Esbarrei-me com a data, ao olhar a agenda, para relembrar a data de pagamento de mais uma das benditas contas mensais, e verifiquei que estávamos a 24 de Outubro.
Ando meio perdida no tempo, coisa de quem não tem muitas obrigações, com hora ou dia.
Casei-me no dia de hoje, faz 42 anos.
"Espantoso, pensei ...estaria quase a fazer "bodas de ouro" ... porque as de prata ainda cumpri.
O dia estava mais ou menos como o de hoje, também. Um sol meio envergonhado, meio encoberto.
Não choveu, penso ... aliás, tenho a certeza ! Afinal ..."casamento molhado, casamento abençoado " ...
Era uma menina então.
Quando me olho nas fotos do dia, a mini-saia, a coroa de flores no cabelo apanhado, mas sobretudo aquela figurinha de noiva, que mais lembra a de uma menina na Primeira Comunhão, não me magoo ... enterneço-me.
Não tenho por que escrever nada disto aqui, mas apeteceu-me.
Afinal esta data, é uma espécie da que vivencio no último dia de cada ano.
Nessa altura , tenho tendência a "repassar" na cabeça, o ano cessante ; hoje fui empurrada a "repassar" uma vida !,,,
Reitero ... era uma menina !
Em pleno início de faculdade, os horizontes de uma filha única, de pais já "velhos", mas sobretudo excessivamente focalizados em mim ( vivendo dos meus insucessos e êxitos, projectando em mim, tudo - eles e a vida deles ), levaram-me a viver uma realidade sempre "acolchoada", sempre excessivamente protegida, sempre em "incubadora".
Verdade ! Eu acho que nunca abandonei verdadeiramente aquela "incubadora", ou aquela redoma.
Afinal, eu era a "princezinha", naqueles três, que era a nossa família !
Nunca deitei a cabeça de fora, qual Bela Adormecida na torre do castelo ...
Sabia lá como era isto por aqui ! Sabia lá a dureza e o desencanto que nos esperam a cada esquina !...
Lembrava o pássaro que temos na gaiola, e que se o soltarmos, ele morrerá, pela razão tão simples de que não sabe sequer procurar o sustento, porque não foi preparado para o identificar e encontrar.
Tanto quanto consigo lembrar ( já lá vão tantos anos ! ), era uma adolescente sonhadora, ingénua, crente, inexperiente, confiante, para quem seguramente a Vida seria mãe, e não madrasta ; que acreditava que os sonhos sonhados, sempre se realizam, desde que lutemos para os alcançar.
Pobre de mim, que não fazia ideia da força da correnteza, de facto !...
Lera os livros da literatura naïve, tipicamente femininos, literatura cor-de-rosa, ou de preparação para uma mulher, esposa e mãe, de acordo com os parâmetros sociais, morais e familiares, a típica "fada do lar"...
Ouvia Adamo, Hallyday, Silvie Vartan, Françoise Hardi, Joe Dassin, Tom Jones, The Shadows, Bee Gees, Roberto Carlos ... Bécaud, Aznavour ... e sonhava ...
Na minha casa, lia-se a "Crónica Feminina", a "Flama", os "Lavores Femininos", "O Cruzeiro", o "Sétimo Céu", e eu lia Caprichos sobre Caprichos ...
Treinavam-se com as mães, as "prendas domésticas", garantias de um casamento consolidado ( para que estávamos fadadas ), e para que soubéssemos, como se passava a ferro, como pelo menos se estrelava um ovo !
Lembro a trabalheira que a minha mãe teve, para que eu aprendesse a vincar calças de homem ... sendo que até hoje, o não sei fazer !!!
Aprendiam-se as regras de vivência, e de agrado ao marido.
Sim, porque era certo que teríamos um marido e filhos, como o "figurino" previa.
E ainda assim, eu já teria uma profissão ( porque estudava ), o que me proporcionaria certamente mais autonomia que a que a minha mãe alcançara, confinada ao reduto caseiro, e a todas as suas exigências apenas, de uma forma exemplar ... irrepreensível !
Afinal, a sua profissão era tão somente "doméstica" !... Tão somente ??!!....
Não era propriamente uma jovem informada ( não havia o hábito de se comprar jornal sequer ) ; a televisão surgiu, quando eu teria talvez, sei lá, uns dez anos, e ainda assim, ia-se ver um pouco à noite, de quando em quando, a casa de uma vizinha de rua, que mais abonada, tinha uma.
Em minha casa, nesses primórdios, isso era considerado um luxo, portanto, um bem "não essencial".
A vida era feita entre a casa, sempre muito só e silenciosa ( porque o meu pai estava fora a maior parte do tempo, a trabalho, e a minha mãe nos afazeres domésticos sempre intermináveis , ou não fosse ela alentejana de gema ), e a escola.
Por isso lia, sobretudo livros que a minha madrinha de baptismo, extremamente católica ( "beata" direi mesmo ), me comprava.
Leitura castradora, redutora, tendenciosa, limitadora da obtenção de uma autonomia intelectual, e consequentemente, crítica , consciente, lutadora, perseguidora de objectivos, talvez "dissidentes" ( o que não seria conveniente, óbvio).
Tinha uma amiga ( que se tornara "irmã", confidente, cúmplice ... tudo, afinal ), com quem partilhava as dúvidas, preocupações, anseios, alegrias e mágoas, sonhos ... naquela conivência adolescente, sempre totalmente incondicional. E tinha depois, colegas, meras colegas de vida académica.
Pouco ou nada saía. Os fins de semana eram iguais às semanas ; estudava, ouvia música no rádio, e claro ... inevitavelmente escrevia ... inevitavelmente comecei a escrever, desde sempre.
A escrever coisas nunca mostradas a ninguém, como é óbvio.
Ao cinema quase nunca ia.
Com a minha madrinha, vi a "Música no Coração" ( ícone de uma geração, a minha ! ). Vi filmes com o Joselito ... "E tudo o vento levou" ... "O conde de Monte Cristo" ..... Mais tarde, bem mais tarde, o " Dr, Jivago " ( quatro vezes vi a película, e quatro vezes chorei com ela !! )
Ouvia-se "La novia" ... ( "blanca e radiante lá vai la novia" ... muitos lembrarão ), "Os amores de estudante" ... "Quand vient la fin de 'été " ... "Tous les garçons ".... e imaginava-se que aqueles melodramas cor-de-rosa, também poderiam ser vividos por nós, não se sonhando que o que se viveria na verdade, eram dramas ... claro que nunca cor-de-rosa !!!
E não muito mais ... Foi assim !...
Casei no dia de hoje, há 42 anos atrás, com a cabeça cheia das tais ilusões, dos tais sonhos, devaneios, acreditares, ânsia de libertação de algo que claramente me sufocava, mas que se calhar, à época, não conseguia verdadeiramennte consciencializar.
Casei com uma vontade louca, de me independentizar de todas as peias e amarras que me haviam tolhido, com uma vontade louca de "crescer", de abrir a janela e respirar um ar de que eu fosse dona, e pudesse aceitar ou rejeitar, pela minha cabeça e pelo meu coração ...
Casei, acreditando em utopias, em céus azuis, em vida mansa, em sol, muito sol a inundá-la ...
Casei com a ingenuidade, a fé e a inocência, da criança que afinal eu era ...
Tinha 19 anos !!!...
Anamar