quinta-feira, 4 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 84



Hoje, matematicamente dia 84 !

84 no cômputo total, embora nos últimos dias eu não esteja a escrever com nenhuma regularidade as minhas crónicas que presumiam ser diárias.
Quebrou-se esta cadeia continuada de elos presos uns aos outros, quantos os dias que em procissão nos foram preenchendo a vida, nesta aventura em que fomos compulsivamente lançados.
Estamos a vivenciar já, o período do desconfinamento decretado pelas autoridades políticas e da esfera da saúde.
Um desconfinamento totalmente monitorizado, observado à lupa e analisado com todo o rigor que a gravidade da situação, nos impõe.  Um rigor acautelado, sob suspeição constante e permanentemente policiado, por forma a obstar que uma qualquer desbunda - de alguma forma compreensível, em pessoas sujeitas há excessivo tempo a vidas totalmente espartilhadas, desconformes e consequentemente alteradas - ponha tudo a perder, na situação pandémica no nosso país, até agora controladamente contida nos números do flagelo.

Desde a primeira hora ... eu diria antes da primeira hora, já eu, incluída numa considerada faixa etária de risco, me auto-confinara a uma reclusão praticamente total, visando o distanciamento voluntário de segurança, a nível da comunidade.
Restringi os meus movimentos ao indispensável e inalienável, por forma a manter-me razoavelmente sã, dentro do figurino possível.
Deixei de sair de casa, de fazer a vida social que sem ser excessiva sempre mantive, concentrei toda a aquisição dos bens essenciais num único dia, a fim de evitar um risco de contágio acrescido nos locais de compras ... e apenas mantive a caminhada três vezes por semana, por razões de salubridade, repito, física e mental.
E ainda assim, porque a mesma é feita na mata de que já vos falei vezes sem conta, onde, sendo um bosque totalmente natural, não existe nenhum risco de me cruzar com demasiadas pessoas.
E só !

A minha filha mais velha ( excessivamente cautelosa e hipocondríaca ) e família, apenas tive o grato prazer de ver à distância de um patamar de escada, ou da altura dos sete andares onde habito.  E, se me não falha a memória, por duas ou talvez três vezes apenas ...
E era aquela coisa, doída e triste, eram os sorrisos amarelos encobridores da vontade louca do abraço, ou mesmo do beijo que se fizesse à distância ... Não mais !
Tirando isso, a chamada vídeo, as tecnologias de recurso, tentavam trazer o longe p'ra perto.  Mas nem como panaceia serviam !...
A minha filha mais nova, mais descontraída talvez até por deformação profissional na forma da abordagem das coisas, não restringiu totalmente a nossa aproximação.  Ao contrário, e obviamente com os devidos cuidados, apareceu uma vez ou outra, trouxe a Teresa, e permitiu um contacto mais próximo.  Até porque, em última análise, a criança ficará em breve comigo, em períodos de trabalho da mãe que já reiniciou a actividade hospitalar.

E assim se desfiaram os quase três meses desta vida anormal, castradora, injusta e insensível às emoções, aos sentimentos, às dores e a toda a panóplia mortal de devastação psicológica em cada um de nós.
Como me tenho aguentado, nem eu mesma sei.  Como tenho suportado esta existência presa por arames ... também não.  Tenho-a vivido como uma prova de resistência, como uma situação limite requerendo "endurance",  como uma espécie de desafio à minha capacidade de superação, equilíbrio, disciplina interior, como teste de aferição à minha coragem e manutenção da esperança e alguma fé em melhores dias vindouros.
Hoje, digo um basta neste rigor excessivo e desproporcionado.
Tenho para mim, que o êxito da contenção desta tragédia, passa apenas pela assumpção de responsabilidades individuais e não mais.
Se todos fizermos a nossa parte ... dos "maiores" aos mais jovens ... posicionando-nos sempre com seriedade, precaução, rigor e sem cedências ou facilitismos no enfrentar do risco que se mantém permanente, como sabemos ... teremos certamente sucesso nos resultados.
Afinal, o vírus será um passageiro permanente desta nossa viagem ainda por muito e muito tempo seguramente, com o qual teremos de aprender a conviver ...
O medo apenas nos tolhe, destrói e incapacita.  E não poderemos / deveremos ficar confinados a vida toda, sob pena de morrermos da cura e não da doença !...
Então, vamos encará-lo de frente, com determinação e a convicção de que iremos ser seguramente  mais fortes do que ele !

