreditava dos amores e das paixões ... o relato da sua vida perturbou-me profundamente.
Ambas somos alentejanas, ambas conhecemos o cheiro da charneca em flor,  sabemos do silêncio audível do vento nas searas,  do canto desgarrado das cigarras na canícula ardente dos Verões ... e ambas sabemos da linguagem utópica da efemeridade dos afectos, sempre prometidos e sempre incumpridos.  
Ambas conhecemos o peso das solidões, dos sonhos pousados nas cabeceiras por cada manhã que desperta;  da força dos destinos cruéis remando em marés e mares alterosos ... mas também das ilusões entretecidas na espuma de ondas que se desfazem, engrossando novas ondas que renascem ... porque a esperança, apesar dos pesares, talvez ainda nos habite o sangue ...
Ambas pertencemos e não pertencemos a este mundo. Sentimentos iguais em épocas diferentes ...
Ambas norteamos o coração com a luz da liberdade, inalienável ... só ela guiando os nossos caminhos ...
Mas sobretudo, ambas conhecemos uma linguagem universal, que é ponte, é veículo, é corrente : a força da poesia, a verdade das palavras, o alinhar das letras na construção dos sentires ...
No único livro que até hoje publiquei, " Silêncios", livro de poesia que veio a lume em 2017, há uma referência a Florbela com uma citação de um dos seus sonetos, e que deixo aqui, em jeito de homenagem, como epílogo deste meu post :


                                          " Sou talvez a visão que alguém sonhou
                                             Alguém que veio ao mundo pra me ver
                                            E que nunca na vida me encontrou ! "





Anamar

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

" MEMÓRIAS "

 


Estamos no carismático mês de Agosto. Era "aquele" mês !

Sempre que Agosto chegava, ala que se fazia tarde para usufruir dos almejados dias fora do casulo de ano inteiro.  As férias sonhadas e esperadas ansiosamente, chegavam finalmente, e outros destinos aguardavam todos, particularmente a miudagem, cujos olhinhos já piscavam duma pressa inadiável.
Normalmente, com o fim do ano escolar, começava a programar-se o destino de praia.  Sair de Lisboa e poder ir molhar o pezinho ao Algarve ou na Costa Alentejana, já era um "must", já era um privilégio de classe média !
Era verdade que em criança, talvez fugindo um pouco do habitual na minha geração, já eu  desfrutava de destinos ao sul, onde chegava a ficar com a minha mãe, mais de um mês, num quarto alugado ou numa pensão, usufruindo a época balnear, enquanto que o meu pai que detestava praia, continuava no labor da viagem.  Mais tarde, as minhas filhas sempre tiveram a possibilidade de rumar a destinos simpáticos.  Toda a costa algarvia, começando em Vila Real de Sto.António e terminando em Lagos, foram lugares sendo percorridos nos diversos Agostos.  Porto Covo também, em saudosas férias em grupo de amigos, várias famílias com adultos divertidos e crianças imparáveis.
Eram tempos fantásticos de dias inteiros no areal, muitos banhos, muitos jogos, muita partilha de conversas e paródia, muita cumplicidade e serões de passeio após o jantar, como refrigério da canícula alentejana. 
Foram tempos ...
Depois esperavam-nos dias no campo.  Eram outras vivências, outras paisagens, outros cheiros e outras cores.  Eram as espigas de milho assadas na fogueira, era o rio e os mergulhos na água fresca, era a brincadeira interminável, era a jogatina das cartas a desoras, na mesa de pedra debaixo da tileira, sempre generosamente frondosa.

Para o estrangeiro só comecei a sair com quarenta e muitos anos.  Ainda assim, começando por tímidas digressões até ali, à vizinha Espanha, aproveitando que Ayamonte ficava à mão de semear do nosso paradeiro e sempre haveria uns caramelos a trazer.
Viagens propriamente ditas, só anos depois.  
Nada disto tem a ver com os usos e costumes da nossa realidade actual, onde os jovens começam com viagens de finalistas à discrição, inter-rails mundo fora, campismo "à Lagardère", férias de neve em grupos, não falando noutras possíveis invenções, já totalmente assimiladas na sociedade em que vivemos, e que nem surpresa já constituem, nos núcleos familiares.
Tudo mudou ... tanto mudou !
A primeira vez que andei de avião tinha vinte anos e já estava casada. Ainda assim, a viagem Lisboa-Luanda deveu-se à obrigatoriedade de para lá me deslocar. Carro próprio, também só com o respeitável estatuto de "esposa" ... 😀😀😀 Os meus pais nunca o tiveram, pese embora a minha mãe tenha ingloriamente tirado a carta !

Este mês de Agosto é de facto um mês de memórias.
Além destas poucas, avulsas, que me foram escorrendo da mente, Agosto é também um mês de festejos a nível familiar, e apesar de hoje em dia a Vida disso não se compadecer, disseminando as pessoas por aí ao sabor dos ritmos e conveniências de cada agregado familiar ( e olhem que a família é bem pequenininha ... ), assinalo que ao dia de hoje dois aniversários se comemoram ... o da minha filha mais velha e do seu próprio filho mais velho também, e de hoje a uma exacta semana, o Kiko, o mais novo desse núcleo, também aniversaria.
Todos estão em gozo de férias no Algarve, eu, por aqui, a outra minha filha na margem sul onde habita com o companheiro e a Teresa ... o pai e avô igualmente noutras paragens e sempre inacessível, restam de facto as memórias de dias felizes, de vida vivida, de tempos idos, quando a história era toda outra e nem sonharíamos afinal, como ela iria ser escrita e contada !

