terça-feira, 4 de outubro de 2022

" A CASA QUE CONHECEMOS ... "



Há já muito, mesmo muito tempo que deixei de abordar dois dos temas que fizeram escrita obrigatória sistematicamente nos meus posts durante largos meses / anos :  a Covid 19 e posteriormente a Guerra, a avassaladora e inesperada Guerra que parece ter vindo para ficar, num ímpeto desmedido de reduzir a terra queimada o infeliz território da Ucrânia, na Europa de leste.

Ambos os temas, infelizmente, caíram-nos no colo dentro da maior imprevisibilidade.  
Quem diria que no contexto actual, na vivência de um século XXI começado há cerca de duas décadas apenas, a minha geração que tantas e tão conturbadas realidades adversas e dolorosas já atravessara, viria ainda a ser surpreendida, do nada, por duas tragédias de dimensões inimagináveis ?!
Uma pandemia devastadora e incontornável cujo despoletar algo acidental não pode ser imputado à intencionalidade do ser humano, e uma Guerra fratricida, um genocídio destruidor, desumano e infernal, injustificável e criminoso, essa sim, provinda da mente doente de um louco que colocou um país independente e soberano vivendo dentro das suas fronteiras em paz e prosperidade, às portas dum horror que não se entende, não se conceptualiza e não se aceita.
Da noite para o dia, a cabeça inescrupulosa e alucinada dum psicopata obsessivamente ambicioso e megalómano, o presidente russo Putin, determinou a invasão da Ucrânia pela Rússia, invocando razões absurdas, unilaterais e injustificadas.  
Desta forma, não só arrasou cidades, vilas e aldeias pelo poder das suas armas, como infligiu perdas humanas em milhares e milhares contabilizadas, não só entre os militares, mas sobretudo entre as populações civis apanhadas e encurraladas pelo conflito .   
O consequente êxodo incomensurável de ucranianos em fuga para toda a Europa, estimado em milhões de pessoas, sobretudo mulheres e crianças ( já  que os homens ficaram para trás alistados nas colunas defensivas ) na tentativa de se salvarem das atrocidades, não é descritível por palavras ...

A Covid, neste momento tornada praticamente uma doença já incorporada como a gripe sazonal que connosco convive, não estando erradicada, está contudo controlada pelo esforço científico e humano, desenvolvido, pela aposta vacinal em massa em todo o mundo e bem assim por todas as medidas profilácticas e terapêuticas de prevenção e tratamento, tomadas por todos os países em articulação, em todo o globo, num esforço colectivo desenvolvido mundialmente.
Por isso, a Covid 19 parece começar a ser já "passado" nas nossas vidas, não sem que tenha deixado contudo, um rasto de destruição e morte pela onda devastadora de milhões e milhões de vítimas por esse mundo fora ! 

A Guerra, essa continua, assumindo cada vez mais contornos de loucura e maquiavelismo.
Permanece instalada a política de terror com a ameaça sempre presente da utilização das armas nucleares por parte da Rússia, o que configuraria a destruição global do Homem pelo Homem.
No fundo, penso que verdadeiramente não acreditamos que isso possa vir a acontecer.  Talvez para mantermos a sanidade mental e vivermos a vida, dia a dia, com o equilíbrio possível.
Mas, como está em jogo a mente doente de um alucinado inconsequente que já provou e prova diariamente não ter limites ou contenção nos caminhos que segue ... tudo afinal será possível !
Melhor não o pensarmos.  Melhor continuarmos apenas sendo espectadores do filme de terror que se desenvolve lá longe, apesar de tudo ...

Muitas realidades distintas, a minha geração já viveu.  A muitos acontecimentos já assistimos ... de índole social, de índole Histórica, de índole política.  Muita conturbação, muita convulsão social, quase sempre causada pelos desmandos infligidos pelo Homem ... 
Conflitos, hostilidades movidas pela ânsia do poder, no desrespeito pelo nosso semelhante...
O planeta Terra a sofrer todo o tipo de agressões... Alterações climáticas absurdas e  incontroláveis por todos os continentes, atingindo proporções nunca vistas.  Inundações por chuvas indomáveis, fogos sem contenção alimentados por temperaturas fora de controle... Ventos, tufões, toda a ordem de  cataclismos a varrerem sem piedade o nosso mundo ... Secas extremas devastando espécies e destruindo eco-sistemas levando à extinção de muitas ... já não falando na fome, na miséria, na ignorância ... nas assimetrias sociais e na pobreza extrema instalada sem solução entre muitos povos da Humanidade ...
Toda uma barbárie à solta, não adivinhando futuros promissores para as gerações seguintes que por cá ficarem ...

Enfim, o mundo em que vivemos parece tornar-se cada vez mais, um lugar perigoso, um lugar "mal frequentado" e pouco adequado, como ironizando, costuma dizer-se ...
Mas não temos outro, efectivamente ! 

Tentemos pois usufruir esse Mundo, desfrutá-lo, saboreá-lo por cada dia que acordamos e podemos contemplar o milagre de um sol que se levanta e se deita, garantindo-nos a vida, de uma natureza pródiga que nunca nos defrauda e nos acolhe ... Maravilhemo-nos com a melopeia das ondas nos areais, ou perdendo o olhar na imensidão do mar sem fim ... Escutar o trinado dos pássaros no arvoredo, sentir a brisa mansa que nos perpassa o cabelo ... mas sobretudo sendo gratos, devendo respeitá-lo e cuidá-lo, pois ele é afinal, a única "casa" que conhecemos !...

Anamar 

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

" OUTONO OUTRA VEZ ... "

 


Hoje acordei outonal, como este Outono que começou entretanto, doce, aconchegante, envolvente.

Costumava dizer detestar esta estação, embora nela tenha nascido ... ou talvez por isso.  Mas isso fazia parte daquela angústia  e inaceitação mal resolvida comigo própria, que fui arrastando, enquanto me foi penoso, entendia e sentia ser demasiado pesado o fardo de viver ...
Estava psicologicamente fragilizada por certo, pelas peripécias que a vida me foi estendendo à frente, obstáculos que eu via vezes demais, quase sempre como injustos e demasiado devastadores para a minha robustez.  Inultrapassáveis mesmo ... derrotista que sou, pouco confiante e segura no meu próprio valor. 

Erro crasso !  
A vida vai caminhando, os anos vêm vindo e felizmente não trazem só aspectos negativos, mas também  aprendizagens, conhecimento e aceitação.  Começam a relativizar-se as coisas, a atribuir-se-lhes outro valor e outro significado.  Começa a olhar-se para trás e de repente, o que parecera negro, carrasco, mortalmente castigador, aparece como uma fonte de lições, de ensinamentos, de experiências, não necessariamente marcantes ou perturbadoras.
Começamos a perceber que a inteligência que possuímos nos deve posicionar como capazes de análises isentas, como alunos desarmados, intelectualmente objectivos sem avaliações persecutórias, ou melodramatismos excessivos, face ao que foi o nosso percurso.
Hoje, sou capaz de me sentir grata e não injustiçada, sou capaz de me sentir privilegiada e não vítima, sou capaz  de perceber o quão valeu a pena tudo o que há tempos atrás eu via como azar, destino ou pouca sorte ...
Hoje sou capaz de assumir uma paz e uma tranquilidade interiores, capaz de olhar o meu percurso, capaz de "me" olhar enquanto agente mas também enquanto espectadora do meu próprio existir, sem ódios, rancores, raivas ou angústias.
Hoje, sou capaz de "rever" a travessia e os que a dividiram comigo, valorizando o que de bom trocámos, o que me deixaram de si e o que levaram de mim, percebendo o bom, o gratificante, o inesquecível, e guardando numa caixinha especial na minha mente e no meu coração, com bonomia contudo, paz e tolerância não ressentida, o que de menos bom aconteceu ...
Tudo foi crescimento, tudo foi aprendizagem, tudo são afinal momentos, etapas, caminhos que haveriam de ser percorridos, experiências que haveriam de ser vividas, porquê, por onde, para quê ... ninguém sabe, talvez apenas porque vivendo-os, eles viessem a constituir um capital meu de crescimento, assim determinado quem sabe,  pelo destino !...
Tudo isso afinal, foi VIDA que eu pude viver !...

Hoje, quase sempre me sinto bafejada por ela, quase sempre me sinto mais paciente, quase sempre sou capaz de sorrir, e páro, muitas vezes páro e sorrio mesmo ... 
Basta que olhe à minha volta, para me sentir de facto feliz !  Basta olhar p'ra perceber como sou  abençoada.  Sinto-me pacificada interiormente muitas vezes, sobretudo nas horas de reflexão e meditação.  
E se o não sinto, reprogramo o meu coração e faxino a minha alma se ela claudica sem razão, num trabalho de reconstrução permanente.
Quando me sinto acarinhada por tantos e tantas, uns mais próximos que outros, é verdade, mas que ainda não me obliteraram nas suas vidas, percebo que alguma pegada tenho afinal deixado pelas veredas da existência ... E isso é muito bom, e faz-me muito bem pelo ânimo que me transporta ...

