segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

"OUTRO AMIGO NOS DEIXOU..."


Em criança, o único animal permitido em casa, foi um canário, que por ser um cantor exímio, amoleceu o coração da minha mãe...
Vivia ao tempo em Évora, e o canário passava os dias usufruindo ar livre, sol e boa vista, porque tínhamos uma varanda enorme, onde a minha mãe se rodeou...do canário, claro, e de tudo quanto era sardinheira (tenho que esclarecer que até aos dias de hoje, a minha mãe tem fixação por sardinheiras)...
Lembro que adorava as férias e o tempo passado em casa dos meus avós maternos, numa pequena vila perto de Évora, onde, desde o burro, à galinha e pintainhos, patos, ovelhas, lógico que também cães e gatos... havia de tudo...
Adorava ir com a minha avó ao galinheiro recolher os ovos num cestinho....e por isso nunca corri o risco de achar que um frango é aquela coisa que se vende nos super-mercados....

Casei e casei com um homem, que apesar de oriundo do meio rural (os meus sogros sendo modestos agricultores da Beira Alta, detinham a tradicional panóplia de bicharada, ou seja, da galinha às vacas, passando por cães, gatos, coelhos, etc...tudo existia naquela casa de lavoura), detestava a ideia de ter animais em apartamentos.
Defendeu sempre que, numa vivenda, tudo bem...num andar, nem pensar. Não era portanto como aquela rábula do Raul Solnado, como por certo se lembram, que punha a vaca Matilde na varanda para dar leite fresco!!!!.....
Bom, e por isso foi passando o tempo, e o máximo permitido, eram aqueles horrorosos bichos da seda, quando as crianças, na primária (é o destino!...),têm que aprender as metamorfoses do bicharoco. Devo dizer que sempre me fez "frenicoques" aquela criação!

Tenho duas filhas, completamente antagónicas nesta matéria; enquanto que a mais velha segue em opinião o pai, a mais nova, se pudesse vivia rodeada de bicharada.
Nunca esqueço que quando estávamos na Beira e a vida corria solta, desde ouriços, grilos, toupeiras...toda a sorte de animais domésticos, eu sei lá...em tudo ela mexia e com tudo ela brincava. Lembro-me pelo menos de dois episódios que a retratam aí pelos seus 5 ou 6 anos.
Um belo dia resolveu oferecer-me um presente. Numa daquelas caixas de ourivesaria colocou algodão, e 2 ou 3 ratos acabados de nascer. Fez o presente com papel e laço e veio contentíssima oferecer-mo...Como imaginam, "adorei"!...
Numa outra vez, andava com muito cuidado com uma caixa daqueles fósforos grandes, julgava eu que vazia....mas não. Explicou-me então que lá dentro estava um grilo que tinha apanhado, e um pirilampo que era para dar luz ao grilo...
Cursou um ano de Veterinária, embora tenha derivado para outro ramo.

Com a vida a avançar, começou a "cegada" das incursões junto do pai, para ter autorização para : primeiro ter peixes (em aquário de água fria)...depois, peixes em aquário de água quente, com maternidade, termómetro e todos os precisos, tartarugas e hamsters com as respectivas instalações, periquitos e canários de várias raças e cores (cheguei a ter vinte e tal ou mais, canários e periquitos, com os ninhos as criações sucessivas, etc).

Chegado que foi o topo possível da pirâmide (em termos de complexidade) de bichos permitidos...iniciou-se o "ataque" à existência de gato.
Um rotundo "não" manteve-se, até que o meu pai faleceu e eu entrei em depressão profunda. Eis que, nada melhor para me ajudar a sair do "buraco", do que um animal carinhoso que me ocupasse os momentos de maior tristeza ......e patati e patata!....
"Caio" em fazer anos, e eis que surge a bela da Catarina com um cestinho acolchoado, um enorme laço de fitas, e para completar os parabéns, lá dentro, uma coisa aí de vinte centímetros, tipo bola de pêlo, com uns olhões azuis que nem um céu ensolarado,  que não descansou enquanto não saltou da "prenda", não foi bisbilhotar tudo, trepar ao que já conseguia (o que denotaria mau "presságio")....acompanhado sempre duns ruídos, tipo um rapaz na mudança da voz...
Aquilo não era miado, não era grunhido....era assim uma coisa à sua imagem e semelhança....
Vinte centímetros de gato, que é como quem diz, vinte centímetros de "Óscar"....que adoptei, como me competia, até ao dia 30 de Julho do decorrido ano, em que nos deixou, pelas razões que aqui contei na altura.

O Óscar entrou à revelia do "dono", o "dono" saíu amuado. Foi para a outra casa da família, na espectativa de que entre gato e marido, eu escolhesse, obviamente marido.
Eu escolhi gato!!...
Ao fim dum mês, desamarrado o "burro", o dono regressou....mas ficou para todo o sempre na lista negra do Óscar!...

