terça-feira, 11 de setembro de 2012

" O FECHO DO CICLO "

   

Estou a ler, ou melhor, a reler, um livro escrito por uma renomada psicanalista espanhola, que apreciei particularmente logo na primeira leitura, o que me remeteu a uma segunda, mais lenta, talvez mais cuidada e reflectida.
É um livro escrito  para, e sobre mulheres, e resultou basicamente, da experiência clínica da autora, embora obviamente, as abordagens lá feitas,  não se  "colem" integralmente às personagens reais.
É um livro que eu arriscaria dizer que "cabe"  em qualquer vida feminina, que encerra algures no seu conteúdo, alguma coisa da vivência de todas e de cada uma de nós.
Não diria ser um livro de auto-ajuda, mas sim um livro de reflexão efectiva.
Chama-se o livro,  "Mulheres mal-amadas", e recomendo-o vivamente.

Entretanto, de todas as histórias de vidas, lá abordadas, uma chamou-me em especial a atenção, por traduzir, penso, muito do masoquismo afectivo que a maioria de nós parece ter compulsão em cultivar.
Uma espécie de auto-punições, que nos infligimos, acredito que nem sempre conscientemente, e que estranhamente parece ser transversal a todas as gerações, e a todas as faixas etárias.

Das minhas relações do dia a dia, do meu convívio mais ou menos profundo ou superficial no mundo feminino, concluo, por observação e análise, que há comportamentos típicos e repetidos, quer se fale em mulheres da minha faixa etária, em mulheres de meia idade ( e com isto refiro mulheres na casa dos quarenta anos ), ou em mulheres jovens, absolutamente jovens, parecendo que estas formas de estar e reagir, são uma espécie de marca genética de género.
São formas de vida e posturas que também atravessam todos os níveis culturais, parecendo independer de facto, do grau académico, da formação  ou cultura que detenham, e até do estrato social  a  que  pertençam ( embora, penso, que atingirá graus extremos nas classes socialmente inferiores da sociedade, o que também seria espectável ).

Dizia eu que me impressionou, e me fez reflectir longamente, a história de vida, chamemos-lhe assim, de Sara.

Sara era uma daquelas pacientes que, em consulta, se exprimia com desenvoltura, que não tinha dificuldade de comunicação, e que fazia muito "trabalho de casa", que é como quem diz, vivia mas reflectia e maturava com distanciamento, a sua vida, como se fosse simultâneamente personagem e espectadora, da peça de que fazia parte.
Sara  sabia exactamente onde errava, por que errava, por que continuava a errar, por que não saía de uma espécie de predestinação ou determinismo, no seu percurso de vida.
Levianamente, poderíamos pensar que era "tonta", ou doentiamente masoquista, precisando sofrer para se sentir confortável, como se o sofrimento fosse uma componente imprescindível para viver.
Só não se entende, mas depreende-se, que por detrás dessa prática cultivada e aparentemente "desejável", estaria uma carência afectiva, que a levava a adoptar formas de chamada de atenção à sua volta, vitimizando-se ...  como quem diz : " estou aqui, estou mal, sofro tremendamente ... ajudem-me !" ...

Sara analisava cuidadosamente cada momento do seu percurso, era terapeuta de si própria, duma forma exaustiva ... sabia até soluções, caminhos ...  Não conseguia pô-los em prática.

A sua vida emocional e afectiva estava claramente dividida em etapas, e de uma forma interessante e espantosa, parecia ser uma "pescadinha de rabo na boca", que depois de muito percurso e muita caminhada, muita introspecção e análise, a levava exactamente ao ponto de partida.
Parece, e conclui-se, que Sara sofreu a vida toda, mas estranhamente, como uma aluna dedicada, adquiria os conhecimentos, apenas não sabia aplicá-los a novas situações, tendo portanto parâmetros francamente negativos, na sua  "avaliação".