Hoje encontro-me aqui numa curva da estrada, num dobrar de caminho que me deixa ver com clareza o que os dias já percorreram, e me deixa perscrutar também, a linha do horizonte, desenhada longe ou perto ... o que for ... não me interessa ... não pode ou deve interessar-me.  
Apenas penso que terei paz a percorrê-lo, penso que terei olhos para o ver atentamente, penso que caminharei com as mãos abertas para o receber sempre, no bem e no mal, de acordo com as escolhas que fizer, as decisões que tomar, com as certezas mas também as incertezas ... 

... seguramente usufruindo com a maturidade que o Outono dá à Natureza, com a sabedoria dos frutos das árvores, que do verdor fulgurante da estação cessante atingiram a plenitude da doçura na estação calma, silenciosa, aconchegante, envolvente e doce que apenas há três dias nos acompanha ...

É assim também o Outono da vida ... tenho a certeza !!!

Anamar   

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

" APENAS MEMÓRIAS ..."


Perguntaram-me se eu estava a ouvir música ... não estava, agora já estou.  
Richard Clayderman num CD que ganhei de presente da minha mãe no recuado Natal de 2001, toca na aparelhagem ao meu lado ...
São temas imortais, transversais aos tempos e às vidas ... melodias calmas, dolentes, embaladoras, como gosto de ouvir quando escrevo.
Temas doces, preguiçosos, envolventes ... como o dia lá fora, indefinido entre o sol e a chuva que de quando em vez despenca convicta, quando uma nuvem mais decidida se atreve.

Estou triste, profundamente triste ... não sei porquê.  As lágrimas estão mesmo aqui por detrás dos olhos húmidos ... Incompreensivelmente, talvez.
Nada motiva ou justifica este meu estado de alma.  Nenhum tormento me inquieta, nenhuma preocupação ou angústia acrescida me toma, nesta tarde beirando o Outono.  Talvez seja apenas este recolhimento que ele sempre me traz, este abandono estranho, esta sensação de perda, de ausência ... de lugares vazios ...
Fiz a caminhada, aproveitando a promessa de que não choveria entretanto.  A mata estava totalmente vazia de gente. Não cruzei uma só pessoa pelas veredas silenciosas.  Apenas os pássaros continuavam as rotinas  habituais.  Os patos nos tanques, uma ou outra borboleta esquiva, um ou outro animal residente, que mais se pressentia do que se avistava, eram os sinais de vida ... além do gorgolejar da ribeira, agora com o caudal bem mais abundante depois da intempérie dos últimos dias.
Adoro a mata exactamente assim.  A Natureza e eu, num solilóquio abençoado ! 

Mas eu dizia que experimento um misto de sentimentos tão herméticos que os não sei explicar, um desconforto interior, um coração espremidinho dentro do peito, onde parece não caber ... pesado, que só ele ... e uma saudade também, não concretizada, sem rosto ou nome.
Mas uma saudade que dói.  Objectivamente dói, como se fosse um espinho impiedoso a enterrar-se, cada vez mais fundo. Acho que se conseguisse chorar, as comportas deixariam escorrer esta avalanche que me tira o ar, e um almejado alívio atenuaria esta angústia que me maltrata.

"Viajo" pelos anos que foram, pelas pessoas que passaram, pelos sonhos que se sonharam, pelos projectos que se desenharam, pela esperança que iluminava os caminhos da vida ... 
"Viajo" pelos rabiscos que fui escrevendo na junção de letras que formavam palavras, construíam vontades, decidiam rumos, faziam escolhas, arquitectavam ideias ...
"Viajo" pela trilha que ficou para trás ... Vejo-me e vejo todos os que, de esquinas e travessas se me juntaram no percurso, me enriqueceram a marcha, me desvendaram paisagens que eu nem sabia que existiam ... Todos os que me engrossaram a súmula dos dias.  
Estiveram comigo uns tempos, percorreram comigo pedaços da existência, dividimos estórias das nossas histórias ... e depois, porque é assim que sempre é, foram ficando parados na sombra protectora das árvores  da estrada, foram saindo para caminhos alternativos, de mansinho, sem aviso ou alarde foram-me deixando aos poucos mais sozinha, no cumprimento do destinado ...
E foram vozes, rostos, corações que partiram e se diluíram na distância.  Foram momentos, instantes saboreados, trocados, divididos, guardados ... Foram coisas tão incríveis e irrepetíveis que até nem sei se foram reais de verdade !

E depois, como tudo é efémero, tudo é precário, tudo verga sempre sob o peso inelutável do tempo ou pelo cansaço da rota, fica-nos apenas o buraco vazio cravado no coração, os braços órfãos das ramadas  de flores que havíamos colhido ... e um horizonte cada vez mais curto em que as cores do arco-íris, de tão esbatidas, já não iluminam ...

... e memórias ... apenas memórias ...

Anamar

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

" A CHUVA ..."

 


Já quase não sabia o que é chover.  Quase já não lembrava como é agradável apanhar uma boa carga de água, sobretudo se os dias estão quentes, abafados, ardentes, como estes que vivemos há tempos infinitos.

De facto, o calor exorbitante que nos tem flagelado há tempo demasiado, em que embora sendo Verão, as temperaturas e a seca sem fim à vista  têm trazido ao território do continente situações extremas verdadeiramente preocupantes ... mesmo verdadeiramente angustiantes, não dá sinais de abrandamento.
Obviamente são situações anómalas, drasticamente agressivas,  mas a que, cada vez menos teremos alternativa de fuga, já que são fruto das alterações climáticas a nível planetário, clara e progressivamente acentuadas ,
É mesmo uma situação catastrófica a que se vive nos campos onde a água escasseia, reduzida a precários charcos quase inexistentes, e em que a vida dos animais periga pela ausência também da comida, em campos calcinados pela canícula.
Os incêndios aterradores que nos últimos meses deflagraram e consumiram tudo o que lhes fez frente, destruindo reservas naturais de fauna e flora, um bem inalienável cuja reposição já não será para a minha geração, foram mais um factor evidente de que o futuro do Homem e de todos os seres vivos que com ele dividem na Terra o direito à vida, corre riscos reais, incontidos e irreversíveis, de sua inteira responsabilidade !

Pois bem, anunciada como a tempestade Danielle, inicialmente um furacão vindo do lado das Américas, que atravessou o Atlântico e rumava à Grã Bretanha, refez a rota e depois de ter atravessado ilhas dos Açores enfraquecendo no grau de agressividade, decidiu-se por Portugal Continental, caminhando de sul para norte até varrer todo o território.
Anunciava-se muita chuva, algum vento e temperaturas um pouco mais baixas.
E hoje choveu, de facto, mas nada que me convencesse.  Parece que a chuva anda tão arredia que não se fixa.  Não encontra o caminho esperado !
Caem uns pingos, a bem dizer,,. pára ... o dia faz cara feia ... mas só !
E que falta nos faziam uns bons e insistentes aguaceiros, concedo mesmo alguma trovoada, direi até que um ventinho desde que não fosse excessivo e puxasse as nuvens pra cima de nós ...😏😏
Mas qual quê !  A chuva já veio e já foi, parece.  O sol brilha outra vez, quente, por aqui, num céu que aos poucos faxinou e se tornou limpo e azul !... Descaradamente !
Estou decepcionada !  Estava eu tão contente, com aquela alegria infantil que leva a criançada a chapinhar de qualquer modo, nas pocinhas que ficam pelas ruas, depois da queda duma boa chuvada !...
Eles bem sabem porquê ...

Dentro de dois meses conto estar por uns dias num país tropical.
Deles guardo sempre memórias inapagáveis de fortes e cálidos aguaceiros, daqueles que encharcam o corpo e lavam a alma. Chuvas a sério, essas que vêm e vão rápido, mas que são tão intensas que nos tocam o coração !...
Da Jamaica, a Bali ... às Maldivas ... Santa Lucia, entre tantos outros destinos, a sensação doce e indescritível da profanação do meu ser, do devassar do meu corpo entregue, do abandono silencioso à chuva que açoita e afaga, sob um calor escaldante, uma febre sem nome, é um abraço da natureza inóspita e excessiva, é uma subtil carícia pra não mais esquecer ...

Assim, espero voltar de novo a mergulhar nessa onda crescente de emoção e paz !

Anamar

sábado, 3 de setembro de 2022

" AS CORUJAS INVISÍVEIS DO CREPÚSCULO ..."



 "Quando o tempo que está pela frente fica menor do que o que já passou", aplica-se direitinho ao avanço do ano.  Setembro abriu o último quarto de 2022, dará o cartão vermelho a um Verão que eu sinto não ter passado mas sim voado, e já nos deixa espreitar lá ao fundo mais um Natal a avizinhar-se ...
"Daqui a pouco é Natal" já se ouve dizer por aí, nas bocas de quem percebe objectivamente a celeridade do tempo.

Hoje um amigo escrevia, com notória nostalgia, sobre a partida de tantos habitantes da sua aldeia, pessoas e animais, com quem conviveu na já dezena e meia de anos em que por ali se radicou, referindo exactamente como os dias se fazem apesar dos lugares vagos, como acaba instalando-se alguma indiferença e distanciamento inevitáveis, impostos pela implacabilidade da vida que sempre continua e bem assim, como o esquecimento vai dominando os que por cá vão continuando ... 
É assim.  Todos o sabemos !

Há pouco chegou-me ainda às mãos um artigo dentro da mesma temática, o envelhecimento, cujo autor é o historiador Leandro Karnal, o qual foi republicado pela jornalista brasileira Maya Santana no seu espaço online "50 e mais - Vida adulta inteligente", do qual vou retirar alguns excertos, porque o achei, de facto, fabuloso. 
"Quando o tempo que está pela frente fica menor do que o que já passou" foi o título aposto a esta publicação, substituindo o original "as corujas invisíveis do crepúsculo", para que fosse mais explícito o tema da abordagem do escrito, uma profunda reflexão sobre o nosso caminhar para o fim da vida :

" Há maneiras bonitas de descrever o processo.  A metáfora poética da geada dos anos clareando os cabelos, por exemplo.
Como todo o conceito incómodo, o envelhecimento apresenta denominações diversas , desde o suave "melhor idade" até ao cruel "zona do desmanche".  Rubem Alves sugeria o lirismo de "pessoas com o crepúsculo no olhar".
O Outono não é um raio num céu azul ... Há sintomas prévios.  A primeira vez que nos chamam de "tio" é um alerta.  A percepção acelera-se quando alguém nos cede o lugar no metro lotado, ainda que com o sorriso generoso de um bom escoteiro ...Por fim o elogio que mata o último botão da nossa fantasia de juventude finda, é disparado : "Você está muito bem para a sua idade "... Pronto !  Chegámos lá : à região obscura do Cabo da Boa Esperança ".  Carimbamos o passaporte para a terra sem volta. O que está pela frente fica menor que o que passou.
Uma mulher de 30 anos olha com docilidade e insinua : " Você gosta de mulheres mais jovens ?"
O Dom Juan cinquentão estremece.  Em breve surge o primeiro refluxo após um pouco mais de álcool à noite.  As letras teimam em diminuir diante das retinas cansadas.  Incorporamos palavras complexas ao vocabulário : presbiopia, estatinas, colonoscopia ... A nossa casa fica cada vez mais confortável e a rua mais desafiadora.  A "nécessaire" de remédios aumenta a cada ano.
Há pessoas optimistas e pessimistas.  As duas posturas envelhecerão.  Lutar contra o tempo é como rebelar-se contra a lei da gravidade.  Angustiar-se com a idade é temer a chegada do fim do dia ou das fases da lua.  Não existe maneira indolor de viver o processo, mas há coisas objectivas a considerar.

Hegel notou que a coruja de Minerva levanta voo apenas com as sombras da noite.  Esta era a análise tradicional para indicar que a ave símbolo da reflexão e ponderação ( dedicada à deusa da sabedoria Minerva ) consegue subir no instante do declínio da luz.
A sabedoria nunca é alcançada cedo e nem sempre a tempo.  Não existem garantias, mas a tradição ensina que podemos melhorar com o tempo.  A diminuição dos movimentos rápidos dos anos do vigor máximo colaboram nesta conclusão. O carro vai mais devagar e a paisagem é mais clara, ainda que com óculos.
É uma idade de sinceridade.  Crianças, velhos e bêbados têm um compromisso maior com a verdade.  Nem sempre ficamos pacientes, mas cresce a autenticidade.  A idade madura abre os olhos para as coisas essenciais.  Idade do fim ?  Há controvérsias.  Para muitos é o momento de começar a fazer o que realmente gostam.
Quando o mundo não precisa mais ser conquistado, ele pode ser fruído.  Há mais tempo para isto.  Os ritmos podem ser respeitados.  Há vagas em estacionamentos e filas preferenciais.  De quando em vez, surgem netos, um estágio superior de paternidade e maternidade.  Alguns possuem mais dinheiro na maturidade do que na juventude.  Perdemos a obsessão com o julgamento alheio.  Quase sempre saímos do jogo da sedução.  As cabeças não se voltam assim que entramos.  Como muitos perceberam, aumenta a nossa invisibilidade para o mundo.
Na infância, eu achava que o "Homem Invisível" dos programas da televisão, poderia fazer quase tudo.  Os seres crepusculares podem !!!

As corujas voam mais livres no fim !!! "

Há os optimistas e os pessimistas, é dito no texto.
Há os que dizem "eu nem penso nisso", "eu convivo muito bem com o passar dos anos" ... E também os que garantem ":  eu orgulho-me de cada ruga do meu rosto, é um sinal de vida vivida, e isso é muito bom !"
Esta última afirmação normalmente sai de bocas femininas e perdoem-me se sou leviana na conclusão de que se trata duma profunda hipocrisia, uma espécie de tentativa de se escamotear o lugar onde dói mais ...
Costumamos perseguir bons cremes, boas marcas, bons resultados, plásticas e outras alternâncias ... certo ?...

Eu não me orgulho nem um pouco de sentir que o envelhecimento me confere prerrogativas.  Reconheço que talvez seja mais cómodo, mais fácil, sentir-me livre de alguns espartilhos cansativos que a sociedade impõe ao longo da vida, agora no declínio desta.  A vida profissional, a vida familiar, a vida social ditam regras impiedosas, quase sempre rígidas.  Os exemplos que devemos dar aos filhos, aos colegas, à sociedade duma forma geral são normalmente castradores de tão impositivos.  E não devemos/podemos afastar-nos dum impoluto desempenho ao longo dos anos. e isto é brutalmente cansativo e desgastante !
"Idade é estatuto", ouvimos dizer, como sinal de libertação.
"Para as crianças e para os velhos ninguém olha", dizia a minha mãe quando por vezes eu lhe exigia esta ou aquela postura mais severa e gravosa já no fim da vida.
Hoje, já me permito, também eu, transgredir um pouco.  Já me "borrifo" para o que pensam, acham ou mesmo dizem ...
Vivo mais descontraidamente, porque na verdade não tenho satisfações a dar, sou totalmente anárquica nas horas das refeições, nas horas da dormida, a pouco ou nada me submeto a terceiros ... pauto-me pelo meu calendário interior, tão só !  Faço quase sempre apenas o que me dá "na gana", e isso é de facto uma mais-valia neste timing da vida.
Depois, já não sou mãe, sou avó, e isso confere-me o "doce" da coisa.  Raramente tenho que opinar, menos ainda decidir e a responsabilidade dos acontecimentos nessa matéria, não onera sobre mim.
Giro o meu dinheiro e consequentemente as minhas "loucuras"...

Esta, a vertente agradável neste deslizar rampa abaixo...

O meu pai que partiu com 90 anos e se deslocava já há alguns com uma canadiana num braço, manteve a sua possível autonomia e independência até bem tarde.
Morando nos arrabaldes, quase todos os dias ia dar o seu passeio até à Baixa da capital, tomar o seu chocolate quente na pastelaria Suiça e frequentemente bater uma sorna nos confortáveis sofás do Montepio Geral, de que era cliente.
Olhando a sua visível e óbvia limitação motora, era frequente darem-lhe o "tal lugar" no comboio que utilizava.  Pois bem, lembro até hoje a sua exasperação pelo facto, sendo mesmo frequente recusar a gentileza ...
O meu pai nunca aceitou que envelhecia a olhos vistos, coitado ...
A minha mãe que também partiu com uma longevidade invejável, 97 anos, tinha um desgosto profundo ao constatar o evidente declínio que os anos lhe foram somando.
Extremamente autónoma quase até morrer, independente, dona da sua vontade ( quase sempre indomável ) e da sua mente que apenas no fim a atraiçoou, apresentou inevitavelmente, limitações físicas crescentes com o transcurso do tempo.  O prazo de validade da "máquina" foi-se aproximando do fim ... e ela bem o sabia.
Penso que quando ficou numa cadeira de rodas, dependente de terceiros, foi  finalmente  obrigada  a enfrentar o inegável, e  de  mansinho  foi  desistindo  de  viver.  Sempre  sob  protesto !
" A vida tudo dá e tudo leva" era a máxima que não cansava de repetir.  Olhava as suas fotos antigas e percebia-se claramente o profundo desgosto com que dizia : "desta Margarida já não existe nada!..."
A minha mãe também conviveu muito mal com o crepúsculo da vida !