Algum, não muito tempo depois, cursava a Catarina o primeiro ano da Faculdade de Veterinária, enamorou-se de um coleguinha que era alentejano.  Estudava como ela, Veterinária, e dividia com mais uns quantos colegas rapazes, um apartamento ali para as Olaias.
Coincidiu que o Jaime fez anos  quando a Catarina ouviu uns ruídos aflitos e continuados, vindos do motor de um carro.
Encontrado atempadamente o dono do carro, e eis que de lá saíram outros quinze centímetros, mais coisa menos coisa, de gato.
Carecia ser-lhe dado um destino, dada a desprotecção do animal. Estudadas as hipóteses, ouvidas as negações, falhadas as tentativas de acordos, restava o quê? A residência universitária do Jaime!
E pronto, a Rita (nome que lhe foi posto quando todos pensavam ser uma "menina"), seguiu para Lisboa.

Mas o Jaime ia frequentemente, de fim de semana à terra, e a Rita vinha para onde???
Bingo!....para casa da "sogra" pois então!!!! (também, quem tem um, tem dois, não há nenhum problema!!....)

Os "fins de semana" foram-se tornando cada vez mais compridos, as "judiações" que a maltinha lá de casa fazia ao pobre do bicho, cada vez maiores.....Meses depois os amores Jaime-Catarina, como os amores de Verão, terminaram....."separação de bens".........com quem fica a Rita, com quem?????
Com a "sogra" pois então!!!! (também, quem tem um tem dois.........)!

Desta vez, o "dono" já nem se mexeu....claro!!

Por escala hierárquica.....chegou a vez de se "lutar" pela posse de um cão!

Aí o "dono" amarinhou pelas paredes e disse: "só por cima do meu cadáver!"....

A casa passou a ser então, apenas apeadeiro ou como direi, local de estágio de cães, cadelas, grandes, pequenos, abandonados, até terem donos definitivos, mas ficar mesmo...não!

Até que, na praceta ajardinada que fica nas traseiras da casa da avó, apareceu um rafeirote branco (os veterinários pomposamente chamam-lhe cor "pêssego" - nunca percebi tal nomenclatura), perna curta, ou seja, baixote, com uns olhos negros lindos.
Era refilão, porque se armou em "dono" da praceta, mas corria dócil e afectuoso para os ossinhos de galinha, ou restinhos de carne, que a avó que já tinha sido sensibilizada para a questão, lhe dava, à janela do seu rés-do-chão.

A avó, que quando só era mãe, não tinha o coração de manteiga das avós....começou a ver o Gaspar dormir à chuva, encobrindo-se como podia debaixo da copa precária das árvores da praceta, começou a ver maltratarem o Gaspar, quando ele, "arruaceiro" que sempre foi, fazia "voz" grossa a quem atravessava a praceta....
Dizia "que lhe doía a alma" ver ali o animal!!!!

Ora, "dor de alma" é coisa que a Catarina não suporta, se se relacionar com algum animal....
Por isso, depois de umas férias da Páscoa na Beira, com a avó bem "cozinhada em banho Maria", ao regressarmos, e porque o Gaspar estava saudoso dos ossinhos de galinha, daquela benfeitora do rés-do-chão, nada como evitar-lhe possíveis doenças de má nutrição ou frio....e o Gaspar passou a ser o novo hóspede daquela senhora, que quando era só mãe e ainda não tinha o mel das avós, só tolerara um canário....

Isto já lá vão talvez treze, catorze anos!!...

O Gaspar foi tratado como um príncipe nos treze, catorze anos, que viveu na nossa família...
Era extremamente meigo, obediente, inteligente ("só lhe falta falar" - dizia sempre a minha mãe...).
Tinha um tratamento VIP... acendia-se o irradiador para o Gaspar não ter frio, tinha ração de primeira...e não descolava daquela que efectivamente ele elegeu  (e com toda a justiça) como dona, a minha mãe, sendo uma sombra dela por todo o lado onde ela andava....
A paixão foi recíproca, ao ponto de eu ouvir da boca da minha mãe ( que não quer morrer por nada ): "Eu só pedia a Deus que me levasse no mesmo dia que ele"!!!.....

Há cerca de um ano, o Gaspar contraíu um problema respiratório complicado. Apesar de medicado pelos melhores veterinários, estava em risco de fazer um edema pulmonar, a qualquer momento.

A minha mãe não conseguia dormir calmamente, há largos e largos meses, porque a tosse do cão e a prostração em que ficava por cansaço, a impediam de dormir...
Então, sentava-se na cama e mimava o Gaspar, como se faz a um bébé, até que de novo ele adormecesse...e isto repetia-se noite após noite, várias vezes por noite...

A minha mãe vive sozinha, não muito perto de mim. Tem quase oitenta e nove anos.... diz que a vida tudo lhe tem levado....
Ontem levou-lhe mais "um pedaço de si....o seu companheiro Gaspar..."

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Emocionei-me!
Adorei a tua crónica...uma história de vida com animais e humanos à mistura, como só tu sabes contar.
Continua cá estarei na linha da frente para ler estes teus textos cheios de vida e de paixão.

Ontem acabei por me debater com uma crise respiratória nem eu sei bem porquê...

beij
Maria Romã

anamar disse...

olá Maria Romã
Mais uma perda...todos ficámos destruídos, embora a minha mãe quase com os seus 89 anos esteja de facto, desfeita.
Tenho sérias preocupações inclusive com a saúde dela...
Obrigada pela força que sempre me dás...Beijinho grande
Anamar