A geração de Sara foi a minha, a das mulheres que dividiram os anos 50 / 60, entre a infância e a adolescência.
De acordo com os valores da época, veiculados, transmitidos ... eu diria "programados", também ela foi "formatada" - na classe social a que pertencia ( média ) - para ter mais sucesso que os próprios pais, que pertencendo à geração anterior e a classes sociais mais desfavorecidas, viviam fundamentalmente para proporcionar aos filhos, condições de acesso a vidas mais bafejadas, do que as suas.
Mais bafejadas, em condições objectivas de vida, quer a nível das necessidades básicas, quer a nível cultural e intelectual.
É a geração de muitos pais comerciantes, agricultores, trabalhadores braçais, artífices, que de tudo fizeram para produzirem descendentes com acesso escolar, quase sempre mesmo a graus universitários.
A mulher crescia na vida familiar, dentro dos valores tradicionais, e era vocacionada para casar, ter uma profissão ( já ao contrário das mães, normalmente domésticas ), ter filhos ... enfim, depois netos, ser esposa dedicada, exemplo intocável de expoente familiar, aglutinador dos afectos e do amor matriarcal, duma forma indiscutível.

Sara seguiu esse percurso.
Teve um casamento de acordo com o "figurino", sem grandes emoções, sem grandes pretensões também, estável, seguro, morno ... cinzento !
E também nele criou filhos ... claro !

Tinha a intermitência de uma paixão de adolescência, com a qual coloria um pouco a tela uniforme que a enquadrava, lhe humanizava o deserto emocional que vivia.
Hoje, Sara percebe, que foi a "clandestinidade" dessa relação, que a alimentava e obviamente a mortificava.
Nunca teve coragem, nem equacionou outra saída de vida, que não fosse continuar o "modelo" que lhe coubera em destino ...

Os anos passaram, os filhos cresceram, partiram para as suas vidas.  Independentizaram-se dos pais, inclusivamente em termos de proximidade física. Procuraram os seus próprios caminhos.
E Sara, mais sozinha ainda, na aridez do que já não era, porque nunca fora na verdade, decidiu também, que era chegada a sua hora, que havia mais mundo lá fora, e que deveria pôr um términus, num amor afinal inconcretizado.

E ficou só ;  embora solidão, fosse algo que ela conhecia há muito !
Teve que reaprender, ou talvez aprender a viver, num esquema que não dominava.
E conheceu novas emoções.

Ela e Francisco iniciaram uma relação, alimentada agora, pelos contornos do impossível, do improvável, do ilogicismo, do "socialmente não aceitável", do sonho, do "hollywodesco" que a revestiu.
Francisco era, perto dela, um jovem, cativante, muito atraente, com uma "química" que era também a sua.
Sara viveu uma paixão de corpo e alma, tórrida, com todos os condimentos que a retiravam da realidade.
Viveu um paraíso que não imaginava poder existir, conheceu os inversos de tudo o que conhecera até aí.
Hoje, à distância, entende claramente que era óbvio que nunca aquela relação poderia ter dado certo ;  era objectiva demais a precariedade da mesma, nos interesses individuais do casal, nas diferentes linguagens motivadas por formações culturais distintas,  e  por faixas etárias  bem diferentes, por objectivos futuros inexistentes.
Não era de facto, uma relação de casal ;  era um conto de fadas, e como todos os contos de fadas, mais cedo ou mais tarde acabam ... primeiro, porque fadas não existem, e depois, porque contos são histórias, com toda a utopia inerente, e todo o afastamento do real.
E claro, houve um dia em que o "edifício" ruíu ...

Sara ficou sem chão, sem ar, sem companheiro, sem amor, sem "filho", sem menino para embalar no cólo ... ficou órfã !...
E percebeu que o que sustentara todo aquele encantamento, fora muito mais o que ela concebera, inventara, criara, desenhara na sua cabeça, de acordo com as suas necessidades, do que a realidade que tinha tido sempre à sua frente.
Sara amara por dois, protegera por dois, embalara por dois, adorara o "deus" que inventou, submeteu-se e anulou-se, encontrando explicações e justificações para todas as omissões, falhas, descasos, humilhações até, de que fora alvo ...

Sara voltou ao princípio.
Teve que reaprender a viver uma vez mais, previsivelmente com mais experiência de vida, mas com uma desestruturação e um buraco na alma e no coração, maior que o Mundo.

Iniciou um novo ciclo.