E eu ?
Teria que ser obviamente semelhante aos meus pais, no abordar deste sensível tema.
Convivo pessimamente com a ideia da morte.  Todos os dias, posso garantir, que em algum momento esse tema aflora o meu espírito ... por isto ou por aquilo. Às vezes sem um nexo de causalidade aparente.  Ou porque mais um dia passou e menos um dia faltará, ou porque estando só em casa, num prédio sem barulhos ou movimentos tudo parece na maior solidão, ou porque constato que para subir a um banco devo colocar um outro intermediamente ... se não, já lá não vou ... , ou porque o ouvido vai dando sinais quando nos diálogos dos programas que assisto na televisão, metade é adivinhado e só metade percebido, ou porque, apesar de intervencionada cirurgicamente às cataratas e à miopia, pareço continuar a ver outra vez pior ... ou porque a rua ( como também se diz no texto ) , é lugar pouco fiável, bastando ver os trambolhões já dados só porque a maldita sandália embicou num desnível de meio centímetro ... ou porque já morreram não sei quantos colegas de sempre, e este e aquela estão com doenças sem horizonte possível, ou porque ... ou porque ...
Também eu olho as fotos de há dez, quinze anos ... e olho-me hoje.  E não aceito, e não quero e recuso este "el dourado" de vantagens, de compensações, de contrapartidas que o envelhecimento promete trazer.
Queria continuar a sentir-me a mulher inteira que eu era, queria continuar a poder sonhar todos os sonhos do mundo sem restrições ou limites, queria ter forças e vontade para cometer iguais loucuras, e acreditar nelas com igual verdade e veemência ... queria poder continuar a jogar o jogo da sedução ... ainda que eu saiba quão utópica sou ... quando os pés me pesam na terra embora as asas me levem acima dos píncaros ensolarados das escarpas, pelos céus rumo ao infinito da liberdade dos sonhos ...

Queria ser condor e não coruja ... ainda que estas voem mais livres no fim !!!...





Anamar

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

" UMA IMENSA MANTA DE RETALHOS "




O tempo muda e muda-nos.  
Não há um dia igual ao outro, um momento que se repita.
E quando olhamos para trás, nunca encontramos absoluto rasto do que fomos.   
Física e inevitavelmente, a que acordámos hoje pouco tem a ver com a que adormeceu há algumas horas.  Emocionalmente ocorre algo muito próximo ... e quando queremos descortinar onde encalhámos no percurso, nem sempre vislumbramos uma conclusão aceitável.  Por isso, "nunca" e "sempre" deveriam ser vocábulos a banir no nosso linguajar, simplesmente porque são conceitos inexistentes, apesar de quase sempre neles acreditarmos.

É com convicção, não tenho dúvidas, que num determinado momento garantimos que isto ou aquilo será impossível de se repetir, ou que isto ou aquilo que agora experimentamos, é matriz definitiva da nossa personalidade pelos tempos fora ...
E por tudo isso, por essa incoerência, quando nunca o sempre que julgamos óbvio, se repete, ficamos surpresos e incrédulos.  Afinal parecia que seria exactamente assim ... Impossível ser diferente ... achávamos !

A vida faz-se precisamente de mudança, de mudanças imprevisíveis.  O crescimento passa pelas dores dessas mudanças e pela sua aceitação, e é na gestão lúcida e assertiva das mesmas, que ele se processa saudavelmente.
De que servem saudosismos, rejeições, inaceitações, de que serve guerrearmo-nos em permanência se o que é inevitável não é passível de caminhar sob o nosso critério ?!
A inteligência está pois, em gerir pacificamente os diferentes estadios da existência, sem conflitualidade ou confronto, tirando de cada momento, de cada situação ou acontecimento, tudo aquilo que, até ao tutano, eles nos possam proporcionar.
O que verdadeiramente importa é ter capacidade de equilíbrio esclarecido e perceber as melhores formas de desenhar cada dia coerentemente, sem atropelarmos ou nos atropelarmos, sem nos violentarmos ou quiçá nos vilipendiarmos ... sem nos desrespeitarmos ou desrespeitarmos aqueles que connosco convivem.

Nada disto é simples, menos ainda fácil.
A vida equaciona-se diariamente como resultante de muitos vectores, fruto ou consequência das circunstâncias, quantas vezes perfeitamente imprevisíveis.  Ela é sempre uma resultante do que experienciamos, do tapete que se estende em cada momento aos nossos pés, de todo o background que nos enforma, das emoções, dos medos e das angústias, da coragem e da determinação ... mas também da esperança, do sonho e da força do acreditar em cada momento !
Porque a grande premissa que norteia a existência é exactamente a impermanência !  Essa é a maior verdade e a maior certeza !
Há que assumir a nossa história pacificamente, com a convicção de termos feito, em cada circunstância, as escolhas que com verdade, seriedade e autenticidade tomámos como as certas e as que não feriram ou violentaram aquilo que em consciência tivemos como correcto.
Dessa forma, pelo menos, teremos paz, alienaremos culpas ou penalizações desnecessárias, aliviaremos o julgamento inútil com que com frequência nos martirizamos, reduziremos insatisfações e conviveremos mais pacificamente com o nosso coração e o nosso espírito.
Se o conseguirmos, já terá sido um ganho !...

... porque afinal a Vida não é mais do que uma sequência interminável de pedaços costurados, todos eles tecendo uma imensa e imperfeita manta de retalhos !...

Anamar

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

" É SEMPRE ASSIM..."



Setembro chega e uma ténue película de nostalgia parece agarrar-se a tudo que me rodeia.
O sol perdeu a virilidade dos meses anteriores, brilha morno e adocicado e o Outono já espreita no virar de mais alguns dias.
É a época do ano em que uma sonolência mansa parece descer sobre a Terra, em que mais experimento uma solidão corrosiva, mas disfarçada.  O ano lectivo acena, a mexida entusiasta dos que irão começar, anuncia-se.  As férias inevitavelmente terminaram e já não teria a mesma graça assistir-se ao esvaziar dos areais ... Tudo isso ficará aguardando novo ano, novo Verão, novos sonhos e projectos.

Sinto-me mais do que em qualquer outro momento, na rectaguarda da vida.  Como se já só assistisse a um jogo, da arqui-bancada, sem grandes sobressaltos, euforias ou aplausos. Sem participação ou interveniência ... pouco mais que atenta mas irrelevante espectadora ...
É como se, duma esquina qualquer eu ficasse apenas acenando aos meus netos que demandam as escolas, os livros, os amigos ... a Vida !  Vendo-os ir com os rostos esperançosos, com a alegria rodopiando-lhes os olhos, com o gargalhar da juventude inundando-lhes os corações ...
E é estranho ... como se eu estivesse sobrando num filme a desenrolar-se, como se eu já não pertencesse bem a este acto, da peça que se vai desfocando em distanciamento ...

Énya toca ao meu lado.  Quem mais tão bem traduziria o que sinto ?... a mesma nostalgia ...

O meu ano sempre se partia por Setembro.  Não se dividia pelo fim de Dezembro ou pelo começo de Janeiro. Não ! O ano era agora que começava à séria.  Era agora que a urgência, a afobação, os preparativos inadiáveis e meticulosamente calculados, se faziam.  Era agora que o "frisson" do recomeço fervilhava dentro de mim.  Era agora, tal como as crianças demandam a busca dos novos materiais, os livros, os cadernos, os estojos, os lápis e as canetas, que também eu recomeçava tudo, outra vez, quase com o "cheiro" a tinta fresca retocando-me os miolos e a ponta inquieta dos dedos !...
E esse borbulhar intempestuoso e imparável era isso mesmo ... o borbulhar da Vida a chamar-me à equipa, novamente ... com tanto tempo diante de mim, parecia ... e uma estrada tão longa quanto o afastamento do horizonte, lá longe ...

Tudo isto flui como doença crónica, no sangue.  Como aquelas maleitas que volta e meia despertam duma letargia roçando o eterno. 
E por mais que eu pense o coração adormecido, lá vira a folha do calendário, e lá vem Setembro a sorrir, desmentindo a insensibilidade e o esquecimento acreditado ... Como se pudesse !...

Os livros ainda repousam silenciosamente nas prateleiras, quase a tocarem-me.  As canetas secas ainda estão nos estojos de fechinho corrido, dentro da pasta que já se encarquilhou um pouco, como velha desocupada e desleixada ... dormindo a um canto.
Pareço ter um respeito inviolável, um respeito religioso que sacraliza tudo o que foi e que ainda paira por aqui ... 
Porquê ? - pergunto-me.  Porque não dou um fim ou destino a tudo isto, por desnecessário ?
Não sei.  Sei que adio, sei que recuso, como se cometesse um crime qualquer, como se recusasse fechar a última porta de um lugar que me foi caro e imprescindível ... como se com isso cortasse amarras a um cais distante, deixando o barco à deriva ...
Como se com tudo, eu perdesse o norte e o rumo, orfanizasse um pouco, esvaziasse, como se uma onda me varresse a alma ... e fosse ...

E foi apenas ontem ...

Anamar

domingo, 21 de agosto de 2022

" QUINZE ANOS NÃO É COISA POUCA ... "

Hoje é mais uma data especial.  O Kiko completa os seus quinze anos !

Já muito escrevi sobre o Kiko, o terceiro irmão de uma equipa espaçada de três em três anos.
Quer isso dizer que a Vitória acendeu dezoito velinhas, o António vinte e uma e o Kiko então, as tais quinze que referi.
Assim, 2022 é o ano em que todos eles completaram datas importantes nas suas vidas, datas carismáticas e seguramente inesquecíveis.  Teria sido engraçado que a mãe tivesse completado o meio século ... mas não, ainda lhe falta um ano.

Ouso afirmar que sobre o Kiko já disse tudo, ano após ano, quando chega este vinte de Agosto e de longe o parabenizo.  Pois é sina ... caindo em época de férias fora de Lisboa, nunca festejo com eles estas efemérides.
E mesmo com o transcurso do tempo, aquilo que distingue o Kiko de hoje do Kiko de há já largos anos atrás, respeita apenas às alterações físicas inerentes à adolescência instalada.
Cresceu imenso no espaço de um ano apenas, encorpou como costumamos dizer, ganhou músculos que começam a definir-se, e espanto meu  ( não sei porquê, afinal ), a voz começou inevitavelmente a mudar !
Engraçado que tive exactamente a mesma surpresa quando foi a vez do António.  Ontem, à meia noite, quando o dia vinte abriu a pestana, lá estou eu a telefonar, para lhe dar o meu primeiro beijinho de felicitações.  Sempre  tenho  esta  mania  com  todos  eles ... fazer  o  quê ?!... 😂😂
E lá me apareceu o Kiko com respeitosa voz de homem ... ihihih
Levo  sempre  um  soco  no  estômago,  pois  é  então  que  a  realidade  nua  e  crua  me cai  à  frente :  o tempo já passou, depressa demais, e os putos já são gente grande a fazer-se à estrada !
Esta inevitabilidade da vida, este retrocesso impossível dos anos sempre me deixam então nostálgica, apreensiva e balançada ...
Mas nada a fazer.  Haja saúde, paz, alegria ... que a vida se faça mansa, que os sonhos e os projectos se vão concretizando, que os esforços desenvolvidos vão valendo a pena e que por aqui vamos estando, os que por aqui têm a sorte de ainda estar, pois mesmo um pouco afastados, nunca verdadeiramente o estamos no coração uns dos outros !

De resto, o Kiko continua a ser aquele miúdo feliz, alegre, sempre sorridente e bem disposto, aquele puto desinibido, resolvido e rodeado de um clube de amigos de todas as faixas etárias ... aquele que exprime um carinho e uma preocupação muito especiais comigo, que o levam a envolver-me no seu abraço enquanto me pergunta : " E a avó como está ?"

O Kiko vai iniciar o décimo ano e escolheu a área da Economia.  Brinquei com ele ontem, exortando-o a estudar muito, bem e depressa, pois careço de um gestor financeiro à altura, para endireitar os meus  inexistentes aforros ... 😁😁
Soltou uma gargalhada ... "pois é, a avó anda sempre em viagem !"...

Este, é o Kiko !

Anamar

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

" O SOL QUE ME FALTA ..."


 

Escrevo muito pouco, muito menos e  muito pior .  E sei exactamente o porquê disso.

Percebo-o claramente, quando me leio há anos recuados.
Não que eu não tenha o que dizer, não que eu tenha deixado exactamente de "sentir", não que eu desvalorize as minhas ideias ... Que, contudo, sempre foram muito mais direccionadas para o sonho, para a utopia, para as construções imaginárias criadas dentro de mim do que para a dureza da vida real, verdade seja ( essa, bastava-me olhá-la, afinal ... porque estava sempre ali à minha volta, se para lá eu  desviasse os olhos ... )
Talvez assim fosse, por defesa, talvez como necessidade, talvez simplesmente por pureza de alma.

É que, e essa a diferença abissal entre o que era e o que é, a minha disponibilidade para a emoção tem vindo a embotar-se com o transcurso da vida.  A minha capacidade de sonhar, de pintalgar a realidade com as cores generosas de outros tempos, entrou em franco declínio, como se a minha "caixa de aguarelas" tivesse secado.
A minha necessidade permanente de paixão e deslumbramento pelo que me rodeia, está asténica, carece de vitaminas no espírito e no coração ... e o amorfismo que caracteriza hoje a minha visão da vida, o cinzentismo até com que avalio o que me cerca,  retira-me a capacidade, a vontade e até a aposta de pôr no papel o tanto com que dantes eu lotava a alma ... Como se o clímax orgástico da escrita me tivesse abandonado !
Como se a minha ingenuidade de criança, aquela capacidade fantástica com que conseguimos tão facilmente abraçar o mundo na concha do nosso peito, se tivessem extinguido.  Como se a bonomia e a fé com que olhava as coisas, os espaços, os outros, tivessem estiolado e morrido inevitavelmente, como terreno devastado pelo fogo.

Sinto uma "falta de espaço interior", um vazio ( não sei se consigo traduzir fielmente o que isto seja ), uma falta de compaixão, de tolerância, um excesso de indiferença e um desaprendizado do enamoramento, do êxtase, e da aposta necessários à vida.
Não sei se existe um desencantamento objectivo, uma desilusão perante o caminho que percorro.  Não creio ser  propriamente consequência de insucessos, tropeços ou decepções, este meu estado de espírito.  Não são cicatrizes re-inflamadas, ou maleitas crónicas, não sei se é impaciência ou até egoísmo, talvez. Não creio que sejam problemas mal ou incompletamente resolvidos, embora afinal todos carreguemos um pouco disso mesmo, fruto dos destinos.  Não sei se é um cepticismo ou uma desaposta, como se já não valesse muito a pena enfrentar esta roda dentada e voraz que dia a dia nos vai engolindo.  
Não sei se aceite que é simplesmente a inevitabilidade do envelhecimento ... Será ??!!

A garra, a inconsequência, a gaiatice ... a irreverência, o atrevimento, a coragem ... o desafio e a força de agarrar a vida pelos cornos, sabendo que essa era a nossa escolha ... o meter a cara, o saltar a baia, o pular do rochedo  ( mesmo que de olhos fechados ) ... a utopia em suma, o seguir em frente achando que vale a pena, lutando para que valha a pena ... parecem ter-se perdido no tempo, sucumbido ao acomodamento dos anos ... a um cansaço que por vezes julgo absurdo.
E são determinantes da vida.  E são o oxigènio para se continuar respirando.  E são a poção mágica para se conseguir ainda manter o emaravilhamento, a força p'ra começar o dia por cada dia que amanhece, a receita pra se perceber o real valor de se estar vivo.
É essa lufada de esperança, esse sopro vital, esse cocktail vitamínico  ... essa chama de vela bruxuleante que parecem ter-me abandonado e deixado à minha sorte ...
E sinto uma raiva, uma fúria e um desgosto por não conseguir sacudir as penas e voar de novo, como aquela ave que se refrescou numa poça de chuva ... como se o afundamento no lodo sôfrego dum pântano fosse inevitável e me sorvesse para o seu interior sem que eu resista ... ou como se a cerração das "nieblas" fosse a armadilha que a vida me deixou na curva da estrada ... 

E não escrevo ... escrevo pouco e muito pior ...

Talvez se trate simplesmente de não possuir em mim a convicção de Picasso, a força anímica e o virtuosismo dos génios e sonhadores ... e me tenha remetido simplesmente à vulgar, comum e insípida "mancha amarela" !...
 


Anamar

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

" O TAL SÓTÃO ... "




Sensação estranha.  Muito estranha mesmo.  Uma sensação de circular por um espaço abandonado, escuro, desactivado, em que a poeira, a ausência de luz, a falta de circulação abundante de ar, o remete a um espaço meio moribundo.
Parece-me ter devassado um ambiente sonolento, ter entrado num sótão, numa cave, numa arrecadação pardacenta, bafienta e húmida ...

Tudo isto porquê ... pergunto-me ?  Porque experimento, aparentemente do nada, este surpreendente estado de alma ?
Percebo que uma série de coincidências ou situações meio paralelas convergiram para me fazer sentir assim :
uma amiga de há algum /razoável tempo, sem que contudo sejamos de contacto absolutamente estreito, "desapareceu-me" dos radares, inexplicavelmente, eliminando todas as tentativas de contacto através dos dois únicos números telefónicos que possuo, o dela própria e o da filha.  Não sei morada nem outra forma de aproximação, além da que tem funcionado entre nós.
O telefone estabelece a ligação, assume um estado de linha ocupada e desliga-se subitamente.
Trata-se duma pessoa com uma saúde frágil, sobretudo a mental, o que me acresce uma maior inquietação ainda ...

