terça-feira, 18 de setembro de 2012

" DIREITINHO ... DIREITINHO !... "



Estou no café habitual, à hora habitual, no pequeno almoço também sempre igual, numa espécie de destino que se começa a cumprir, também igual, pela manhã.
Como se sabe, tudo é igual neste café, a minha vida também parece vestir-se das mesmas coisas, todos os dias.

Estava a ler ;  hoje não me sentia com razão suficiente nem necessária, para escrever.
Necessária talvez, porque afinal, numa vida tão silenciosa quanto a minha, o papel são os olhos, os ouvidos, e até a boca que de vez em quando me fala.
No MP3, não sei quem, canta numa voz rouca e sensual, que se adivinha ( ou eu adivinho ), ser de um homem maduro, cabelo grisalho, daqueles que têm um timbre intimista nas flexões da voz, logo nas primeiras duas frases ;
daqueles cujas palavras vêm embrulhadas em papel térmico, para nunca perderem o calor, aquele calor que estranhamente nos instala  um friozinho, que tem o condão de chegar e subir, ou chegar e descer ... nunca sei !!...

" And I love you so " ... o tema !...

Normalmente esses homens têm vários atributos.  Falam baixo, com sensualidade, fazem "promessas", e despertam sonhos nas entre-linhas ou nas entre- palavras ...  e despem, despem despudoradamente  uma mulher,  de  imediato,  porque  têm  olhar  de  RX ;  atravessa-nos sem pedir licença, e com poderes de que, nem a capa do Super-Homem nos protegeria ...
De quando em vez cruzamo-nos com personagens dessas, que mesmo com um rio de permeio, deixam esvoaçar uns quaisquer fluidos, tipo poções mágicas, que não sei se é a isso que chamam de "química", feromonas, ou sei lá o quê !!!
Eles, os fluidos, varrem o espaço, atravessam distâncias, progridem através de matéria, que estudámos na Física, ser impenetrável.
" Dois corpos não podem ocupar simultâneamente o mesmo espaço ", dizia Pauli no seu princípio da exclusão.
Bom, mas essas individualidades não são seguramente matéria, serão energia, obras do "capeta", seres meio-humanos, meio demoníacos !...

Agora, por que raio estou eu a falar destas coisas ??

Simples !...
Já ontem, curiosamente, a mesa onde me sentei, separava-se de outra, lado a lado, apenas por um anteparo de vidro, o qual divide o café em zonas de fumadores e não fumadores.
E tal como ontem, essa outra mesa, foi ocupada por um casal, de idade indefinida.  ( não tenho jeito nenhum para fazer estas avaliações ... )
Ele, do que vi,  ( e não olharia senão discretamente, óbvio ), com o tal aspecto sedutor, com o tal cabelo embranquecido, figura agradável.
Aposto que tinha voz rouca, baixa, "safadamente" convidativa ...

Ela, sem nenhum traço referenciável.  Um ar descuidado, uma mola plástica a apanhar atrás o cabelo, que não tinha mão de cabeleireira, também já não nova, e vestida modestamente.
Não seria por aí !...
O que me chamou mais a atenção foi o aspecto meio abandalhado, que antigamente se diria ( não me interpretem mal, por favor ; não é nenhum tipo de segregação ou superioridade ), quando as havia ... e vocês sabem que este termo era da linguagem comum ... ar de "sopeira" ( sem desprimor para as mesmas ) !

Eu estava de cá, eles de lá, ela, de frente para mim ...

Eu via-os, eles, não !
E não, porquê ?
Porque estavam num estado de graça tal, que tenho a certeza, nem davam por que estavam no café.
Pairava por cima deles a palavra "romance" ... e recente ( Por que diabo é que só os romances recentes, conseguem conservar a frescura das histórias cor de rosa ??!! ).
De mãos dadas, que só se descruzaram, quando o empregado inconveniente lhes pôs à frente os cafés, olhos de "carneiro mal morto", sorrisos nos rostos, de uma cumplicidade escrita, que sem palavras, mostrava como se diz e se escreve "Felicidade", "Paixão", "Desejo" ... fotografavam-se mutuamente com os telemóveis, ininterruptamente, e via-se que a adrenalina os traía e lhes soprava aos ouvidos ... "vamos embora daqui, para outro sítio !... "

Todos imaginamos para onde, e todos conhecemos o poder destas "urgências" urgentíssimas, o mistério que nos faz apagar o Mundo à nossa volta, e de repente ficamos só nós, nós e o nosso romance que queima, nós, ilhados num mundo irreal que não se descreve, nós e a magia que põe o ser humano com a maior cara de "tonto", apenas possível quando se vivencia uma espécie de milagre, ou bênção ... que têm a capacidade de nos arrancar a este mundo tão descolorido, e nos projectam  lá para um Olimpo, que apenas nestes momentos se corporiza !...

Eu acho que sorria, sem dar por isso.  Pelo menos, o empregado perguntou-me se sorria para ele ...
Por acaso, não !
Sorria para dentro de mim mesma, e querendo ser honesta, vou mesmo dizer-vos o que se passava comigo.

Discretamente, e por cima das letras do livro, olhando para ela, que como disse, se sentara de frente para mim, pensava :  " Tão estúpidas que nós somos !!!  Como tão facilmente acreditamos em tudo !  Como, com uma boa "cantada" ( dizem os brasileiros ), embarcamos sôfrega e avidamente, no romance, na aventura, na história, um terço verdade, dois terços treta !...  Como, quando nos sabem tocar os "cordelinhos", como uma criança extasiada e ingénua, confiamos, adoramos o brinquedo novo, e zeramos todos os desamores, sofrimentos, mágoas, desilusões que nos deveriam proteger, como um chapéu de chuva no coração !...
Como facilmente nos propomos embarcar, embarcar e embarcar sempre, em novas viagens mirabolantes, prometedoras ...  Como "naïvemente" continuamos a acreditar, que felicidade com F maiúsculo existirá de certeza em algum lugar deste Mundo sem graça, nalgum recanto desta vida cinzentona, e que ... talvez seja desta vez !...   Burras, burras, burras !!!... "

Mas ... prometi ser honesta convosco e vou sê-lo.

 Como "quem desdenha quer comprar", dei por mim com um estranho embaciamento nos olhos, misturado com o sorriso disfarçado ( que agora sei que era triste, afinal ), e a sentir uma inveja "do caraças", um aperto aqui no peito, naquele lugar que todos conhecemos, e a achar que a fábula de Esopo, a "Raposa e as uvas" que aprendi na infância, e que estava até no meu livro de escola, se me aplicava direitinho, direitinho ...
"São verdes, não prestam, nem os cães as podem tragar !... "

... lembram-se ???...


Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

O teu texto traz-me à mente Fernando Pessoa. Será que em vez de achar as cartas de amor ridículas se poderia ter chamado burro, burro, burro?
Um beijinho.
Malmequer

anamar disse...

Olá Malmequer

Claro que não...

"burro, burro burro"...era a minha fase de raposa das uvas a "cutucar-me" !!!!...rsrsrs

Beijinhos