sábado, 13 de outubro de 2012

" O DAY AFTER "



Acordei como se acorda, quando se acorda, no dia seguinte a um pesadelo.
Quando se acorda não acreditando, que se está a acordar daquelas penumbras, e que elas existem mesmo.

Lembro que acordei exactamente assim, no dia seguinte ao meu pai ter partido.
Lembro claramente o ser arrancada desse sono profundo, como um furacão varre impiedosamente as alamedas dos jardins, despenteia violentamente as ramagens dos coqueiros, como simples brinquedinhos insignificantes de menino travesso.

É um acordar de um poço tão escuro e tão tenebroso, que nos derruba de cansaço, que nos mostra com nitidez um buraco gélido e desconfortável dentro do peito, bem aqui no meio, um buraco vazio, de uma ausência atroz, que nos faz sentir vazios por inteiro ...
Sem corpo, sem coração, sem alma ... extirpados de tudo !...
Tão vazios, que nos perguntamos se pertenceremos mesmo à realidade para que acordámos, ou se deveríamos ter ficado lá atrás, no reino das brumas, onde parecemos pertencer ...

Acorda-se ofegante, acorda-se em susto, acorda-se em desespero.
Queremos  porque  queremos,  negar  que  é  verdade  o  que  foi  verdade ;  queremos sentir o alívio que se tem, ao largar um pesadelo, porque percebemos que apenas foi um pesadelo que nos atormentou, e que fez parte dos desígnios confusos do reino onírico, sempre assombrado, e nada mais .
Aí, depois dos olhos bem abertos, depois de termos sacudido das pálpebras, as últimas pégadas desse rasto maldito, aos poucos, regressamos ao sol da realidade, com o alívio do diabinho safado, ter ido embora, e não ter passado de mais uma maldade que a madrugada nos aprontou !

Mas quando os ausentes fazem parte da galeria dos "mortos-vivos", como lhes chamo, o "desastre" é substancialmente maior.
Tanto maior, quanto sabemos que essas memórias que nos torturaram, que durante horas regressaram vívidas, quase reais, aos nossos braços, não são memórias, são realidades.
Existem, andam por aí, dividem à distância de Mundos, os dias e as noites com os nossos dias e as nossas noites, as horas dos nossos relógios, o mesmo céu, a mesma lua, o mesmo sol e o mesmo ar ...
É então que o tal buraco, é a boca de um desfiladeiro para o qual fomos jogados, e do qual não podemos sair nunca, porque não tem estrada, rumo ou norte, que nos dê uma mão de subida.

É então que sentimos uma fraude, um monstruoso engano, tão mas tão grande dentro de nós, um sabor a fel tão mas tão amargo na boca, uma dor tão mas tão sufocante na alma, que inclusive, perdemos a vontade útil sequer, de sair do desfiladeiro, ainda que por sobrevivência ...

E temos um misto de sensações / emoções que se baralham, que se mesclam, que nos paralisam, que nos torturam.
Sentimos raiva e ódio.  Sentimos dor e mágoa.  Sentimos pena e compreensão.  Sentimos impotência, e portanto desistência e cansaço, sentimos ausência de luz, porque nos sentimos acossados, encurralados em caminhos sem saída, com uma cerração indissipável à nossa frente, que nos tolhe por inteiro .

São sensações de perdas dolorosas e irreversíveis, porque recorrentes afinal, ausência de esperança, uma espécie de não percebermos o que se está por aqui a fazer, qual a razão de ser de tudo isto, que destino ilógico e sem nexo, cumprimos !...

No nosso percurso, os acontecimentos, as pessoas, os sonhos, as realizações, as metas atingidas, as lutas travadas, os insucessos e os êxitos, as dores, os medos e as alegrias, vão ficando confinadas a "gavetas", a "prateleiras", onde se vão amontoando.
E o mentor dessa estratificação na nossa existência, é sem dúvida, o Tempo, o tal anjo e vilão, que tanto nos aplaca as dores, como nos tortura a mente, revivalizando tudo, quando menos esperamos ou queremos ...

Por que determinismo do destino, de quando em vez, essas "gavetas" ou "prateleiras" se escancaram, e pelas madrugadas da Vida somos massacrados com tudo de novo ?

É apenas porque tudo quanto lá está, receia ser apagado em definitivo, e reclama o lugar que ocupou ?
É porque há um qualquer mecanismo inexplicável no subconsciente humano, que pretende testar até onde os "mortos-vivos" são mais vivos ou mais mortos, ainda ?
É porque tudo quanto aconteceu e foi, nos quer lembrar que aconteceu e foi, à revelia de o podermos, querermos recordar, ou  "deletar " ?
É porque o ser humano tem uma fatia desumana, masoquista, maquiavélica, a preenchê-lo, que gosta de o torturar  e deixar assim, como estou hoje, inerte, anestesiada por um mau estar que não defino mas que me "robotiza", com vontade de voltar a dormir ... "vivenciando",  ou um estonteante sonho cor-de-rosa, compensador e regenerador ...ou dormir simplesmente de vez e em paz ??!!...

Decididamente, os "day after", demos que volta lhes demos, contêm sempre o doloroso do determinado, do definitivo, da inevitabilidade, do insolúvel, a dilaceração do corpo e da alma, o irremediável cheiro de morte, que paira, e que fede por antecipação !!!...

Anamar

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