Anexo aqui um texto um pouco a propósito do que aqui escrevi, da autoria do Dr. Eduardo Sá, eminente psicólogo, psicanalista, professor e autor, que merecerá certamente a vossa atenção, e fará eco provavelmente, das convicções de muitos de vós :


Daqueles de quem se fala como se fossem "criancinhas"

Chega de "velhinhos". Daqueles de quem se fala como se fossem "criancinhas". E em relação aos quais, de repente, no lugar da admiração e do respeito, ficasse a condescendência e o paternalismo.
Chega de "velhinhos". Daqueles que, no início da quarentena, eram descritos como se parecessem estar todos tolos e não medissem as consequências do confinamento. E que, agora, devessem estar todos confinados, por tempo indeterminado, por serem uma "população de risco". Em relação aos quais parece que nem sempre se pergunta que custos pode ter, para o seu equilíbrio, essa ideia que faz com que, para muitos de nós, velhice e confinamento perecessem casar tão bem.
Chega de "velhinhos". Daqueles que são "arrancados" do seu mundo, da sua casa e das suas relações e são colocados em casas comunitárias a que se chama "lar" ou "casa de repouso". E que, como se não bastasse o esdrúxulo dessa designação para esses lugares, nalguns casos, têm no seu nome "eterno descanso", "paraíso” ou "céu", por exemplo. Como se as pessoas não tivessem a noção que, de lá, nunca regressam a casa. E como se estivessem todas tão entretidas que nunca se deprimissem ao ter consciência daquilo que se passa com elas, das raras visitas que têm numa semana ou da forma como, em função daquilo que esperariam da família, se sentem na mais corrosiva solidão.
Chega de "velhinhos". Daqueles de quem se fala como se estivessem, agora, a suicidar-se mais, nos lares. Como se, não sendo isso, quase mais nada acerca deles parecesse merecer a nossa preocupação. Como se isso, sim, fosse um alarme (e é!). Mas a depressão em que muitos vivem, todos os dias, nem por isso é o que os faz morrer, para a vida, quase em silêncio. Nem o modo como adequam o discurso a um certo tom de subserviência não fosse importante. Ou a sobremedicação pela qual muitos passam. Ou a forma como nem sempre são tratados como pessoas (mas como "velhinhos").
Não, o mais importante dos nossos actos para com os "velhinhos" não passa por não conseguirmos imaginar que, mais tarde ou mais cedo, seremos como eles. O que, sendo ainda muito centrado no nosso umbigo, já não seria mau. Mas pela dificuldade de nos colocarmos no lugar deles. De sentir com eles. E de (ao menos) imaginarmos o seu sofrimento. Eu acho que, em relação às pessoas mais velhas fazemos de conta que "está tudo bem" porque evitamos pensar nelas, nas omissões da nossa relação com elas e em nós no lugar delas. Às vezes, protege-nos imaginar que eles sejam “velhinhos”. Que pensam de forma entaramelada. Que eles e o Alzheimer têm uma relação de privilégio. E não pararmos para perguntar como se sentem confinados num corpo que manda neles. Confinados a uma esperança de vida sem direito a índices de felicidade. Confinados a espaços de onde não têm liberdade para sair. Sem direito ao seu dinheiro e (muitas vezes) ao seu património. Confinados. Confinados. E confinados!
Não; o mais importante dos nossos actos para com os "velhinhos" passa por não os considerarmos "velhinhos". Passa por reconhecer que têm direito à sua vida, à sua autonomia e aos nossos cuidados. Passa por reconhecermos que, num mundo ocidental mais envelhecido, as pessoas mais velhas não são, sobretudo, um custo acrescido. Mas um adicional de sabedoria que quase todos desprezamos.

Por tudo isto, chega de falarmos das pessoas mais velhas com se fossem "velhinhos"! Respeito! Sim?

                                        Eduardo Sá - psicólogo, psicanalista, professor e autor


Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

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