terça-feira, 29 de julho de 2008

"OS MEUS LUGARES"




Outra madrugada instalada, sono dormido por "tranches" e a cama a dar "formiga" no corpo.
A pestana abre, consulta-se o mostrador do relógio digital ainda às escuras, na remota esperança de que o sono possível que resta não fuja, e finalmente, depois de termos rolado dez vezes para a direita e outras tantas para a esquerda... a "desistência".
O sono foi definitivamente "p'ro espaço".
Enya, por aqui, como companheira (graças a um amigo muito querido), e o silêncio tão meu conhecido da madrugada, bem ao alcance dos silêncios, neste momento instalados no meu coração...

A minha vida está virando uma "desregra" absoluta. Dou por mim com a anarquia instituída...Estou a tornar-me de facto, (graças ao descompromisso total com terceiros), uma pessoa com uma vida absolutamente sem normas.
Os sonos fazem-se por "etapas", as refeições pelas "horas do estômago", tão simplesmente...

Apercebi-me nos últimos posts que escrevi, que pareço privilegiar neste momento, alguma necessidade subjectiva de vos caracterizar ou referenciar os espaços físicos onde me mexo, que me rodeiam, por onde circulo há décadas.
Assim vos falei da minha praceta, assim vos falei do meu prédio e do seu "recheio humano"...Hoje, senti necessidade de vos falar, como costumo dizer a brincar, da minha "segunda casa"...o Escudeiro, café-restaurante, à distância de um apenas atravessar de rua.

O Escudeiro é quase um "ex-libris" da terra onde vivo.
Instala-se num edifício logicamente antigo, existe enquanto café-restaurante há tantos anos, quantos aqueles em que habito o meu prédio... mais de três décadas.

Os donos do Escudeiro são três...Começaram jovens no projecto, foram com ele envelhecendo e hoje gostariam de poder passar o Escudeiro para outras mãos, porque o Outono da vida já lhes acena há que séculos, com promessas de descanso.

O Escudeiro não mudou um milímetro ao longo dos tempos...
Não mudou as "caras", não mudou a decoração, não mudou sequer o cardápio.
É um daqueles locais de bairro onde as pessoas do costume não prescindem dos lugares do costume, do jornal do costume, da ementa do costume...até das conversas do costume...

Pelo Escudeiro passaram já várias gerações.
Abriu na minha, viu nascer e "criou" os filhos da redondeza, acolhe agora os netos. O sr. Gonçalves já dava bolinhos ou rebuçados às minhas filhas...agora presenteia-lhes os filhos.

Os lugares no Escudeiro são "cativos"...quais lugares de bancada para os sócios.
A D. Margarida, na cozinha (tão velha quanto o Escudeiro), continua a ser "tripeira" de clube e não perde oportunidade de dar os seus "bitates" a sportinguistas ou benfiquistas frequentadores. A D.Margarida, gorducha e bem disposta como convém a uma cozinheira que se preze, só ainda não morreu do coração, porque o "seu Porto" não lhe tem dado felizmente muitos desgostos...

A "sport-tv" que sempre exibe um jogo de circunstância, reúne no Escudeiro adeptos "de todas as cores e credos", e à volta de "loirinhas" estupidamente geladas se vai fazendo a Liga, os campeonatos, se ganham e perdem os troféus.
Toda a gente opina, toda a gente defende tácticas..."vira" "mister" de trazer por casa. Discutem-se acaloradamente as jogadas, os golos falhados, as facécias dos homens do apito...
Sempre assim...da mesma forma.
Os donos são ecléticos na cor clubística, como convém ao gosto de todos os clientes...O sr. Veloso aguenta as piadas sobre "os pastéis", o sr. Alexandre aguenta os sofreres do "glorioso" e o sr. Gonçalves, homem de esperança tal como as cores do seu clube, sempre diz : "soma e segue"...(nunca entendi que raio de matemática é a dele...)

A fidelidade dos frequentadores é canina...Só desistem os que mudaram de terra ou trocaram esta pela "outra".
De quando em vez, dou por um lugar persistentemente vazio e fico a saber que o sr. Jorge já está num lar (ainda há pouco dizia tonteiras no balcão...), que o sr. António se mudou p'ra "linha" porque a única filha vive lá e o sr. António aqui, sozinho...Fico a saber que o sr. coronel perdeu a mulher e agora "habita" o Escudeiro em regime "vitalício" (com o filho esquizofrénico de rosto parado e amarelo, tal como os dedos...pelos cigarros que o queimam...) Fico a saber que o sr. Abel recentemente viúvo e que definha a olhos vistos, enfia a cabeça no jornal para se ilhar de quem está à volta...Enfim...as histórias tristes dos "meus lugares"!

