sábado, 13 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO





Faz hoje três anos, a esta hora passeava-me eu por Alfama, numa tarde solarenga de calor, céu azul e turistas nas ruas e pracinhas, em busca da tradicional animação em honra de Sto.António, padroeiro de Lisboa.
Lembro uma cidade cheia, não só nos bairros populares, mas mesmo no coração da capital.  Lembro o Rossio, o Terreiro do Paço, a Avenida, a zona ribeirinha, por todo o lado deitando pelas costuras a alegria, a animação, a música a rodos, as gargalhadas, os grupos em animado cavaqueio ...
Lembro as tasquinhas, os fogareiros nas ruas, as esplanadas improvisadas em cada canto, o cheiro das sardinhas a assar, as grelhadas, o tinto a correr ... a cerveja, a jinginha ... as farturas ...
Lembro os balões de papel dependurados das grinaldas e festões, num dossel perfeito nos céus das vielas e dos becos ... nas escadinhas e mansardas ...
Lembro as sacadas com as sardinheiras em flor, os vasos de manjericos com o cravo e a quadra alegórica ...
E de repente, num qualquer nicho, num qualquer recanto, numa qualquer esquina espreitava um trono de Sto. António e os restos do que fora uma fogueira saltada ... uma alcachofra florida ...
A procissão desceu às ruas, num percurso que terminou na capela do Santo, junto à Sé.
Pelo meio das varandas engalanadas com as melhores colchas, o povo em recolhimento religioso, os foguetes pelo ar e a banda a fechar o cortejo, a procissão foi pelo caminho, integrando as imagens dos diferentes outros santos, venerados em todas as igrejas por onde foi passando e parando, e que completaram o cortejo.
Os andores de S. João Baptista, S. Miguel Arcanjo, Sto. Estêvão, S.Vicente de Fora e Santiago Maior, todos eles com ligação e significado na vida de Sto. António, são sempre transportados por mulheres.
No largo da Sé, os noivos de Sto.António casados nesse mesmo dia pela manhã, numa cerimónia que faz parte da tradição da cidade, esperavam a chegada do Santo e depositaram os seus ramos nupciais nas grades da capelinha, aos pés da imagem, como homenagem, gratidão e busca de protecção e sorte, para os laços então juramentados ...

Eu perambulei por ali.
Lembro que estava aflita, preocupada com o nascimento da Teresa que viria a acontecer dois dias depois.  Existindo problemas com a colocação da criança, o atraso que já se verificava, não seria de bom augúrio.
Nesse dia, a minha filha, no seu estilo habitual, ainda não decidira onde a criança iria nascer, sendo que a situação era delicada e enfermava de algumas preocupações.
Lembro, que embora sendo agnóstica, e vá-se lá saber porquê ... à passagem da imagem de Sto.António, emocionada e frágil, elevei-Lhe  por isso  um estranho pedido de protecção, num gesto incoerente, utópico e de alguma forma, despropositado.
Comportamentos  humanos  que  não  se  entendem,  não  se  explicam ... e  custam  a  aceitar-se ...
Mas foi exactamente assim ... confesso !!!

Este ano, "Alfama está morta" ... desabafo de uma moradora, que li há pouco.
Com a pandemia que vivemos e muito embora estejamos num período de desconfinamento, todos os arraiais, todos os eventos que implicassem aglomeração de pessoas e consequente desrespeito do distanciamento social exigido, foram cancelados.  Não se realizaram as marchas populares na Avenida, não houve casamentos, nem arraiais, nem tasquinhas nas ruas, nem fogueiras, nem tronos, nem música ou sardinhas ...
E a procissão, que desde o século XVIII sempre fez parte da História de Lisboa, também não saíu à rua !

Os manjericos, este ano quase todos virtuais, chegam às nossas casas, através dos amigos que connosco têm dividido este inferno ! Como um miminho, no apoio de todos para todos !
Até o Santo, tenho a certeza, estará mais triste e descoroçoado, a achar que os lisboetas o esqueceram na capelinha onde reside por todo o ano !!!

Também por tudo isto, 2020 ficará lamentavelmente para todo o sempre, nas histórias inolvidáveis da História que vivemos !!!



Anamar

Sem comentários: