Estou no café habitual, à hora habitual, no pequeno almoço também sempre igual, numa espécie de destino que se começa a cumprir, também igual, pela manhã.
Como se sabe, tudo é igual neste café, a minha vida também parece vestir-se das mesmas coisas, todos os dias.
Estava a ler ; hoje não me sentia com razão suficiente nem necessária, para escrever.
Necessária talvez, porque afinal, numa vida tão silenciosa quanto a minha, o papel são os olhos, os ouvidos, e até a boca que de vez em quando me fala.
No MP3, não sei quem, canta numa voz rouca e sensual, que se adivinha ( ou eu adivinho ), ser de um homem maduro, cabelo grisalho, daqueles que têm um timbre intimista nas flexões da voz, logo nas primeiras duas frases ;
daqueles cujas palavras vêm embrulhadas em papel térmico, para nunca perderem o calor, aquele calor que estranhamente nos instala um friozinho, que tem o condão de chegar e subir, ou chegar e descer ... nunca sei !!...
" And I love you so " ... o tema !...
Normalmente esses homens têm vários atributos. Falam baixo, com sensualidade, fazem "promessas", e despertam sonhos nas entre-linhas ou nas entre- palavras ... e despem, despem despudoradamente uma mulher, de imediato, porque têm olhar de RX ; atravessa-nos sem pedir licença, e com poderes de que, nem a capa do Super-Homem nos protegeria ...
De quando em vez cruzamo-nos com personagens dessas, que mesmo com um rio de permeio, deixam esvoaçar uns quaisquer fluidos, tipo poções mágicas, que não sei se é a isso que chamam de "química", feromonas, ou sei lá o quê !!!
Eles, os fluidos, varrem o espaço, atravessam distâncias, progridem através de matéria, que estudámos na Física, ser impenetrável.
" Dois corpos não podem ocupar simultâneamente o mesmo espaço ", dizia Pauli no seu princípio da exclusão.
Bom, mas essas individualidades não são seguramente matéria, serão energia, obras do "capeta", seres meio-humanos, meio demoníacos !...
Agora, por que raio estou eu a falar destas coisas ??
Simples !...
Já ontem, curiosamente, a mesa onde me sentei, separava-se de outra, lado a lado, apenas por um anteparo de vidro, o qual divide o café em zonas de fumadores e não fumadores.
E tal como ontem, essa outra mesa, foi ocupada por um casal, de idade indefinida. ( não tenho jeito nenhum para fazer estas avaliações ... )
Ele, do que vi, ( e não olharia senão discretamente, óbvio ), com o tal aspecto sedutor, com o tal cabelo embranquecido, figura agradável.
Aposto que tinha voz rouca, baixa, "safadamente" convidativa ...
Ela, sem nenhum traço referenciável. Um ar descuidado, uma mola plástica a apanhar atrás o cabelo, que não tinha mão de cabeleireira, também já não nova, e vestida modestamente.
Não seria por aí !...
O que me chamou mais a atenção foi o aspecto meio abandalhado, que antigamente se diria ( não me interpretem mal, por favor ; não é nenhum tipo de segregação ou superioridade ), quando as havia ... e vocês sabem que este termo era da linguagem comum ... ar de "sopeira" ( sem desprimor para as mesmas ) !
Eu estava de cá, eles de lá, ela, de frente para mim ...
Eu via-os, eles, não !
E não, porquê ?
Porque estavam num estado de graça tal, que tenho a certeza, nem davam por que estavam no café.
Pairava por cima deles a palavra "romance" ... e recente ( Por que diabo é que só os romances recentes, conseguem conservar a frescura das histórias cor de rosa ??!! ).
De mãos dadas, que só se descruzaram, quando o empregado inconveniente lhes pôs à frente os cafés, olhos de "carneiro mal morto", sorrisos nos rostos, de uma cumplicidade escrita, que sem palavras, mostrava como se diz e se escreve "Felicidade", "Paixão", "Desejo" ... fotografavam-se mutuamente com os telemóveis, ininterruptamente, e via-se que a adrenalina os traía e lhes soprava aos ouvidos ... "vamos embora daqui, para outro sítio !... "
Todos imaginamos para onde, e todos conhecemos o poder destas "urgências" urgentíssimas, o mistério que nos faz apagar o Mundo à nossa volta, e de repente ficamos só nós, nós e o nosso romance que queima, nós, ilhados num mundo irreal que não se descreve, nós e a magia que põe o ser humano com a maior cara de "tonto", apenas possível quando se vivencia uma espécie de milagre, ou bênção ... que têm a capacidade de nos arrancar a este mundo tão descolorido, e nos projectam lá para um Olimpo, que apenas nestes momentos se corporiza !...
Eu acho que sorria, sem dar por isso. Pelo menos, o empregado perguntou-me se sorria para ele ...
Por acaso, não !
Sorria para dentro de mim mesma, e querendo ser honesta, vou mesmo dizer-vos o que se passava comigo.
Discretamente, e por cima das letras do livro, olhando para ela, que como disse, se sentara de frente para mim, pensava : " Tão estúpidas que nós somos !!! Como tão facilmente acreditamos em tudo ! Como, com uma boa "cantada" ( dizem os brasileiros ), embarcamos sôfrega e avidamente, no romance, na aventura, na história, um terço verdade, dois terços treta !... Como, quando nos sabem tocar os "cordelinhos", como uma criança extasiada e ingénua, confiamos, adoramos o brinquedo novo, e zeramos todos os desamores, sofrimentos, mágoas, desilusões que nos deveriam proteger, como um chapéu de chuva no coração !...
Como facilmente nos propomos embarcar, embarcar e embarcar sempre, em novas viagens mirabolantes, prometedoras ... Como "naïvemente" continuamos a acreditar, que felicidade com F maiúsculo existirá de certeza em algum lugar deste Mundo sem graça, nalgum recanto desta vida cinzentona, e que ... talvez seja desta vez !... Burras, burras, burras !!!... "
Mas ... prometi ser honesta convosco e vou sê-lo.
Como "quem desdenha quer comprar", dei por mim com um estranho embaciamento nos olhos, misturado com o sorriso disfarçado ( que agora sei que era triste, afinal ), e a sentir uma inveja "do caraças", um aperto aqui no peito, naquele lugar que todos conhecemos, e a achar que a fábula de Esopo, a "Raposa e as uvas" que aprendi na infância, e que estava até no meu livro de escola, se me aplicava direitinho, direitinho ...
"São verdes, não prestam, nem os cães as podem tragar !... "
... lembram-se ???...