Também de uma familiar, aliás a única familiar que ainda tenho no Alentejo, já bem idosa e paciente de Alzheimer, nada sei, faz imenso tempo.  Sempre fomos como irmãs, no bem-querer.  Relações complicadas criadas por um filho, pessoa muito mal formada e inqualificável, inviabilizaram praticamente a comunicação existente.
A doença que lhe retirou toda e qualquer possibilidade de autonomia, cavou, por outro lado, um fosso inultrapassável e injusto entre nós as duas.  Assim, infrutíferas são as tentativas de contacto.  
Parece que já se fechou portanto também, a porta daquele lado ...

Hoje confrontei-me, como toda a gente, pela notícia do falecimento do Jô Soares. 
Vale o que vale, não era nada meu, nunca o vi sequer ao vivo e a cores ... contudo, este êxodo de figuras públicas que por isso, são sempre um pouco "nossas",  dado que atravessaram connosco uma época à qual também pertencemos, sempre me deixa com uma sensação desconfortável de orfandade.
Fizeram parte das nossas histórias, povoaram o nosso quotidiano, emolduraram duma ou de outra forma, as nossas realidades.  Habituámo-nos ao seu convívio ... e já foram tantas !!!
Por isso, parece que foi só mais um que fechou a porta e arrepiou caminho também ele ... apenas antecipando-se ... nada mais ...

Há pouco resolvi percorrer este meu espaço, acedendo a outros blogues e a outros conteúdos que de quando em vez gostava de seguir, em tempos idos.
Nada de muito exaustivo ... cinco ou seis blogues cuja leitura e conteúdos apreciava.
Pois bem, todos eles exibiam postagens que remontam a mais de cinco anos atrás ...
Não mais voltaram a ser mexidos !
A Covid rebentou de facto com tudo, e esta sensação de abandono reflecte bem o desinvestimento e a desmotivação dos seus autores.
De alguma forma, este é o sentimento que gradualmente tenho vindo a auscultar em mim própria, o que aliás se reflecte no tão pouco escrito nos últimos tempos.
Um dia destes, pressinto que encerrarei definitivamente o espaço que me acompanha há já catorze anos.

Relatei quatro situações que não sendo coincidentes me transmitem o mesmo tipo de sentimentos.  Uma sensação de portas a serem fechadas, uma sensação de ampulhetas a esvaziarem-se nas vidas, de silêncios e dormências a instalarem-se, de estradas com fim de linha a  chegarem-se mais e mais ...
Uma sensação de já não pertencer integralmente a isto por aqui, de o prato da balança  já  pesar  mais daquele  lado  que  deste ... de  qualquer  dia  já  ser  quase  somente  uma  estranha !...
Um desconforto de já não entender bem os valores, não saber já os códigos ou os requisitos p'ra viver com satisfação.  Um não saber já descodificar as linguagens e entender os sinais que me cercam ... Uma ausência crescente de sensação de pertença por cá ...
Uma falta de oxigénio, do "meu" oxigénio que me permita inspirar até bem ao fundo ...

E daí o cansaço, o desinteresse, a imperícia para viver dia após dia, como se na verdade eu esteja a mexer-me apenas no limbo de uma fronteira hermética e cerrada ...

Anamar

sexta-feira, 29 de julho de 2022

" RETALHOS DE PENSAMENTOS AVULSOS "



 Aqui por cima passa um avião.  Ruma ao aeroporto, já baixou o trem de aterragem e voa com a inclinação de quem perde lentamente altura, necessária para um poiso em segurança.

Estamos naquela parte da viagem em que me colo ao banco, que de costas direitas de acordo com as directrizes do comandante, se mantém vertical, normalmente já fecho os olhos, engulo em seco para desbloquear o efeito da pressão nos ouvidos e me agarro aos braços do assento, como se ali estivesse a minha "salvação" ...
Tenho pavor de avião, sofro desalmadamente quando as viagens se aproximam, mas tento racionalizar e obrigo-me a elas.  Porque, vendo bem, se assim não fosse, com as fobias que dei em inventar, à medida que vou envelhecendo, não arredaria pé da minha zona de conforto ... de que levo a vida a queixar-me, aliás !...  Incoerências do ser humano , quase sempre inexplicáveis !  
Afinal, estas coisas do domínio do psíquico quase nunca se entendem !
Mas pronto... ainda assim, sempre que um avião passa, espicho os olhos lá para cima, e eu, que acabei de chegar duma viagem longa e exigente, já seguiria com ele, fosse lá para onde fosse ...

Entretanto cheguei e adoeci com uma virose qualquer, manhosa, vulgo constipação de Verão.  Não tem cedido a umas coisitas que tomei, já melhorou, voltou a piorar.  Nada de maior, eu diria, apenas e isso é o que mais me incomoda, uma falta de energia atroz.  Não tenho febre, já fiz três testes rápidos da Covid, na expectativa de arranjar finalmente um nome pra esta coisa irritante que me incomoda, mas nada.  De Covid, nem sombra, portanto além de levar a vida a assoar-me, coisa que não lembro acontecer-me há infinitos anos, é este arrastar-me mesmo para as coisas mais elementares, que me tolhe.
Tudo é um esforço acrescido e só deitada ou sentada à fresca, é que me sinto no "céu" !

Será preguiça ? - interrogo-me.  Comodismo ?  Desculpas ... uma dose de uma espécie de justificativas pessoais pra me "safar" do que não me apetece ?  Será ??
Não pode ser só isso !
É verdade que um dos meus maiores defeitos é mesmo a preguiça, e uma submissão cómoda às rotinas confortáveis também me agrada muito.  Mas a falta de energia é real e objectiva, bolas!  
Aguardo melhores tempos, portanto.

Por aqui os dias seguem adiante sem um pingo de novidade. A rotina pura e dura re-instalou-se depressa.  As caminhadas estão em fase de reassunção, embora a fogo lento, pois representam um esforço acima do que estou a conseguir.  O calor, não ajuda, e esse está em plena época.
Aqui no meu prédio morreu entretanto uma vizinha de cento e quatro anos, a viver connosco há muitos e muitos.  Não era uma senhora de convívio diário, obviamente, até pela diferença de idades, mas fazia parte tacitamente do rol de vizinhos que aqui coabita desde o início do prédio.  E já vão sendo poucos os resistentes. 
E tudo continua indiferentemente igual.  O dia é de sol, de céu limpo, é mais um Julho em declínio, um ano a precipitar-se inexoravelmente em passadas de gigante para o seu fim ...

O tempo escoa-se.  Pouco estou com os meus.  Nunca há tempo.  As conversas adiam-se e requentam, as coisas perdem oportunidade.
A Teresa cresce. Qualquer dia percebê-la-ei já com ar de "rapariguinha", e perguntar-me-ei como não dei por isso ...
O António ... pasmo sempre, não sei porquê, onde foi buscar aquele ar e aquela voz grave de homem feito ?...
Usava fraldas ontem ...
A Vitória, de namorado oficial a tira-colo, com quem passeia pra cima e pra baixo assumidamente, com quem faz férias em Madrid e na casa do Algarve ... ficou portanto uma mulher ao completar os dezoito anos, parece ...
E até o Kiko perdeu já aquela inocência de miudinho.  Inevitavelmente faz-se ao futuro ...
Os tempos de convivermos proximamente, foram.  Os interesses diversificaram e o "figurino" familiar nunca permitiu uma aproximação gratificante.  
Hoje, encarno apenas a figura oficial da avó, tenho a certeza.  Existe um formalismo estranho entre nós, as conversas não deslancham, os assuntos não pingam.  Tornámo-nos todos meio estranhos uns dos outros.  Sou aquela a quem se telefona no "Dia dos Avós", invenção dos tempos actuais ... ou para me agradecerem um pequeno agrado trazido de fora, e mesmo assim, tenho a certeza que por detrás da ideia está a mãe, que tem que "mostrar serviço" ...

Enfim, um dia, como a D.Maria de Lurdes ( e muito antes dos cento e quatro anos ), também com sol,  chuva ou mesmo nevoeiro ... que importa ... seguirei adiante.  Afinal, morremos todos os dias um bocadinho, desde que nascemos ... e tudo continuará indiferentemente igual ... 
E a seguir a uma Primavera um Verão chegará, depois um Outono e por aí fora.  Os que ficam também vão indo, e a memória, a lembrança, a presença ... a imagem dos que vão, esbate-se, descolora e desvanece-se no nevoeiro das lembranças ...
E tudo se esquece, e tudo perde a definição e o sentido ... rosto de pai, de mãe, de amores e amigos ... É apenas uma questão de tempo !

Bom ... melhor ficar por aqui.  Isto, esta escrita sem norte ou rumo já está a descambar para o lado lunar da vida, e isso não é bom !