Uma etapa de vingança de vida.
Fechou os olhos, os ouvidos e a mente, calcou o coração bem para o fundo, apagou toda a razoabilidade, os valores e os princípios que aprendera e sempre a haviam norteado, e partiu para uma vida que não obedecia a objectivos ou metas, justificações ou razões ...
Sara  flagelava-se e auto-destruía-se diariamente, quase sadicamente, como que numa auto-punição, nem ela sabia bem de quê, mas que lhe garantia na boca o sabor do veneno que já bebera, e com que envolvia e "matava" quem a rodeava ...
Pela primeira vez tomara os comandos da vida.  Sentia que agora as regras eram suas ;  as rédeas e o leme do barco era ela que os detinha, e os encaminhava pela tempestade e pelo turbilhão ...
E nessa "montanha-russa" viveu, sobreviveu ... talvez apenas tivesse "durado" !...

Acidentalmente, conheceu uma pessoa aparentemente oposta a todas as que conhecera até aí.
Uma pessoa que falava a sua linguagem, que a valorizava, que lhe promovia a auto-estima e a auto-confiança, que a envolvia do doce da existência, que lhe deu a saborear o mel da identificação de estares e  sentires, de  gostos  partilhados, de emoções comuns ... que lhe transmitia protecção, que a amava ...  Ou Sara precisava simplesmente ser amada, "salva" !...

E quando de novo, irremediavelmente envolvida,  percebeu  que talvez não fosse bem assim ... era já muito tarde !
A dureza e a injustiça da vida, abateram-se outra vez sobre si.  Ela, que já não tinha a resistência, a idade, a saúde, e as defesas dos anos lá para trás !
Sentiu-se traída pelo destino, de novo, ou pelas pessoas que sempre cruzavam o seu.

E novamente ficou sem ar, sem chão, sem objectivos, sem horizontes, sem vontade, sem determinação ...
Novamente Sara ficou "órfã",  agora mais magoada, mais céptica, e com o coração cravado de dúvidas e desconfianças, sobre tudo e todos ...
Reiniciou a estrada, porque afinal tinha que acordar todos os dias e viver também !
Virou mais uma esquina.  Virou, porque para sobreviver tinha que a  virar, doídamente, a morrer por dentro momento a momento !...

E cruzou-se outra pessoa na sua vida.

Sara era, apesar do passar dos anos, uma mulher que facilmente despertava atenções, interesses, emoções, nos homens com quem convivia.
Era uma mulher normal, contudo atraente, tinha um carisma especial, uma qualquer "química", ou forma de estar e ser, que atraía o sexo oposto.

Talvez deixasse passar uma sensação de desprotecção, de fragilidade ou carência ( a narrativa, não é bem clara neste aspecto ;  por vezes leva o leitor a crer que sim, por outras, mostra uma Sara, que talvez por defesa  ou já  dureza  e insensibilidade  no coração, se  mostra altiva, segura, distante, determinada, rude, até ... ).

O homem que ama Sara, ao contrário de todos os outros, ocupa agora o "lugar" que ela ocupou em todas as suas relações.
É ele que a respira, é ele que a idolatra, é ele que lhe atapeta  e facilita os caminhos, foi ele que se organizou em função dela ; é ele que projectou a sua vida para que ela ocupe o lugar de "rainha", na dele ; é ele que só aceita projectos a dois, planeia sonhos pelos dois, realiza o que ela ainda nem inventara ;  em suma, transformou Sara na razão da sua existência, "para o resto dos seus dias", jura-lhe constantemente.

E a história de Sara não adianta muito mais.
Mostra uma Sara numa relação tradicional outra vez, estável, "familiarmente convencional", teoricamente equilibrada, "socialmente" impoluta, materialmente segura ... enfim ... não sabemos se morna, se cinzenta, se sufocante ... ( penso que a terapeuta, deixa ao critério de quem foi "conhecendo" a personalidade e a vida desta mulher, a conclusão do que terá acontecido ) ...  parecendo irónica e incoerentemente, dessa forma, fechar um ciclo ... o "seu", inicial, como uma rotunda que nos leva sempre ao ponto de partida ...

... Aparentemente, tão só, a cumprir os desígnios do seu ciclo de vida ... aquilo que alguém, sei lá onde, escrevera para ela !!!...



Anamar

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