sexta-feira, 5 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 85





O ser humano tem uma capacidade resiliente espantosa, e uma rápida adaptabilidade a tudo, neste mundo !
As piores coisas, as experiências mais difíceis e dolorosas de ultrapassar, acabam por ser assimiladas e incorporadas mesmo, nas nossas vidas, em tempos por vezes espantosamente record.
Por esse motivo, a capacidade regenerativa, a capacidade de superação e a capacidade de encaixe de novas realidades, permitem ao Homem continuar a viver e a reinventar-se perante situações limite, eu diria quase com alguma normalidade.

O cataclismo que tem varrido o planeta, é de alguma forma, um exemplo disso mesmo.
No início da catástrofe, quando de epidemia passámos a pandemia devastadora, percorrendo o globo de oriente para ocidente, de sul para norte, semeando o terror, a dor e a morte em todos os humanos, as pessoas, num registo catatónico provocado pelo pavor bloqueante que as dominava, eram animais encurralados, acossados numa luta contra um inimigo desproporcional, desconhecido, invisível e cobarde.
Vivíamos em permanência "pendurados" das notícias, sofríamos com elas, aterrorizávamo-nos perante a imagem apocalíptica do que parecia aguardar-nos sem escapatória ( sendo apenas uma questão inevitável de mais ou menos tempo ), solidarizávamo-nos no sofrimento e sofríamos  brutalmente com todos os povos de todos os continentes, raças e línguas ... não dormíamos com tranquilidade, condicionámos as nossas vidas em figurinos que nos amputaram a paz, a alegria e a saúde ... o sobressalto era permanente, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas ... e tínhamos p'ra nós, grosso modo, numa visão determinista arrasadora, que mais cedo ou mais tarde, chegariam estes, aqueles e aqueloutros sintomas de que o maldito nos apanhara de jeito ... e aí ... engrossaríamos as estatísticas, simplesmente ... sem remédio que nos valesse !

Este pesadelo  couraçado, musculado, paralisante, enfraqueceu-nos, destruíu-nos, adoeceu-nos.
Pôs à prova, em permanência, do que éramos e do que não éramos capazes, experimentou-nos a capacidade reactiva, o nosso instinto de defesa e mesmo de sobrevivência, colocou-nos frente a nós mesmos  num desafio de forças ... ou reagimos, ou estaremos definitivamente perdidos ... ou paramos e reflectimos, ou morreremos na praia ...
E aí, havia seriamente que escolher qual o trilho que avisadamente deveríamos percorrer.

E chegámos ao hoje.
Volvidos quase quatro meses desde as primeiras "chuvas", e tendo passado por todos estes estádios ( eu e certamente os outros também ), percebo que me fortifiquei interiormente. Percebo que ganhei um distanciamento emocional, uma racionalidade construtiva ... que cresci, ou que pelo menos amadureci psicologicamente ... que me fui despindo aos poucos do fantasma do medo que tanto me martirizou quando a perplexidade face às realidades, era uma constante ... quando a confusão no coração e no espírito me tolheu os passos p'ra caminhar.

Ou seja, arranjámos todos, creio, mecanismos de defesa para podermos prosseguir  no que vier a ser o nosso destino, ganhámos arcaboiço para enfrentarmos as dificuldades que ainda virão, e formas de encararmos mais positivamente e relativizarmos, o desenrolar das situações.
Hoje dizemos ... de ontem p'ra hoje "só" houve dez óbitos... "só" há sessenta e quatro internados em cuidados intensivos ... "só" surgiram  trezentos e setenta e sete novos casos...
E ao fazê-lo, temos sempre presentes comparativamente, outros números, outras estatísticas, a expressão dramática e assustadora de outros países ... e por isso, pouco mexem connosco já, os números chegados das actualizações diárias ...
Começámos a banalizar as estatísticas, começámos a habituar-nos a viver com elas, começámos a insensibilizar-nos com a nova realidade, com a nova tipologia existencial de que agora fazemos e faremos parte  por um futuro muito longínquo, certamente .... por resiliência, adaptabilidade ... ou talvez simplesmente por cansaço !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

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