O Escudeiro é, como costumo dizer, a minha "segunda casa".
Quando entro para o pequeno almoço, na primeira visita do dia, o que aliás ocorre no timing de almoço das gentes normais como já vos expliquei, o meu lugarzinho do balcão já me espera. E se por acaso o não está, tenta dar-se um jeito para que eu vá para lá...
Aprenderam a conhecer-me e a "mimar-me" naquele local...Pelo meu rosto logo percebem se a noite foi de sono apaziguador, se a dentada do pão não "desce"...se o apetite se foi.
É vulgar adoçarem-me o espírito com pequenas "carícias", sejam meia dúzia de bagos de uva num pireszinho, seja um pedacinho de melão aos quadradinhos (porque "a sra. precisa comer")...seja o gesto simples de me deitarem as duas "bolinhas" de adoçante no galão, de me "obrigarem" a comer um pastelinho de bacalhau "ainda quentinho"... ou de me guardarem, para ler, aos sábados, a revista do JN...

O meu semblante é alvo de "análise", o meu sentir é perscrutado...a minha tristeza ou alegria no momento, percepcionada.
"Hoje está triste"!..."Não gosto de a ver assim"!...
E enquanto o cigarro ia ardendo, quantas e quantas vezes mascarei, por detrás dos óculos escuros que enfio à pressa, lágrimas descaradas que me escorrem...
No Escudeiro já chorei, já "galhofei", já relembrei...Já mantive diálogos pseudo-profundos sobretudo com o sr. Alexandre (homem que foi "embarcadiço" anos e anos... "fino" que só ele...) sobre tudo e sobre nada...Já fiz das suas mesas, escritório, na redacção de escritos a esmo...Já ouvi, em longos e amenos "bate-papos" as confidências e amarguras da minha filha, que em passagem por aqui, pasme-se...prefere ir ao Escudeiro a encontrarmo-nos aqui em casa(!!!)...Já tomei muito chá com a Bia, a Lena, a Fatinha...Já desci algumas vezes à noite (p'ra enganar a solidão e a mágoa), a beber "o melhor Irish Coffee" que conheço...Até a minha empregada, se eu não estou, sabe que a chave da porta está...no Escudeiro!

A minha "segunda casa"...

"Livrem-se de passar isto"!!! - digo eu, em jeito de desafio, a rostos quantas vezes já tão desistentes e cansados, por lá.

O Escudeiro faz, por todas as razões do mundo, parte absoluta da minha vida e acho que eu morreria por dentro se um dia descesse e visse aquelas portas fechadas, ou se aqueles senhores rabujentos e rezingões às vezes, não estivessem mais por detrás daquele balcão...

São as "histórias dos lugares"!...E os lugares fazem as pessoas...e as pessoas completam vidas nesses lugares...cada qual com as suas...transversais à eternidade!!...


Anamar

4 comentários:

Anónimo disse...

Tu tens o "Escudeiro" e eu o café do fim da minha rua o "Le petit café", onde eu já ía com a minha Mãe, que saudades .... Também eu sinto que têm para comigo as mesmas preocupações, as mesmas atenções ... Por isso gosto dos cafés de bairro, são mais sensíveis,mais atenciosos e mais humanos

anamar disse...

É...vai restando pouco destas pequenas coisas ainda personalizadas...
Fora isso, é o betão e o anonimato , que é como quem diz...a solidão e o afastamento entre as pessoas!
Beijinho grande
Anamar

Anónimo disse...

Eu já tive "Escudeiros".
Ainda agora, estava mesmo perto de "ganhar" um "Escudeiro" perto do meu local de trabalho. Mas, não é que vamos mudar de instalações?
Mas, não é que a vida, vá-se lá saber porquê, teima em fazer desaparecer todos os meus"Escudeiros"?
Teimosa, também eu teimo em reinventar novos "Escudeiros...zinhos"!
jks
Lenaspace

anamar disse...

Fazes bem....O "meu", qualquer dia cede e claudica ao cansaço, ao desânimo e às dificuldades de quem está ainda ao leme.
Nesse dia, a minha amputação de tanta coisa será ainda mais insustentável.
São afinal as nossas "pegadas" na areia que mar vai desmanchando e levando...
Bj
Anamar