Fiquem bem e sejam felizes, aqui e agora !...

Anamar

sexta-feira, 22 de julho de 2022

" LÁ LONGE ONDE O SOL AQUECE MAIS ... ÁFRICA "

 


Falar sobre a Namíbia, descrever a Namíbia é manifestamente uma missão impossível.
Gostaria de o fazer, pensei mesmo ser capaz, mas não sou !  E não sou porque tudo o que eu conseguisse pôr no papel não passaria de uma descrição pobre, desajustada, descolorida e embaciada do que é aquela terra ! 
As sensações foram tantas, as emoções tão estonteantes, o cúmulo de beleza, de surpresa, de sonho e fascínio, tão poderoso, que me sinto entupida e incapaz de verter sequer um pingo de tudo o que me atola o coração e a mente ...

Acordei hoje a pensar que me falta o canto da passarada.
Não me falta a voz humana ... Essa, perturba-me e incomoda-me vezes de mais.
Acordei a pensar que me falta o sussurro do vento varrendo as dunas sem piedade, e moldando-as ao sabor dos milénios.
Acordei a pensar que me falta reouvir o bater das ondas tempestuosas na Costa dos Esqueletos, onde os barcos perdidos, naufragados ao correr do destino, dormem silenciosamente em história de eternidade ... Onde a espuma adorna o areal deserto, em rendilhado que ora se faz ora se desfaz, encenando imagens oníricas entremeio à bruma densa e misteriosa ...
Acordei a pensar que me falta o afago doce de pores de sol vermelhos, ou mesmo roxos, ou azulados, recortando a negro os perfis esfíngicos de árvores perfiladas, parecendo sentinelas na paisagem ...
E olhar o céu, completamente escurecido, enfeitado por uma poalha estelar, tão clara e brilhante como não vi céu nenhum em outro lugar ... 
E o Cruzeiro do Sul e Centauro, vigilantes ... ou mesmo uma lua cheia, a primeira super-lua de 2022, a Lua dos Cervos,  que escolheu viajar comigo até à Namíbia ... 

Hoje acordei a pensar que o vermelho daquela terra de África, um continente incendiado por um sol que quando brilha é quente de verdade, não descolou da minha retina, e que os sons da mata também não silenciaram nos meus ouvidos ...
As dunas impermanentes numa terra de areia que o vento rodopia à passagem, ou as rochas brutas e agressivas que se erguem numa terra de ninguém em grandes escarpas ou cordilheiras a mais de mil metros de altura, impressionam pela traça sinuosa, formando os canyons e os vales profundos. 
E porque tudo se revela numa natureza contrastante nesta terra, a planície deserta até onde a vista pode alcançar, garante que não há horizonte que a detenha.  
Às vezes, a miragem de uma linha de água ou dum charco desenhado, lá longe, far-nos-ia acreditar piamente assim o ser.  Engano!  Não passa disso mesmo ... uma miragem, em que a luz do sol, uma vez mais pinta até o que não existe, numa aguarela em três dimensões ...

E os bichos por ali andam.  
No Parque Nacional Etosha, as aves, os grandes e os pequenos mamíferos, carnívoros e herbívoros que não cansam do capim ou de folhas verdes de árvores tenras, dormem nas sombras de acácias meio despidas, ou buscam os charcos que ainda não tenham secado.
Aí, ao cair da tarde, ou ao romper do dia, se faz o ponto de encontro de gazelas, impalas, órixes, girafas, zebras, springboks, antílopes, gnus, kudus, hienas, chacais entre outros ... mas também os almejados " Big five", os cinco maiores animais da savana, estrelas fotográficas para quem adora a vida selvagem e a fotografia que a documente : leopardo, elefante, búfalo. rinoceronte e leão.
Só este, não conseguimos visualizar ...

Hoje acordei com o deserto do Namibe a dançar-me à frente dos olhos, com as areias infindas, planas ou onduladas, em que o "polvo do deserto" se espreguiça sem contenção.  
A welvichia mirabilis, com a sua longevidade absoluta ( existe desde o tempo dos dinossauros ), atravessa séculos, milénios, desafiando a eternidade.  
Espraiada nas areias, com duas únicas folhas anuais que podem atingir mais de dois metros, parece adormecida e vive do orvalho que consegue absorver pelas folhas.  É uma eremita espreguiçada ao sol inclemente ...
Só a título de curiosidade, o Rugby muito popular na Namíbia sobretudo entre a sua população branca, tem os seus jogadores apelidados de "Welwitschias" .

O deserto, haveria de olhá-lo percorrendo-o areias fora, subindo e descendo dunas, enterrando e desenterrando os todo o terreno, mas haveria de vê-lo também, num sobrevoo inesquecível.
Toda a sua geografia vista do alto, disseca um corpo vetusto percorrido pelas veias secas de linhas de água que podem quase nunca chegar ao mar ...
O por de sol a bordo do pequeno avião seria igualmente indescritível !

E houve a colónia de focas no Naukluft Park, e o Cape Cross  ou Cabo da Cruz onde a presença portuguesa deixada por Diogo Cão ( século XV ) se testemunha pelo padrão aí colocado ... houve a travessia simbólica do Trópico de Capricórnio,  e a visita a um assentamento de uma tribo Hereró ( uma das tribos existentes no país, tal como os Himbas e os Damara ) onde se comercializavam, à beira da estrada,  os produtos artesanais confeccionados pelas mulheres ... 
Houve também o Lago Oanob, zona de lazer,  rodeado pelas mansões dos magnatas dos diamantes, e ainda o Museu a céu aberto de inscrições rupestres, num fenómeno arqueológico com cerca de 2000 anos, em Twyfelfontein, na região do Kunene.  
Contabilizando perto de 2500 representações, é por isso uma das maiores concentrações de desenhos da África.  
Relatam extensivamente práticas rituais e da vida das comunidades caçadoras-recolectoras que na época habitavam essa região.
Gravadas e desenhadas nas rochas, ilustram rinocerontes, elefantes, girafas e avestruzes, além de pegadas humanas e de animais.  O leão também está representado magnificamente!
Vestígios arqueológicos ainda aí encontrados, mostram que na região, a presença humana data à Idade da Pedra, por volta de 6000 anos atrás.

Bom ... como se vê, falar sobre a Namíbia, descrever a Namíbia é manifestamente uma missão impossível!...
Gostaria, contudo, de vos ter dado uma insignificante aproximação.

A mim, falta-me o canto da passarada na savana e o silêncio deixado lá atrás.  Falta-me ainda a música de roda em noite fria em torno duma fogueira, com o céu de negritude absoluta, iluminado apenas pelas chispas das chamas espevitadas pela aragem da noite ... que jamais esquecerei !...




Anamar

terça-feira, 19 de julho de 2022

" REGRESSO ÀS ORIGENS ..."


6,50 h de 18 de Julho 2022, aeroporto de Frankfurt, local de escala entre a Namíbia donde cheguei e Portugal, onde chegarei.
Dia de céu limpo, azul e sol ainda tímido pelo despautério da hora.  Por isso ... sono muito,  depois de dez horas a bordo, num simulacro de noite medianamente dormida.
Estou num dos espaços de restauração do aeroporto.  Café precisa-se, e como tal, com tanto tempo de sobra entre os voos, usufruo a paz de mais de três horas de pausa, sem pressas.
À minha volta, neste espaço lotado de passageiros em trânsito, com uma música de fundo insuportável para a minha necessidade absoluta de silêncio, os telemóveis ocupam as mãos, os olhos e as mentes.  Lamentavelmente não há uma só alma que os tenha dispensado !

Namíbia ... pois ... 
Muitos acessos de vontade tive, de escrever sobre ...
Só que, verdadeiros momentos de paragem e lazer por conta própria, são coisa inexistente nestas viagens de grupo, em que as actividades programadas para cada dia, visam rentabilizar exactamente esses mesmos dias.
Por isso, fui absorvendo, arquivando, gravando o tanto de sensações e emoções que tudo o que o vivenciei me deixou no coração e na alma, se é que estes dois lugares realmente existem no ser humano...

A Namíbia foi, sem dúvida, o lugar perdido no planeta Terra onde a noção de infinitude se me tornou absolutamente clara e impressiva.  
Lá, terra sem limites ou horizontes, tudo se mede em milhões de anos e em distâncias incontáveis.
Lá, a beleza é tão excessiva que perturba, a liberdade tão avassaladora que embriaga, o sonho que se obriga a sonhar, sem tamanho ou dimensão ...

