quinta-feira, 11 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO




ENÉSIMO  DIA  DO  QUE  FOI ...

Já não conto os dias.  E também já não sei contá-los, nesta confusão de tempo sem ter fim.

Sei que continuamos mergulhados num futuro incerto, sei que os números crescem numa média de trezentos por cada vinte e quatro horas, sendo a maioria exactamente na zona geográfica em que me inscrevo ( Lisboa e Vale do Tejo ), apesar de considerarem  controlado o surto, de acordo com as autoridades de saúde.
Sei que as pessoas já não estão confinadas de todo, apesar de ainda haver restrições severas, e de haver exigência na observação rigorosa das medidas de distanciamento social e cuidados complementares.
Sei que já podemos comer fora de casa ( carregando luvas e desinfectante de preferência, como prevenção, apesar do mesmo se encontrar à discrição em todos os locais ) ... Que já podemos estar com amigos, mais proximamente ... que já podemos visitar os filhos ... olhando-nos à distância, falando-nos à distância ... não nos tocando ...
Sei que as nossas empregadas domésticas, na generalidade já regressaram, com máscaras e desinfectantes à entrada, sobretudo se utilizam os transportes públicos na deslocação até nossas casas.
E também sei, que pelo menos isso me aliviou das prestações domésticas que, odiando, tive que executar durante os tempos tenebrosos do confinamento.
Sei que já fomos ao cabeleireiro, ás unhas, aquelas minudências que nos levantam um pouco a alma ... 😃😃 ...
Mas ainda não há compras para ninguém.  Os centros comerciais, encerrados aqui na zona de Lisboa, travam o acesso consumista, que até parece termos esquecido.  Afinal, passando a maior parte do tempo enfiados entre as nossas conhecidas e seguras quatro paredes, os modelitos continuam repousando nos roupeiros e no fundo das gavetas ... Precisamos de mais, para quê ?!
Sei que já poderemos ir ao cinema, embora ache que não terá a mínima graça estar amordaçada, numa sala às escuras, cadeira sim, cadeira não ...
Sei que se poderá  ir às praias, por trilhos demarcados na areia, trilhos de ida e trilhos de volta, com áreas de ocupação por chapéu, bem demarcadas, por forma que as pessoas não se esbarrem ... e com uma lotação limitada que nos remete para uma espécie de plateia com bilhetes marcados ... Um horror !!!... 😃😃
Sei que apesar de ser Junho e os Santos terem descido às ruas, não haverá sardinhas, arraiais, bailaricos e marchas ... não haverá martelinhos, alho porro e foguetório pelos céus de Lisboa e do Porto ... Nem casamentos de Sto. António ... é verdade !... 😢😢
Sei que as esplanadas já são francas e que o pessoal poderá retomar as tertúlias ... Poderá ... mas ...
E até sei que se pode viajar por aí, pelo país ... com cautelas e medidas ... mas ...
E sei de mais algumas outras coisas ...

Bom, sei de tudo isto, mas também sei da modelação que toda esta anómala forma de vida provocou dentro de cada um de nós ... E talvez não erre muito se disser que o reinício e a retoma da normalidade tão ansiada das nossas rotinas, são bem mais complicados e penosos  do que foi o seu fim.
Talvez não erre muito se falar do medo que ainda sentimos todos, quando nos cruzamos nas ruas, nas compras, nos lugares mais frequentados, com os outros, que certamente também estarão a experimentar o mesmo medo de nós próprios ...
Talvez não erre muito se falar do desconforto sentido, quando pontualmente ficamos mais perto de alguém, porque dificilmente conseguimos escamotear pelo menos, a apreensão sentida ...
E não erro de certeza, quando percebo que o vazio e a mágoa daquele beijo adiado, vão continuar  a apertar-me  o  peito,  porque  o  beijo  vai  continuar  adiado,  sabe-se  lá  até  quando !...
E também talvez não erre muito, se falar do desencanto e de uma espécie de tristeza interior instalados, que nos conseguiram  roubar a alegria e a capacidade de fruição, de gosto e de vontade em relação até às pequenas coisas, que direi em relação às mais ambiciosas que poderíamos fazer ... e que não conseguimos fazer ... simplesmente !
E do cansaço interior, desmotivante e anestesiante já, frente às forças e determinação reunidas no início deste filme de terror ... e que se nos esvaíram aos poucos, enfraquecendo a esperança e a capacidade de luta !
E também não erro quando percebo e falo da estranha que há em mim, que veio, tomou conta e se abancou, sem hora de ir embora ... e de como isso me perturba, me angustia e desanima ...

E ainda que eu continue de olho no "pote de ouro" que me espera no fim de um qualquer prometido arco-íris que há-de subir no céu, numa aurora que virá ... e ainda que eu saiba que o arco-íris foi exactamente escolhido como símbolo da esperança, da confiança e da fé de que "tudo vai ficar bem", no flagelo que nos atormenta ... ainda assim, frente à minha janela, não parecem perfilar-se as condições para que as sete cores, disciplinadamente se arrumem, para o desenharem neste meu céu escuro !!!



Anamar

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