Anamar

" O MEU MUNDO DE PERNAS PARA O AR "

 



Estou a superar-me nos meus recordes.  Contudo, pela negativa, infelizmente !
Verifico que desde o dia 11 do passado mês de Julho, não escrevo nada.  Verifico que nesse mês escrevi dois posts apenas e que em Junho, um único.
Verifico que se hoje me não "obrigasse" a vir aqui dedilhar duas linhas, passaria tranquilamente mais um dia, sem que o fizesse.
Verifico também que ultrapassei já com alguma expressão, as cem mil entradas de leitores a este blogue, sem que sequer tivesse dado por isso, eu que sempre sinalizei com júbilo e satisfação pessoal, a passagem de cada dezena de milhar.  Com alegria, mas também com reconhecimento e gratidão por poder sinalizá-la ...
Verifico que escolhi como foto do mês e também do post de hoje, uma imagem que talvez fale por mil palavras, tendo-a legendado com uma frase que só por si já diz tudo : " o meu mundo de pernas para o ar "...

Na verdade, não sei se será justo epitetar desta forma a vida que detenho e vivo hoje em dia.  Objectivamente, não consigo descodificar a origem do mau estar que preenche os meus dias, a insatisfação, o cansaço e o desinteresse por tudo o que me cerca.  Analisando globalmente a realidade que atravesso, não encontraria motivos reais, palpáveis, concretos ... daqueles de tirar o sono, daqueles de nos porem o coração à boca, de nos puxarem as lágrimas, de nos levarem a arrancar cabelos, ou a desistir de prosseguir.  Efectivamente não vivo preocupações excessivas, dúvidas ou ansiedades esmagadoras, mágoas ou desgostos profundos com nada... 
Tenho saúde, ou julgo tê-la, dentro daqueles parâmetros rotineiros  de aferição da mesma.  Os meus, filhas e netos, também não me inspiram preocupação acrescida nessa área.  Financeiramente não vivo com sustos, angústias ou apertos exorbitantes.  Ao contrário, posso dizer viver uma vida com algum equilíbrio nesse campo, sem larguezas, mas também sem "roer as unhas", como "soi dizer-se".  
Acabei, inclusive, de chegar há poucos dias de uma viagem de uma semana às sempre maravilhosas ilhas açorianas, àquelas onde nunca tinha ido, Terceira, Faial e Pico, cumprindo assim um itinerário possível no âmbito das viagens, em panorama Covid.

A maioria, ou grande parte da população portuguesa não pode dar-se a esse "luxo", já que com todas as dificuldades sociais experimentadas, com um futuro de incerteza e dúvida a todos os níveis, em consequência da pandemia, a qual lançou o mundo para futuros negros, tem que encarar em termos de prioridade e quase exclusividade, o garante da subsistência diária, sua e dos seus, infelizmente num contexto pouco mais amplo do que o de mera sobrevivência.
Pois paradoxalmente, nem estes dias conseguiram tirar-me deste torpor, e darem-me mais ânimo ou positividade em relação à vida ...
E como eu, afinal, adoro viajar !  Como me sentia solta, leve, feliz, livre e com um entusiasmo renovado, sempre que há anos atrás realizava uma viagem !...

Neste momento a minha existência está parada. Pareço ancorada e fundeada num mar de distância, em águas de não valer a pena, como se o vento que me enfunava as velas tivesse sucumbido a uma volta de tempo ...
Tenho dentro de mim uma apatia, um desinteresse, um desinvestimento em relação a tudo o que me cerca. Parece que o sangue deixou de correr e o coração cessou de me pulsar dentro do peito.  Parece que experimento a sensação estranha de já nada valer a pena.  Nada que justifique empenhamento, mão de obra, sonho ... 
A sensação estranha de sala de espera de não sei que esperar. A sensação de efemeridade temporal e curteza de caminho ... Consequentemente, a sensação estranha de já só viver a prazo, no cumprimento de calendário e não mais !

Sei que tenho um feitio difícil e uma maneira de ser muito particular e complicada.  Sei que em recorrência sou deprimida e profundamente depressiva.  Mas sei que neste momento, psicologicamente preciso de ajuda médica. Não estou a conseguir endireitar-me de nenhuma forma.
Nada me anima ou estimula. A caminhada é feita com um esforço exasperante.  Ontem a Teresa passou a tarde comigo, a trabalho da mãe.  Pois foi um cansaço diabólico, e no entanto os seus quatro anos de criança cordata, simpática, fantástica e nada chata, com toda a meiguice do mundo sempre pronta a distribuir-ma, deveriam resultar em encantamento e compensação para os meus dias ...
Mas não ! 
Parei de sonhar. E quando um Homem já não tem sonhos, objectivos ou metas, não tem por que lutar, não tem o que realizar, e à sua frente só enxerga uma estrada pedregosa, escura e desinteressante !  Desnecessária !  Um vazio cruel assola-lhe a alma ...

Como eu adoraria voltar a trepar a um arco-íris de esperança, vontade e luz !...



Anamar