África é, sem discussão, um continente absolutamente carismático.
Não há outro lugar no mundo onde as cores sejam tão intensas, os cheiros tão absolutos, a luz tão inebriante e o silêncio, a interioridade e o intimismo tão imperativos.
O calor emanado do vermelho sanguíneo da terra que ora se pinta de ocre, de castanho ou mesmo de negro de acordo com a luz que a inunda, a primitividade e autenticidade da savana imemorial, a doçura da sombra das acácias onde os animais selvagens se acoitam em sono de sesta ... a paisagem que ora é e ora não é, numa impermanência total mas numa consonância e perfeição tão determinadas, mostram ao ser humano a sua real dimensão : um insignificante grão de areia, nesta construção fantástica e incomparável que é a Vida, nesta engrenagem magnificente e mística que é o Mundo em que vivemos, a Natureza de que usufruímos !!
Tudo nos remete para a essencialidade primordial, não deixando espaço p'ra dúvidas ou veleidades ...

Tudo isto a Namíbia me sussurrou ao ouvido, tudo isto a Namíbia me desvendou despudoradamente, desde o deserto à selva, da montanha escarpada às areias imprecisas das dunas imparáveis, do mar tempestuoso às cordilheiras e canyons escavados por águas, que também elas se esquivam e só correm quando o destino assim o quer !
Tudo isto tornou para mim a Namíbia, um convite irrecusável e sempre presente !!!

Anamar 

quinta-feira, 30 de junho de 2022

" O ESPÍRITO DA COISA ..."

 


Dei-vos conta da iminência de uma viagem, uma outra viagem, nesta incessante busca de qualquer coisa que eu própria não defino.  
Elas, as viagens, são a necessidade de colmatar um qualquer vazio que sempre me atormenta, a ânsia de encontrar alguma coisa ou de repor apenas coisas que já senti, já experimentei ... já vivenciei !  Como se alguma vez, as coisas se pudessem repetir no tempo e no espaço !...

Sei que se ousa dizer que a mesma água não passa duas vezes debaixo da mesma ponte ... e não estou equivocada. Sei exactamente que o que na verdade busco é o reencontro comigo mesma, naquela que eu era há anos atrás, a minha alma e o meu coração remoçados, a reposição do meu entusiasmo, e da minha alegria de então ... como se isso pudesse ser possível ... 
Sei exactamente que o que na verdade busco é a capacidade de sonhar outra vez, como então, é a adrenalina que me tomava e me projectava oniricamente em cada viagem que fiz ... é a juventude e a garra que se perderam nos tempos e que já não detenho mais ...
Essa sim, a utopia com que me trapaceio !... 
E alegro-me, e engano-me conscientemente, e iludo-me como a criança a quem calamos o choro com uma guloseima ...

Por isso, nos últimos tempos tenho viajado muito mais, com uma urgência sentida ... como se não houvesse amanhã !  E nada é o que foi ...

As viagens somos nós, mas são sobretudo os contextos em que as fazemos.  De acordo com as vivências em que mergulham, assim nos representam e transmitem emoções diversas.
Neste momento refugio-me no que olho, no que admiro, no que cheiro ... As cores e os aromas embriagam-me, os silêncios acariciam-me, e é como se conseguisse desligar-me totalmente do que me envolve, de quem me envolve ... Fico eu, apenas eu, como se sozinha comungasse da envolvente que me embala ... e nada mais me interessasse. Como se não existisse mundo à minha volta, como se a minha linguagem interior fosse intangível, impenetrável, inalcançável ...
E é isto que experimento em cada momento, em cada volta de caminho, em cada horizonte desenhado,  em cada sensação que me sufoca ...
Não divido, não partilho ... guardo p'ra mim, aferrolho no meu peito tudo o que acho ser único e inatingível por outrém ... Ele é o espólio do que experiencio, no pedacinho de mundo cujas portas encerro de seguida ...
Por isso, busco primordialmente a natureza p'ra mergulhar, p'ra me entupir, p'ra me alienar ... p'ra me extasiar ... em silêncio ...

E pronto, é neste contexto que vou, que parto uma vez mais, como se tivesse encontro marcado comigo mesma  na miragem que espreita por detrás daquela duna ... ou pudesse voltar a aspirar o aroma adocicado das flores dos trópicos, ou pudesse virar outra vez a ampulheta brincalhona dos tempos !...


Anamar

terça-feira, 28 de junho de 2022

" RETORNANDO ... "



Ora bem ... já aqui não vinha há um ror de tempo !
Sempre me penitencio pelo facto, sempre me culpo, me acuso por talvez não me esforçar ... bla bla bla ... mas o facto é que eu própria não consigo entender a situação ... entender- ME sobre a situação.
Não tenho assunto sobre o que escrever, não valorizo o que escreveria.  Sempre entendo que se escreve sobre tudo, que se escreve de qualquer forma sobre tudo, o que logicamente me desmotiva a fazê-lo, pois ou valeria realmente a pena, por qualidade, novidade, assertividade de algo que eu debitasse, ou ... já tudo foi explorado, dissecado, abordado por quem tenha na verdade "autoridade" na matéria.

Bom, talvez nada mais seja do que um reflexo de uma certa indiferença e passividade minhas, face à vida nos últimos tempos, em que claramente dobrei uma qualquer esquina na minha estrada.  Sem uma justificação, sem uma razão, sem um motivo objectivo, parece que passei apenas a deambular ou pairar por aqui, e não a viver, ou a ser intérprete e actora do meu próprio destino.
Poucas coisas me movem, poucas coisas me aceleram os batimentos cardíacos, poucas coisas me mexem os interiores, como se a minha capacidade de emoção, de emaravilhamento e de entusiasmo, estivesse embotada. Parece que enfiei por mim abaixo uma qualquer carapaça, um revestimento de distanciamento, indiferença e insensibilidade face ao mundo onde vivo.
Em suma ... anestesia ... parece que efectivamente a minha quota de sensibilidade perante as coisas, as pessoas, os acontecimentos, está objectivamente anestesiada.  
Até os sonhos deitaram p'ra sesta e se esgalgaram por aí ...

Bom, entretanto muitas e muitas coisas foram acontecendo neste meu período de ausência literária.

A guerra, a maldita guerra na Europa, contra todos os vaticínios iniciais, perdura e esboroa diariamente um país totalmente esfrangalhado e em pedaços.  Pouco haverá já para destruir, não se consegue entender a devastação infligida a pessoas e bens. Não se consegue sequer imaginar em boa verdade, o genocídio a que aquela gente foi e é submetida !
E tudo continua em aberto, a desproporção militar de homens e armamento entre o exército russo e as forças ucranianas é absolutamente abissal, o que torna totalmente insuficiente toda a ajuda disponibilizada pelo ocidente.  Enquanto isso, o sofrimento, a dor, o horror em suma, continuam a alastrar em pleno Séc. XXI aqui, no velho mundo!
Mas também tudo isso já não motiva como no início, o cidadão comum dos países espectadores !
É injusto mas natural, creio.  O ser humano é exactamente assim ... infelizmente ...

Entretanto, uma das coisas que ainda e sempre me empolga, é a possibilidade de viajar.  É sempre algo gratificante, preenchedor, emocionante, poder conhecer algumas micro-fatias deste nosso planeta.  Poder partilhar novas realidades, experiências inovadoras, contactar novos lugares e novas gentes.  Fugir daqui, fechar a porta e acordar lá, onde quer que seja, a muitos e muitos quilómetros de distância, lá do outro lado do Mundo, vivendo realidades totalmente distintas das desta vidinha cinzenta e igual que diariamente arrastamos pelo meio das mesmas rotinas ...
Uma viagem um pouco diferente do estilo que costumo privilegiar, desta vez ainda assim uma viagem a que apus reticências no início, e de que viria a gostar muito no lavar dos cestos.  
Itália ( Nápoles, Pompeia, a Ilha de Capri ), com o sul e a sua maravilhosa Costa Amalfitana, desde Sorrento, Positano, Amalfi e Ravello, haveria de encantar-me e surpreender-me, bordada e engalanada que é, encosta acima, e onde o colorido das habitações encarrapitadas a pique sobre as escarpas do Mar Tirreno, lembra um presépio que contrasta com o azul intenso das águas serenas a seus pés !

Agora, nova viagem se aproxima.  Dentro de poucos dias novo sonho começará a concretizar-se.
Uma ingressão num continente onde ainda fui muito pouco, servirá para que eu mergulhe no místico coração de África.  A Namíbia, da savana ao deserto, a Costa dos Esqueletos ou as míticas dunas de areias vermelhas contrastantes de sombras e luz, esperam-me com as cores, os cheiros e os pôres-de-sol inesquecíveis e inigualáveis, que só África sabe proporcionar ...
Quem viu o filme "África minha", saberá do que falo
Será uma imersão numa natureza inóspita, num país com uma fraca densidade populacional, onde a terra é muita e as gentes são poucas ... com uma natureza versátil, indómita e imperativa !
Uma terra de silêncios, de liberdade, de horizontes longínquos, sem limites ou freios ... terra com princípio mas sem fim ...

" Viajar é mudar de roupa à alma "

        Mário Quintana

Falarei e contarei como foi ... assim o espero !

Anamar