
Fui hoje almoçar com a minha mãe.
A minha mãe, logicamente, é uma senhora idosa com uma "estrada" longa, sinuosa lá para trás...
Do tempo em que se abandonava a escola para criar irmãos mais novos em casa, do tempo em que se mourejava na casa paterna sem prorrogativas especiais pelo facto de se ser filha e não, empregada.
Os meus avós viviam no Alentejo interior; eram detentores de uma pequena residencial, o que significa só por si, casa com muita labuta, sem horários, sem parança, sem descansos.
A minha avó cozinhava (parece que muito bem), o meu avô, como chefe da família, encarregava-se da gestão do negócio, das compras e de finalizar por norma os seus dias, na taberna com os amigos a beber o seu copinho em paródias e petiscadas. Isso era privilégio exclusivo dos homens, numa sociedade machista, conservadora, fechada...

A minha mãe era a filha do meio, de cinco irmãos...Raparigas, apenas duas.
A minha tia casou muito jovem, tendo a minha mãe ficado na casa dos pais quase até aos trinta anos, o que significa que a sua vida (nascida nos anos vinte, no interior de um país arreigado a princípios sexualmente discriminatórios e desigualitários, com o acesso à instrução acentuadamente dificultado, pertencendo a uma classe social não abonada nem material nem intectualmente), não terá sido fácil.
Sempre foi uma mulher forjada em muito, muito trabalho.
Por isso, até hoje, para a minha mãe parar é preciso que esteja na "antecâmara da morte"...
Como ela diz, "o bichinho " está lá dentro instalado e por vezes, não sabemos bem como, lá anda ela de volta da vassoura, do pó, das panelas...da roupa.
Costumo dizer a brincar, que um dia a faço acompanhar para a última morada com alguns destes utensílios...
Fez a quarta classe já casada, para poder tirar a carta de condução; na altura era eu aluna no início do liceu e como gosta de afirmar, fui eu que a "preparei" para o exame.
Devo acrescentar, que a preparação consistia em fazer-lhe perguntas sobre a História de Portugal, os rios e as serras, da Geografia, algumas noções de matemática (forçosamente não poderiam ser muitas) e pouco mais...
Como diz até hoje : "...e depois, enquanto a minha filha estava no liceu, eu, na cozinha e cá na minha vida, levava o tempo a repetir as dinastias, as linhas férreas e a fazer contas de cabeça...e assim, aprendi tudo e passei com distinção"!...

Nunca conheci à minha mãe vida própria...Os seus desejos, gostos, objectivos, sempre se pautaram pelo interesse familiar. Reivindicações nunca lhe ouvi, descontentamentos também não. Crises existenciais...menos ainda!...Sonhos?...Não sei se os teve para além de desejar que a minha vida tivesse sido melhor que a sua própria...
Pelo menos, melhor no que para si era realmente importante : a segurança, a estabilidade económica, a realização profissional, o rigor, honestidade e seriedade nos valores e na postura pessoal, familiar e social.
Com todos esses "condimentos"eu teria tido o necessário para ter uma vida irrepreensível, plena, feliz!...
Os seus horizontes foram talhados por uma época, uma geração, uma educação, uma sociedade, enfim...
Deu o que tinha...Não podia dar mais, porque mais não sabia...

Olhando hoje para a velhinha alquebrada que estava na minha frente, fiquei feliz, porque pelo menos a minha mãe, com toda a pequenez/grandiosidade da sua vida, faz parte da última geração que ainda tem quem dela possa cuidar, devolvendo-se dessa forma um pouco da entrega, generosidade, abnegação e dádiva que devotou aos seus filhos.
Trata-se de uma espécie de "reposição de alguma justiça"...alguma "compensação" na alma e no coração...
Mercê da vida, dos percursos trilhados, das realidades com que nos dividimos, eu e as mulheres minhas contemporâneas, já não seremos seguramente bafejadas com essa sorte...
Sinal dos tempos!!...
Anamar